domingo, fevereiro 16, 2014

Trail do Jesuíta

Devia chamar-se dos beneditinos, já que a peregrinação pelo Monte Córdova acima, era mais hábito dos monges de Singeverga, do que dos pasteleiros da iguaria típica de St. Tirso.
Conheci em tempos um beneditino que havia passado grande parte da sua vida no Mosteiro de Singeverga. Era uma daquelas pessoas que emana santidade, pela postura, calma e simplicidade que o caracterizavam. O "Dom Gabriel", como se chamava, tinha nos montes que circundam a cidade dos jesuítas, o seu local de culto mundano. Admirava e fazia passar a admiração pela beleza de toda a envolvente natural, e relatava-nos as longas caminhadas que fazia nos percursos, alguns que hoje tive o prazer de percorrer, que ligavam as freguesias então rurais, do Concelho Tirsense.
A Cidade é conhecida por pouco mais que a sua famosa gastronomia e pelo Mosteiro de S. Bento, embora tenha uma história rica, que remonta ao Séc IX a.c., mas desde hoje, para umas centenas de atletas, passou também a ser destino de uma belíssima e dura prova de trail.
Foram muitos os que a escolheram para estreia nestes terrenos, e provaram de tudo, desde single-tracks fantasticamente desenhados, a descidas quase de rapel, quedas de água, e subidas duras, extensas, como as que só experimentamos em provas de maior quilometragem.
De uma coisa tenho a certeza, há mais uma prova que veio para ficar. Este Trail do Jesuíta, superiormente organizado, com segurança nos pontos mais críticos, abastecimentos excelentes e banhos de luxo no Pavilhão Municipal, que serviu de base à prova, é um excelente exemplo de como desenhar e erguer provas simples, duras q.b., sem inventar sobre o que lá há. De enaltecer ainda, o envolvimento das autoridades locais, na divulgação e realização do evento, bem como da famosa Pastelaria Moura, que nos deliciou com jesuítas acabados de fazer.
O trail tem destas coisas, leva-nos sempre a algum ponto que desconhecíamos existir, a algum lugar de que tínhamos ouvido falar, mas que de nenhuma outra forma íamos visitar. Monte acima, monte abaixo, muitas vezes sós a divagar em bons pensamentos, experimentamos a liberdade que todos temos, a que nos permite escolher um pouco de sofrimento em troca do que nos realiza. Era assim que viviam os beneditinos de Singeverga. "Ora et labora", era a regra do fundador da Ordem. Baseava-se na reflexão pelo silêncio, recolhimento e leitura, bem como no trabalho agrícola, pastoral e na contemplação.
A envolvente daquele Concelho parece que foi desenhada para eles. Campos agrícolas, silêncio e muito para contemplar. Guardo na memória a excelente vista do alto do Monte Córdova, e as fantásticas quedas de água a jusante da nascente do Rio Leça (ali límpido como gostaríamos de ver até à foz, em Leça). 
Os 27 km passaram num instante, literalmente a correr, num belo dia de sol, onde nada faltou para uma excelente prova de trail.

Mergulhado no Rio Leça

Verde do princípio ao fim. Bonito.


sexta-feira, fevereiro 14, 2014

Dia do Padre Costa


"Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado, o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi argüido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de ter dormido:
- com vinte e nove afilhadas e tendo delas noventa e sete filhas e trinta e sete filhos;
- de cinco irmãs teve dezoito filhas;
- de nove comadres trinta e oito filhos e dezoito filhas;
- de sete amas teve vinte e nove filhos e cinco filhas;
- de duas escravas teve vinte e um filhos e sete filhas;
- dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas,
- da própria mãe teve dois filhos.
Total: "duzentos e setenta e cinco, sendo cento e quarenta e oito do sexo feminino e cento e vinte e sete do sexo masculino, tendo concebido em cinqüenta e quatro mulheres",

Esta é a sentença que condenou o grande conquistador, amante, o Dom Juan do Concelho de Trancoso. Se fosse nos dias de hoje, podia viver de apoio social. Então, no Séc. XV, durante o reinado do Príncipe Perfeito, D. João II, que tinha apenas um filho (e que viria a morrer misteriosamente 4 anos depois), foi perdoado pelo Rei, por ter tido importante papel de "povoador da Beira Alta". 
Ora, em dia dos namorados, ninguém consegue negar o facto que este foi talvez, o maior namoradeiro de todos os tempos. 
Mas hoje não é dia de Padre Costa, é dia do Santo, que era Bispo e se apaixonou pela filha do carcereiro.
Vá lá alguém perceber isto...

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

Ler e escrever, ou sonhar e viver.

"Ler é sonhar pela mão de outrem." - Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego 
Os génios da escrita dizem evidências que todos nós sentimos, concordámos e nunca fomos capazes de dizer. 
Ontem, li este texto de Miguel Torga, um escritor triste e amargurado, que colocava na pena o que não era capaz de fazer ou admitir na vida. E revi-me no texto. Revi-me e revi muitos dos que gosto de ler, e muitas das leituras compreendi e senti como estados de alma que não são mais que desabafos pelo que somos incapazes de concretizar, neste mundo estereotipado e preconceituoso, onde tudo tem norma, até a felicidade. 

Que tristeza isto de a gente escrever! 
Secos como paus na vida, e sai-nos depois a ternura pelo bico da pena! Comigo é assim. E como ninguém me lê—ninguém dos que eu mais desejava que recebessem ternura de mim (minha Mãe, meu Pai, minha Irmã, uns pobres amigos rudes que tenho na minha terra e uns infelizes que encontro por este mundo) —, fica tudo em letra morta. Hoje todo eu fui uma sede ardente de abraçar um infeliz que calcorreava às apalpadelas as ruas escaroladas da Nazaré. Um dia como uma estrela, aquela maravilha ali para se ver, e o desgraçado cego de nascença! Mas o abraço saiu-me aqui, a tinta.

Miguel Torga, in "Diário (1938)"


domingo, fevereiro 09, 2014

O Adamastor no Trail de Sta Luzia

O Minho é lindíssimo. O verde das serras, os rios, os cavalos selvagens, a envolvente natural cativa-nos e faz com que ali regressemos sempre que haja uma prova de montanha. Pena é que o S. Pedro, muito possivelmente por ciúme, não dê tréguas a quem o visita para provas de trail, e impossibilita quase sempre que se vejam todos estes predicados.
Quase no início, já completamente encharcado. Épico.

Já se sabe que o Minho é chamado de "penico de portugal", tal é a quantidade vertiginosa de água que por lá cai durante todo o ano. Hoje tivemos a confirmação (como se fosse preciso) que, no Inverno, é um imenso chuveiro com excesso de pressão, que se abate sobre quem se atreve a meter os pés de fora. 
Sabem o Adamastor, aquele monstro que Camões usou para descrever o Cabo das Tormentas? Pois bem, o Adamastor mudou-se para a Sta. Luzia, tendo-a tomado como sua, e atormentando todos os que se aventuraram na 2ª Edição do "seu" Trail. Quais navegadores, os atletas, hoje gladiavam-se contra os seus ventos ciclónicos e a sua chuva diluviana. Nem à vela, muito menos à bolina se podia arriscar. Só depois de mergulhados no belíssimo rio com envolvente de selva que nos levava à meta, pudemos esquecer a tormenta e desfrutar das prometidas belas paisagens que abundam naquelas bandas. 
Não fosse o mítico monstro soprar violentamente, com rajadas capazes de nos fazer parar em descida, frias, acompanhadas por uma chuva gélida e torrencial, e toda a nossa memória estaria agora dirigida para as paisagens que envolvem Viana do Castelo. Houve de tudo nestes 35 km, com cada vez menos estradão e mais puro trail. De trilhos sinuosos envoltos por verde, passando por quedas de água lindíssimas com o mar como pano de fundo, e a terminar no referido rio, que nos acalmava os músculos para o sprint final na pista do Estádio Municipal, que serviu de base a todo o evento, foi um cenário perfeito. O Adamastor deu-lhe um ar de evento épico e fez sentir em todos um herói, que, quais navegadores de outrora, conseguiram dobrar tal tormenta. A organização, talvez prevendo esta crónica inspirada nos navegadores do Séc. XV e XVI, inundou literalmente os abastecimentos de laranja, não fosse algum marujo morrer de escorbuto. Mas no essencial esteve à altura.
Não havia necessidade, S. Pedro, de nos mandares tal guardião. Foi uma afronta à Sta. Luzia, anfitriã de tanto forasteiro. Passamos todas as provações.
Parabéns aos que chegaram a bom porto e aos que, não resistindo à hipotermia que tantos sentiram, se aventuraram com tais condições.