terça-feira, maio 27, 2014

Ser feliz no Faial

A vida é um encadeado de momentos. O momento normalmente determina o encadeado seguinte.

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Chegados à Horta, depois de um calmo e madrugador voo que nos levou a Lisboa primeiro, começou a diversão de qualquer prova de trail. Um americano – Terry Sentinella - oriundo do Alasca e finisher de provas de renome, como a Badwater, que se revelaria puro, divertido e simpático, presenteava o Mário Leal (Diretor da Prova) com o presente mais adequado a um atleta – uma bela garrafa de whiskey do Kentucky. “Tastes like honey”, diria a Amy nessa tarde, amiga que o acompanhou na sua estreia no continente europeu e na terra do avô, deliciada com o toque doce do mel a abafarem os 40º de álcool, quando nos levaram (a mim e ao Miguel) à sua “suite” (tinha wc privativo, logo…) para um rápido “shot”.
Inevitável nesta ilha é a visita ao Peter Café Sport. Não sei bem a história do dono e fundador, mas será alguém que chegou à Horta, e como qualquer um de nós se apaixonou pela paz e beleza envolventes, e que como tantos outros, por ali ficou. O nome do Bar tem “Sport”, fomos então provar o refresco que, como diria o Terry Sentinella, “it’s a funny drink; Tastes like lemonade”. E sim, tem limão e também algum Gin. O resto da tarde foi passada à procura de um restaurante de peixe, que nos levou à conclusão que são raros, à visita a uma exposição brilhantemente dirigida pelo João Melo - que a par do Mário teve a grande responsabilidade de unir todos os organismos de promoção turística e defesa do ambiente da ilha a trabalhar meses a fio para proporcionar um fim de semana de trail inesquecível-, sobre as espécies (mais que muitos milhares) da imensa diversidade que dá cor e vida à ilha (sabiam que a hortênsia, tão característica da ilha a que chamam azul, pela sua cor, é exógena? Curioso como pode vir de longe o que tanto nos virá a caracterizar). A tarde foi  rematada por plantação de árvores numa zona onde até há pouco tempo havia uma lixeira a céu aberto. A ilha está mais verde.
O dia acabou com um repousado e tranquilo jantar entre amigos de longa data e outros recém adquiridos, sendo que os de “longa data” não são de há muitos anos, mas como são do trail assim parecem, como ficam agora estes recém chegados. Somos de uma tribo estranha que se entranha.

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No dia seguinte, à hora que tinham marcado comigo e com o Miguel para irmos verificar percursos e marcações (trabalho que o João Meixedo e o Vítor Dias andavam a fazer há já 2 dias), lá estavam à porta da base de todo o evento – Hotel Horta – o Hélder e o João. O Hélder, Vigilante da Natureza, trabalhou durante mais de 7 meses com os agricultores locais, na recuperação de trilhos que haviam sido completamente engolidos pelos movimentos de terras do terramoto mais recente a atingir o Faial, em 1998, e que teve como Freguesia mais afectada a Ribeirinha, de onde partiria no dia seguinte a nossa prova. Rapidamente nos apresentamos, tomamos um café e bebemos as suas explicações sobre o enorme abalo que a ilha sofreu e que tanto destruiu naquele lugar. Muitas das casas permanecem abandonadas e quase em ruínas. A Igreja e o Farol continuam de pé mas com aspecto de edifício em ruína eminente. Cumprimentamos o “Agostinho, agricultor que melhor conhece os caminhos antigos deste lado da ilha”, disse o Hélder, antes de nos levar ao cimo de um monte que escondia um belíssimo trilho “com mais de 60 degraus”, dizia num sotaque ligeiro, – dizem que os Faialenses que são os que “melhor falam português, a par de Coimbra” – e que se revelariam mais numerosos (171, contei). Admirada a paisagem junto ao Farol da Ribeirinha, onde a Ilha perdeu mais de 40 mt de território, engolido pelo mar depois de sacudido pelo abalo sísmico, seguimos cordilheira fora, mergulhados num denso nevoeiro que nos permitia apenas apreciar até pouco mais de 100 mt. Chegados aos mais de 1000 mt de altitude, na caldeira do vulcão, nem 5 mt de visibilidade; teríamos de esperar um dia perfeito, para no dia seguinte podermos desfrutar de uma paisagem magnífica, de onde avistaríamos “o Pico, São Jorge, a Graciosa e lá em baixo a cidade da Horta”, dizia o nosso guia. O João, Geógrafo do Parque, explicava a formação vulcânica da ilha, e dizia-nos que aquele vulcão era o maior e mais recente, excluindo o dos Capelinhos em 1958, estimando a sua última atividade há uns “recentes (!) 8, 9 mil anos. O primeiro terá sido junto à Ribeirinha, onde começou a formação da Ilha, há provavelmente mais de 500 milhões. Curioso que, a ausência de atividade vulcânica e a continuação de atividade sísmica, já levaram, por exemplo, a que ilha de Sta Maria tenha perdido cerca de 10% do seu território. Assim passamos parte do dia, bebendo história e geografia de dois, já podemos dizer, dos amigos que fizemos no Faial. Como eu e o Miguel somos tanto de correr como de comer, questionamos onde seria o melhor lugar para se comer peixe. A resposta veio rapidamente com um convite para uma pescaria com o Hélder, que logo nos esclareceu a falta de restaurantes de peixe; ele é tão abundante, que “basta” ir ao mar pescá-lo. Seria o que faríamos dali a dois dias. Neste dia andávamos na Serra, na ausência de caça, e como a hora de almoço se aproximava, lá fomos os 4 à Maria Evelina (ou Café Rumo), na Praia do Norte. O João e o Hélder começaram a falar de petiscos e nós não nos fizemos rogados. Gostamos tanto daquilo que fomos lá todos os dias, excepto no dia da prova. Nesse mesmo dia, à tarde, trocamos a viagem de barco para observar as baleias, e repetindo a visita, dedicámo-nos a treinar para sermos uma, comendo deliciados a linguiça, os queijos, os torresmos de carne em vinha de alho, a salada de polvo, o inhame, o pão de massa sovada (tão bom) e a batata doce que o Rui e o Leonel nos puseram na mesa. O João Mota, que tinha chegado nesse dia, e a Susana ainda se deliciaram com uma deliciosa sopa de feijão vermelho. Uma barrigada. À noite, depois do briefing da prova e do jantar buffet servido no Hotel, ainda comentávamos os deliciosos petiscos e fazíamos contas ao tempo para voltar à Praia do Norte. Dois dias depois da prova voltei lá, literalmente a correr, depois de fazer meia volta à Ilha, mais de 29 km por estrada, onde abundam os chafariz e escasseia o trânsito automóvel. Vale a pena, como vale a pena uma descida à Fajã e uma subida à Ribeira das Cabras, onde a vista é deslumbrante.

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O dia da prova estava “de encomenda”, como se diz quando os astros se alinham e tudo é perfeito. Um dia lindo de sol presenteou-nos tudo o que a ilha tem de beleza para oferecer. Pouco mais de 45 km com subidas lindíssimas e duras, cobertas por denso arvoredo, algum estradão, muito verde, muitas vacas (que mugem de quando em vez, admiradas com tamanho burburinho, habituadas que estão ao sossego), um sem fim de voluntários em todos os cruzamentos e abastecimentos, aplaudindo do primeiro ao último (sim fui quase último) e a população toda simpática, sempre a incentivar. A Susana, deliciada pelas paisagens, andava devagar como se não conhecesse a ilha. Eu, que queria desfrutar ao máximo de toda aquela envolvente, recostava-me sempre que me espantava com o que a vista via. Demorámos mais de 2 horas a percorrer os 6 km da cratera do vulcão. Deitei-me, tirei fotografias, procurei (e encontrei) S. Jorge, o Pico e a Graciosa, até ser envolvido de novo pelo nevoeiro e ficar com aquela sensação de quem quer tirar uma foto ao por do sol, mas demora tanto que ele se põe antes de carregar no botão da máquina. É aquilo que nos leva a todos ao trail. Aquela fantástica vontade de ir mais alto para vermos mais além. A vontade de mergulhar na natureza e sermos parte dela. A vontade e capacidade de sermos parte de um mundo que ali está exatamente como deve estar: Como a natureza quer.
Os açorianos podem estar orgulhosos do que conseguiram fazer neste Mundo de ganância, onde se planeia pouco e se tenta ganhar ao máximo, sem pensar em consequências. Ali nota-se que há planeamento. O urbanismo faz-se onde deve ser feito, habitualmente longe de linhas de água e nunca em levadas, a natureza é conservada e bem tratada, o que faz com que, à semelhança de poucas mais zonas do globo, se conserve uma beleza natural imaculada. A ilha tem habitantes, não foi urbanizada nem desvirtuada a favor do humano.
Foram as 8h58 mais bem passadas em provas de trail até hoje. Num ambiente natural fabuloso, com a companhia da Susana, sempre alegre e paciente a escutar as histórias que eu tinha decorado do dia anterior e desbobinava armado em guia turístico, divertindo-se, mas que pouco se importava com a origem da ilha e que cada vez mais desejava era um ribeiro onde enfiar as pernas. Curiosamente a ilha é muito verde, mas apenas corremos numa levada, não tendo cruzado nenhum ribeiro ou queda de água. O final foi duro, muito duro, com duas subidas agressivas, uma em alcatrão, outra por trilhos desenhados com eficientes degraus, entre fajãs e vulcões. A última subida, por degraus muito desnivelados, com uma agressividade daquelas que nos fazem sentir as pulsações algures entre os olhos e os ouvidos, precedia uma descida igualmente por degraus de paus, onde os músculos “tiravam senha” para darem espasmos. Aqui só me dava vontade de rir, ao ver-me a meio de um monte semelhante a uma montanha russa, onde no lugar dos carris havia escadas artesanalmente desenhadas em ramos de faia (a árvore que abunda na Ilha e lhe deu o nome), subir fazia rufar tambores na cabeça, e os músculos  das pernas faziam um  movimento semelhante ao das colunas quando o som é muito alto. Todo o corpo se descoordenava com tanta dureza.
A parte final da prova é semelhante a correr na lua, com cerca de 1 km nas cinzas do Vulcão dos Capelinhos, ainda sem vegetação. Ao fundo ouvíamos o speaker a pedir “barulho para o Rui e Susana”; a Susana desata às gargalhadas em sprint divertido a deslizar em direção à meta com uma alegria contagiante. Não sei se por sermos quase os últimos, brindaram-nos com o melhor final que tive até hoje. Eu, que estou habituado a chegar à meta com a festa já terminada, cheguei com uma simpática moldura humana que aplaudia e gritava. Até nisto esta prova se revelou exemplar. Parabéns ao voador Armando Teixeira (extraordinário atleta e de uma humildade fora do comum) e à já esperada vitoriosa Anna Frost. Parabéns à organização que esteve à altura do desafio de fazer do Azores Trail Run uma prova de referência nacional.
Nessa noite houve jantar de gala, com entrega de prémios, discursos e atuação de um grupo de dança de Pedro Miguel (Freguesia vizinha de Ribeirinha). Tudo impecavelmente planeado.

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No dia seguinte, vivemos como locais. É assim que se conhece verdadeiramente uma terra, vivendo como eles. Fomos com o Hélder e a Dulce (sua esposa) à pesca. Saímos às 6h30 da manhã, deslumbrados com um magnífico nascer do sol, e às 8h já tínhamos 4 “Peixe Serra”, mais de 20 kg de peixe para um belo repasto em casa do anfitrião que é conhecido por ser exímio pescador e se revelou um extraordinário ser humano. Aturou o nosso barulhento e sequioso grupo até às 11 da noite. Comemos lapas grelhadas, peixe serra, ovas grelhadas, tudo regado com vinho do Pico e rematado (para “desmoer”) com um licor de banana local, que nos afinou as vozes e a disposição.

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Guardo na memória muito que não consigo descrever. Não sei que mais terá sido importante para a divulgação desta prova, se a Anna Frost, se o ultra maratonista anónimo até há uma semana,  Terry Sentinella, ou algum dos outros famosos e anónimos que lá estiveram, se o facto de se ter conseguido realizar uma prova imaculada, atendendo às limitações da ilha, com a presença de mais de duas centenas de corredores que mais não fazem agora que provocar inveja em todos os que não foram. Por mim tenho-vos a dizer, aos que não foram, que, seja para correr, ou apenas como viagem de lazer, vão aos Açores porque vale a pena. Sabem aquelas ilhas paradisíacas do Pacífico, cheias de natureza no seu estado mais belo? Estão aqui ao lado. Chamam-se Açores. Não vejo a hora de voltar. De preferência para correr, e seguramente para conviver com as suas simpáticas gentes. O Faial é um excelente ponto de entrada num paraíso plantado no meio do Atlântico.

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A Ilha do Faial formou-se a partir de um encadeado de erupções vulcânicas, de Este para Oeste, sendo visíveis várias caldeiras a partir da caldeira do vulcão central da Ilha, onde começa o Trilho dos 10 Vulcões. Sim, são mesmo 10. Este fim de semana foi um encadeado de acontecimentos que geraram momentos de plena alegria, satisfação e convívio. Fui feliz em muitos sítios, e fui-o muito no Faial. Obrigado a todos os que me proporcionaram todo os momentos de alegria que produziram tamanha felicidade.

Vivam! Sejam felizes!

quarta-feira, maio 21, 2014

Viver

O bom que tem a leitura - o gosto pela descoberta de autores que nos são completos estranhos, desconhecidos do “bruá” literário, anónimos entre famosos, mas excelentes escritores – é que podemos andar entre filmes diferentes, saltar de realizadores, argumentos e argumentistas deste teatro global que é a vida.

O teatro foi a primeira arte com movimento desenvolvida pelo ser humano, para representar e mostrar vivências. Depois da pintura, o teatro trouxe-nos história, passada de boca em boca, até à escrita e consequente registo, também romantizado, das vidas que nenhum de nós vive.

Os livros fascinam-me. Gosto de mergulhar na escrita e sentir o que sentir  o que sentiria se fizesse parte do “filme” que leio. Gosto especialmente de me sentir um observador da acção, coisa que só conseguimos se o escritor tiver essa capacidade. Como não sou milionário, vou lendo o pouco que me vai chegando às mãos. Tenho tardes inteiras mergulhado em “frames” de livros, entre estantes da Fnac, ou manhãs mergulhado nos livros da Biblioteca Municipal do Porto, em S. Lázaro, para onde gostava de fugir em dias de adolescente, quando me via sem aulas, trocando os chutos na bola pelo silêncio da sala com cheiro a madeira poeirenta. Gosto de mergulhar na história de um local que morreu depois de ter vida preenchida, gosto de romantizar vivências que desconheço. Gosto de viver.

Descobri recentemente (provavelmente será vergonhoso) um “Pessoa” que não é Fernando de nome próprio, mas que me fascina quase tanto como o outro, pela simplicidade utilizada nos pensamentos, e pela escrita, fluente e atraente, pelos pensamentos que passa e pela assertividade do momento. Porque a leitura também é momento. E o momento que vivo levou-me a sentir este texto, que abaixo transcrevo, como um remédio para mim. Porque quero viver a minha vida com (os) outros, e não viver a vida de outros como actor secundário.
Nós somos o actor principal deste filme, desta peça de teatro, neste palco.

Viver é…

Viver é uma peripécia. Um dever, um afazer, um prazer, um susto, uma cambalhota. Entre o ânimo e o desânimo, um entusiasmo ora doce, ora dinâmico e agressivo.
Viver não é cumprir nenhum destino, não é ser empurrado ou rasteirado pela sorte. Ou pelo azar. Ou por Deus, que também tem a sua vida. Viver é ter fome. Fome de tudo. De aventura e de amor, de sucesso e de comemoração de cada um dos dias que se podem partilhar com os outros. Viver é não estar quieto, nem conformado, nem ficar ansiosamente à espera.
Viver é romper, rasgar, repetir com criatividade. A vida não é fácil, nem justa, e não dá para a comparar a nossa com a de ninguém. De um dia para o outro ela muda, muda-nos, faz-nos ver e sentir o que não víamos nem sentíamos antes e, possivelmente, o que não veremos nem sentiremos mais tarde.
Viver é observar, fixar, transformar. Experimentar mudanças. E ensinar, acompanhar, aprendendo sempre. A vida é uma sala de aula onde todos somos professores, onde todos somos alunos. Viver é sempre uma ocasião especial. Uma dádiva de nós para nós mesmos. Os milagres que nos acontecem têm sempre uma impressão digital. A vida é um espaço e um tempo maravilhosos mas não se contenta com a contemplação. Ela exige reflexão. E exige soluções.
A vida é exigente porque é generosa. É dura porque é terna. É amarga porque é doce. É ela que nos coloca as perguntas, cabendo-nos a nós encontrar as respostas. Mas nada disso é um jogo. A vida é a mais séria das coisas divertidas.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

sexta-feira, maio 16, 2014

A bordo do Alfa Pendular

Viajo no lugar 44 da carruagem 6, num Alfa procedente de Braga que já vinha apinhado quando atracou na Estação das Devesas, em Gaia. 
Viajar em linha férrea de alta velocidade ("alta" de vez em quando) tem enormes vantagens. Para além da rapidez do comboio - pouco mais de 2h30 para chegar a Lisboa - o rápido para a Capital está equipado com rádio e é extremamente confortável. Ponho os fones e lamento não vir o moderno trem "equipado" também com educação para os passageiros. 
Estou num daqueles lugares centrais, 2 bancos de frente para outros dois com uma enorme mesa a meio, onde vão duas mulheres, uma certamente sexagenária, - apesar do cabelo negro brilhante, curto, com franja alinhada por cima dos óculos rectangulares -, a outra, loira de cabeleireiro, imensamente gorda, com menos 10 anos, mais 20 cm e sem óculos. As duas no sentido da marcha eu de costas, ao lado de um adolescente que as acompanha. As duas vociferam alto, como se o coitado do moço que aqui vai à janela fosse mouco. Mouco vou ficar eu seguramente, caso apanhe muitas companhias destas nos comboios, já que, para não as aturar, pus o volume do rádio no máximo. Para meu azar, a rádio com melhor "captura" insiste em Bruno Mars (?), Shakira e Beyoncé e outras marteladas modernas nos meus tímpanos. 
O comboio está cheio, não tenho alternativa. 
A gorda, apesar de ainda estarmos em Aveiro, com 30 Mn de viagem, já bebeu dois ice tea de pacote. Agora atira-se a um pacote de gomas enquanto limpa o suor que lhe escorre da testa, mesmo que a temperatura cá dentro não ultrapasse os 22º (27º no exterior). À fome não morrerá. 
A baixa, apesar de minúscula, ocupa mais espaço com as pernas que eu, com 1,87. O puto adormeceu. As gajas agora discutem a vida de figuras públicas (aquele é o Ronaldo) apontando para fotos de uma revista cor-de-rosa. 
Triste sina a minha. Na carruagem 5, que cruzei quando fui tentar-me refugiar no Bar, - repleto com um grupo de turistas bêbedos -, nos mesmos lugares está um grupo idosos que usam aparelho nos ouvidos mas estão calados. Devem ter viajado muito com fones no máximo e danificaram os tímpanos. 
Vou-me refugiar no wc. Afinal, está a ser uma viagem de merda. 

quarta-feira, maio 14, 2014

Eu não quero o presente, quero a realidade


Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas
                         como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

Somos seres intemporais.
Pessoa dizia viver sempre no presente, por não ter já o passado e por desconhecer o futuro. E depois brindava-nos com estes textos assinados por um dos seus pseudónimos, que demonstravam a sua enorme confusão relativamente à torrente de sentimentos que o cérebro nos proporciona, toldados pela razão, a que chamamos consciência, ou pelo coração, que mais não é que a vontade inconsciente, despoluída das normas sociais.

Podemos dispensar tudo o que não vemos?
Podemos dispensar tudo o que queremos?
Podemos viver egoisticamente sem olhar a quem ferimos, olhando apenas para o nosso umbigo?
Podemos. É o que fazemos.

Vivemos num presente, às vezes envenenado, outras encantado, consoante o que nos convém. Vivemos com pavor da chuva se precisamos do sol para secar roupa e com pavor do sol se precisamos da água da chuva para não morrermos à sede. Somos seres insaciáveis. Somos o que nos convém. Vivemos inquietudes que mais não são que coisas que não nos dão jeito que se passem ou existam.
Sorte a dos tolos, dos insensíveis sem consciência, que vivem à vontade dos seus sonhos, sem terem juízo suficiente para avaliar da conveniência para o próximo de qualquer dos seus actos.
Somos o que nos dá jeito com imenso jeito para justificarmos aquilo que somos.

Também tenho um “Alberto Caeiro” na minha existência. Também falo enquanto Fernando e dou lugar ao Alberto quando dá jeito esquecer a envolvente, a estrada que me guiou, os cruzamentos que escolhi.
Há uma diferença enorme entre ser o que somos, e sermos aquilo que queremos ser. O que separa estes dois estados? A coragem de assumirmos o que somos, sem pseudónimos, sem máscaras, sem meteorologia que nos condicione. É sermos egoístas o suficiente para sermos o Pessoa. As questões que nos colocarão a seguir cabem sempre numa excelente resposta, lacónica o suficiente para ser entendida: Porque sim. Porque quero. Porque a vida é minha e as consequências também.

Seremos todos felizes? Somos Pessoa com necessidade de um Caeiro? A liberdade é um conceito tão válido para uso de pseudónimos como para sermos abandonados pelo mundo por sermos quem somos. E nós somos o que pensamos.

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terça-feira, maio 06, 2014

Ultra Trail do Marão - O sonho começou de noite


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Porquê os 3 dígitos
 
Quando começamos a correr todos temos objectivos e sonhos. Há quem queira perder peso e ganhar qualidade de vida, quebrar a rotina e combater o stress ou apenas fazer desporto para manter a forma. Depois sonhamos em distâncias sempre superiores ao que estamos habituados a correr. Uns querem correr 10 km, outros 1/2 maratonas ou maratonas.
Quando comecei a correr tinha um sonho, mais simples ainda que todos estes: Correr de dia. Depois de atingido este objectivo, o de poder correr normalmente (não que estivesse proibido, mas persistia a incomodidade de, enquanto obeso, atrever-me a misturar-me no meio dos atletas; admiro os que o fazem), surgiram as provas. Primeiro de 6, 14 e 21 quilómetros.
Mais tarde, depois das maratonas e das ultras, começou a desenhar-se um novo desejo, uma prova de 3 dígitos.
Ponderadas várias hipóteses, surgiu o convite do Bruno para fazer vassoura de um dos três turnos previstos dos 121 km da Ultra do Marão. Aceitei com a condição de fazer o primeiro e assim poder prosseguir em prova, para tentar concluir a minha primeira acima dos 100 km.
Ali estava eu, depois de todas as formalidades cumpridas, alinhado com mais 74 atletas, na partida daquela que seria a minha estreia e do Marão nas ultras de trail, dada junto à belíssima Igreja de S. Gonçalo de Amarante, na margem direita do Tâmega. A chegada seria na outra margem. Muito público a assistir, uma envolvente humana fantástica, com a participação rara dos amarantinos, que aderiram em força e apoiaram todos os que partiram, depois de uma novel cerimónia de benção da
prova pelo Padre local. A mole humana duraria toda a prova, e por todo o percurso.
 
A Prova
 
Sem querer ser muito descritivo - não gosto de ler descrições de provas, nem gosto muito de as fazer - posso apenas dizer-vos que o Marão e serras cercanas, têm das paisagens mais espetaculares para trail, dos trilhos mais bonitos e das subidas mais dolorosas que conheci até hoje. Corri em paisagens de um verde imenso, pontes de madeira suspensas em árvores, densas florestas de castanheiros, levadas intermináveis que serpenteavam aldeias a despertar da bruma da madrugada, na primeira noite, rios selvagens que ladeiam as imponentes encostas do Marão já durante o dia e onde repetidas vezes me refresquei. As suas gentes são do mais hospitaleiro que existe, como comprovam as opiniões sobre os voluntários locais, do mais extremoso e simpático que vi em provas, bem como da população em geral, que nos apoiou à partida, à chegada e por onde íamos passando. O percurso delineado mostra que houve algum exagero após os 50 km, tendo o restante sido bem escolhido; aqui e ali, eventualmente devido ao forte vento de véspera, deficientemente marcado, mas em geral bonito e agradável. Não havia era necessidade de “castigar” os atletas da ultra com descidas em escombreiras de pedra solta, com pendentes superiores aos 30%. Na véspera, ao jantar, encontrei o Luís Duarte, que se classificou brilhantemente em 2º lugar, que me dizia não ser possível descer ali a mais de 3 km/h. Devo ter descido aquilo, enquanto chamava todos os nomes do vernáculo ao Bruno Silva, a 0,3 km/h. E de noite.
Quanto ao resto não me pronuncio, fiquei ali quando o meu GPS marcava 93 km, quase 7.000 mt de desnível positivo acumulado e mais de 21 h de prova. Na informação do PAC constava “Sedielos, km 74”. Ainda ponderamos, eu e o António Morais prosseguir em prova, mas um bombeiro alertou-nos para o que ainda vinha, e que o primeiro classificado tinha concluído em 8h, de dia. Os relatos que nos chegavam da meta eram de 54 km de percurso, que somados aos já feitos, iam dar nuns mais de 145 (!). Não sei hoje se os teria terminado. Sei que no dia seguinte estava quase pronto para mais 90 km com a mesma intensidade.
Dos 74 atletas que partiram, apenas 16 concluíram a prova, o que demonstra que muita coisa não correu bem. Na minha opinião, esta Ultra do Marão merece uma segunda oportunidade, assim os organizadores a saibam conquistar. Há muito para melhorar e algumas coisas não se devem estragar. Amarante merece uma prova destas, o Marão também (e vai ter outras) e Portugal tem tudo a ganhar com a inclusão desta serra no panorama do trail internacional. A par da Estrela, Gerês e da Madeira, têm condições únicas para a prática desta apaixonante modalidade.
 
O Futuro
 
A Associação de Trail Running de Portugal tem de ter um staff de certificação de provas. Tem de acabar em Portugal o hábito de se certificarem provas no “papel”. Não se podem anunciar 121 km e saírem mais de 140. Este foi o principal pecado desta prova, e consequentemente o desfasamento entre o esperado pelos atletas quanto a abastecimentos e o que acontecia na realidade. Não podem haver provas cujo percurso (incluindo tempos limite) não tenham sido aferidos por alguém com experiência comprovada, e cujos km tenham sido aferidos por um comum GPS. O Google Earth falha demasiado.
A segurança destas provas tem que ser pensada para o último dos atletas, para o mais baixo e para o mais lento, sem exageros, claro. Mas não se podem fazer saídas por zonas perigosas apenas para não repetir trajetos. Podíamos ter ido a todos os locais onde fomos no Marão, fazendo como fazem os organizadores do Ehunmilak no Txindoki: Se só há um acesso, faz-se um controlo no alto. Não há que inventar.
Os controlos falharam, houve atletas barrados no km 95 da prova (20 km depois do lugar onde eu estava), que eu tinha passado 20 km antes, no alegado abastecimento dos 60, na Sra da Serra. Como? Fácil. Não desceram à Ermida e foram em frente pelo estradão até Mafómodes. Não deve acontecer.
Tudo isto deve ser aconselhado por um staff especializado da ATRP, que os deve recrutar e formar, para haver um critério uniforme.
Como consideração final, uma palavra de apreço ao Bruno Silva e restante organização do Marão Ultra Trail: Vocês sabem que fui um dos que mais desejou que esta prova se realizasse. Sei que tudo fizeram para que desse certo. Não tomem por perdido o tempo que gastaram a erguer a prova, melhorem o que há a melhorar e peçam ajuda. Onde mais cabeças pensam sai menos asneira. Preservem essa determinação de quererem fazer melhor, mas esqueçam a ideia de fazer mais duro. O Marão e suas cercanias têm dureza suficiente. Mando por vós um especial agradecimento às gentes de Amarante, que tão bem nos receberam, e a toda a equipa de voluntários, foram sem dúvida excepcionais.
Por fim, um especial agradecimento ao Miguel Santos, cuja colaboração foi fundamental para que eu tivesse a oportunidade de continuar o sonho de dia; ao João Marinho, que se fartou de pedalar monte fora para apoiar todos, do primeiro aos últimos; à Susana, pelo fundamental apoio e constante motivação; ao Meixedo, que mesmo de longe não deixou de incentivar, e a todos, todos sem excepção com que me fui cruzando nos trilhos do Marão. Todos os que começaram este desafio foram bravos. O facto de apenas 16 terem concluído a prova demonstra-o na perfeição.
 
O que fica…
 
Emocionei-me algumas vezes ao olhar a beleza daquela serra. Não só pelas deslumbrantes paisagens, mas principalmente porque comecei a escrever esta crónica um dia antes da prova, começando pelo título, e lembrei-me em cada metro que subia naquelas encostas, de um Rui com excesso de peso, vestido de negro dos pés à cabeça, a sair de casa às 10 da noite para ir correr 3, 4 km, os que conseguisse. Lembrei-me dos mais de 50 kg que já ficaram pelo caminho, pelos milhares de km que entretanto percorri e me trouxeram até ali, ao sonho de ir sempre um pouco mais longe. Lembrei-me muitas vezes do Rui que os outros viam, porque, como alguém me disse hoje, “o Rui já lá estava, só que escondido”.
O meu sonho começou de noite, mas já viu o dia. Que o Ultra Trail do Marão saia também do breu onde se meteu. A prova merece.