segunda-feira, fevereiro 23, 2015

Snow Trail Camp - Sonho de inverno

 

Venham comigo num sonho.

Em pleno século XXI, no tempo em que a informação viaja mais rápido que nunca, num mundo em que o homem não vive sem a tecnologia, há lugares de sonho onde nada ocorre para além dos efeitos na envolvente natural, onde tudo é caprichado ao ponto de até a intempérie se transformar num momento perfeito.

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Neste sonho começamos com a companhia perfeita. Como em todos os sonhos bons – aos outros chamamos pesadelos –, começamos lentamente a embrenharmo-nos no cenário que idilicamente desejamos. Um nevoeiro intenso, com uma chuva miudinha que se avoluma à medida que subimos para Vale do Rossim, deixando Manteigas lá em baixo. Enquanto serpenteamos a montanha, no meio dos pinheiros, como uma vela cujo pavio soçobra às últimas gotas de cera, as luzes da cidade vão-se esvanecendo. É assim que sinto aquela secessão da civilização para o Mundo que nos atrai no trail, que nos transforma em seres diferentes e nos leva para onde mais gostamos de estar – No ventre da Montanha.
A arte de sonhar é a arte de pensar na realização da felicidade, e é uma arte em que o Armando Teixeira, com toda a equipa que programou este Trail camp, se está a especializar, já que uma grande maioria dos atletas presentes era repetente ou trazido por estes. Eu fui levado por uma estreante, e ainda bem. No próximo seremos repetentes, certamente.

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Na força da Serra da Estrela bebemos a felicidade da vida. Na superação, na partilha, no riso fácil, nos estalidos da lenha a queimar nas salamandras sentimos todos os elementos essenciais para o conforto. Nada mais nos faz falta. A simplicidade de um campeão que nos mostra que a resiliência é o motor do ser humano, leva-nos a sonhar com o Tor des Geants e o Valle d’Aosta. Se correr 330 km fosse tão fácil como é gostar do Armando e da forma apaixonada como ele nos transmite os seus pesadelos numa prova de sonho, seríamos todos finishers naquela brutalidade só ao alcance de gigantes. Entre um café e um biscoito, um copo de tinto e uma sopa reconfortante, há sempre mais uma conversa sobre sonhos, desejos, pesadelos passados e noites mal dormidas. E há método, muito método, que isto de sair com 50 pessoas para a montanha mais alta de Portugal continental, onde as condições meteorológicas mudam repentinamente, tem que ser muito bem organizado, para se garantir a segurança de todos. E todos estivemos em segurança.

Já escrevi que o Trail nos dá a possibilidade de sermos crianças, sem que ninguém nos leve a mal. Foi exatamente o que sentimos quando longe de tudo, mergulhados no manto branco do maciço central, desatamos a deslizar como podíamos e conseguíamos, ao som de longas gargalhadas e eloquentes “Yupies”. Acho mesmo que o mais comedido foi o pequeno Guilherme (10 anos), que com o Pai Catarino nos guiava trilho fora. Nem o frio, nem o vento forte que baixava 6 graus a sensação térmica dos termómetros a rondar os 0, nos inibiu de nos divertirmos nos trilhos da Estrela. Perfeito.

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Sei que relatos de experiências vividas são sempre mais fidedignos falados do que escritos. Não há forma de vos passar o que se sente numa experiência destas. A única forma é vivê-la. Meetings empresariais em salas de hotéis? Digam nas vossas empresas, nas vossas organizações, que conhecem uns tipos que em dia e meio vos podem mostrar a importância do planeamento, da humildade, do trabalho, da alimentação, do respeito para com o próximo e o meio ambiente, e principalmente da organização que permite aprimorar todas estas premissas, e venham com eles. Sintam-se com capacidade para adequar as fracas forças do homem num gigante como a Serra da Estrela, e conseguir tornear todas as adversidades que ela nos impõe. Sintam-se diferentes. Sintam-se gigantes como nós nos sentimos, correndo pela berma da estrada, quase levados pelo forte vento, mas firmes na alegria de ver a admiração dos milhares de turistas que ocupavam as centenas de carros e autocarros e se espantavam com tanta coragem e determinação.
Este fim-de-semana fomos todos gigantes no gigantesco cenário da bela Serra da Estrela. É o sonho de qualquer menino, ser herói na adversidade. O trail proporciona-nos esse sonho.

Um agradecimento a todos os que partilharam um pouco de si neste Trail Camp. É um deleite correr e conhecer gente a correr. É maravilhoso poder fazê-lo em tão belo cenário, onde se respira um mundo selvagem, onde não há tv ou rede de telemóvel, onde uma saída para jantar implica correr monte abaixo até à aldeia mais alta de Portugal. Onde podemos conversar e partilhar, aprender e descansar. E muito obrigado à Armando Teixeira Outdoor Events, que inclui todos os que o ajudaram na organização e realização deste Snow Trail Camp. Foram inexcedíveis.

No final do sonho, quando nos tocam de leve para nos acordar, são mãos que nos chamam para partir (ao tasco “já ali abaixo”, comer queijo), são despedidas que não passam de um até já. É esta constante de sonhar acordado que nos atrai no trail, de poder ir mais alto e mais longe, onde o mundo está exatamente como vale a pena ser visto, disponível só para nós e com a beleza do intocável. É poder fugir do vulgar que nos torna capazes de mais um km, de mais um esforço, de nos superarmos sempre mais. É isto que se aprende e vive num trail camp.

Trail é sonhar acordado. Superação é viver pesadelos e recordá-los como sonhos, e disto, todos somos capazes.

quarta-feira, fevereiro 11, 2015

III Trail de Sta Luzia


Admirar a costa de Afife. Correr nos pastos dos garranos. Pensar que há sempre mais uma pu…(piiii) de uma subida e ter saudades do final de há um ano, totalmente dentro de água. Comer bolas de berlim do Natário. Por esta ordem, foi mesmo assim. Que me perdoem os que não comeram bola de berlim, eventualmente por eu ter comido duas, mas eu também acelerei um pouco para não perder tão irresistível iguaria.
Depois de duas edições mais curtas, a organização (quase só o Leandro Freitas), levou a edição deste ano a um patamar de excelência.
Com partida e chegada no Complexo Desportivo Municipal, Viana do Castelo foi apreciada de cima por todos os que percorreram os trilhos do belíssimo Monte de Sta Luzia. Vou-me abster de fazer comparações que possam ser mal entendidas, mas que outra prova nos leva a apreciar vistas fantásticas sobre o Atlântico, em território natural de garranos, por verdejantes pastos, onde até os bovinos repousam ao sol, com ar bonacheirão? Talvez só a vizinha Serra de Arga,  visível a oriente, depois de atingido o topo da Sta Luzia, e apenas separada por uma estranha autoestrada. Aliás, as semelhanças são imensas - dos cursos de água, ao tipo de terreno e aos inúmeros trilhos de pastoreio ancestrais – são ambas dignas de visita, tendo poucas passagens por zonas povoadas, e com múltiplos motivos de contemplação. As imagens do site da prova são fidedignas.  
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(Foto de Laureano Freixo)
Este trail tem todas as condições para se impor no calendário e para atrair bem mais que os menos de 200 que ali acorreram e puderam desfrutar da natureza, num dia que apesar de ter começado frio, se apresentou ameno e com sol, excelente para a prática de desportos na natureza. Falo, claro, da distância rainha (44 km), porque nos 15 do Trail curto seriam bem mais de 3 centenas.
As organizações que persistem, que melhoram ao longo das várias edições,  que vão ouvindo o feed back dos atletas, tendem a melhorar. É o caso. Melhorou o traçado, aumentou a distância para Ultra, sendo agora uma das melhores para a estreia. Esta prova tem sido olhada com alguma indiferença pelo pelotão nacional, talvez por ser realizada tão próxima dos Abutres, mas parece-me ter muito para crescer em adesão, olhando ao fantástico percurso, localização e logística. Não são muitas as provas onde no final se degusta uma bela bola de berlim do Natário, antes de um retemperador banho de água quente, nos múltiplos balneários à disposição dos atletas. Tratamento de luxo, nos pormenores mais importantes. Abastecimentos q.b. (água, laranjas, bananas, tostas, mel ou marmelada e batatas fritas), os trails não têm de ser banquetes. Trilhos muito bem marcados, embora a cor (amarelo) das fitas não seja a ideal, com o pormenor de sinalização dos Km percorridos a cada 5. Muitos fotógrafos asseguraram que ninguém ficava sem uma recordação pela passagem pela prova.
Uma novidade nesta prova foi a preocupação com a segurança, com a participação, excelente, do GOBS, que não passou despercebida. Com elementos em todos os pontos mais susceptíveis de serem palcos de acidentes e outros que corriam em sentido contrário nos trilhos, sempre preocupados em saber se estávamos bem, foram uma evidente mais valia. Não fossem superiormente liderados por experientes corredores de montanha, seria maior a surpresa. Uma valência mais para o mundo do trail, que deve ser aproveitada por outras organizações.
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(foto de Miro Cerqueira, no belíssimo percurso dos Canos da Areosa, este ano feito a subir)
Prova dura, com desnível a rondar os 4.000 mt, pouco técnica, proporcionando períodos prolongados de corrida, como muitos preferem, onde não faltam subidas de sentir palpitar o coração ao nível dos olhos e as passagens por cursos de água para arrefecer os membros inferiores.
Vou continuar a ser totalista. Espero que Viana mantenha a sua Ultra.

segunda-feira, fevereiro 02, 2015

Trilhos dos Abutres 2015

Abutres 2 Rui 2.
Tenho uma contabilidade estranha com esta prova. Quinta edição, quarta participação, e segunda derrota por KO. Claro que é impossível ir a esta prova e não levar porrada "forte e feio", bem como é impossível chegar ao fim seco e limpo, mas partimos sempre com a esperança (e arrogância) dos experimentados, dos que acham que, com calma a coisa se faz.
Devia ter feito com os Abutres, o que os Abutres fizeram comigo, mantínhamos uma relação à distância, cordial, mas sem lhe dar (à prova) oportunidade de tanta pancada. É que ir à Serra da Lousã, jantar uma tábua de queijos e chouriço assado, regado com " Papa Figos", enquanto se participa numa agradável - mas pouco participada - tertúlia, e ir de seguida passar a noite num belíssimo quarto temático, é caso para paixão; levar porrada a seguir já soa a violência doméstica.
E escusam de me justificar aquelas imersões na lama com a piada já repetida do SPA, aquilo não tem piada nenhuma. E granizo? GRANIZO?!?! E neve?!? Neve é bonito, mas não completamente ensopado, sem luvas (e a ter que as aquecer nas partes íntimas, que obviamente recolhiam de imediato) e completamente a bater o dente. E os veados? Veados em bando (eram muitos e não é manada que se diz) doidos por verem tantos doidos debaixo de trovões...
Lindo! A Lousã é linda. Os Abutres partem-nos todos, mas é toda aquela envolvência que nos atrai. Tal como muitas vítimas de violência voltamos sempre para nos afirmarmos, ou apenas para desfrutarmos do que nos apaixona naquela Serra e nesta prova em particular. É isso que nos faz voltar.
É apaixonante ver, 4 anos depois, cada vez mais estreantes, seja na distância ou no género, a ficarem a odiar ou adorar o Trail. Porque cartaz de Trail é o que esta Serra nos dá, (o Moutinho chama-lhe Serra de "petróleo verde" tal é a abundância de opções para fazer aqui provas da especialidade), e que os Abutres (a Associação) tão bem dinamizam e preservam. É obra.
Depois de tanta lama, tanto tombo e tanta água, depois de ter as mãos quase como um ouriço (tantos são os picos) acho que fiquei como aqueles traumatizados com Síndrome de Estocolmo - ainda mais apaixonado por tudo aquilo e com muita vontade de repetir. Esta é a prova de "abertura". É a prova de iniciação às ultras de média distância, de iniciação ao Trail a sério (na vertente mais curta), é Trail do melhor que se faz em Portugal.
Quanto às vicissitudes da prova, e à minha prestação, limitaram-se a 32 km. Fiquei, como mais de 40% dos que a iniciaram, no fatídico km 31, que era supostamente o 29, e cujo tempo limite era de 5h30, ao fim de 5h40 a lutar contra a lama e o frio. Diga-se em abono da verdade, que, se não fosse barrado teria batido em alguém. Já conheço bem o que faltava, e prefiro lá voltar num fim-de-semana com menos trânsito nos trilhos, com menos lama e com melhores condições. É este o espírito com que, cada vez mais encaro o trail, e que o trail deve ser encarado (excepto para os que lutam pelos lugares cimeiros da classificação).

Estou convencido que a organização tirará desta edição mais uma lição para o futuro. Talvez seja o tema de uma próxima tertúlia, moderada (e bem) de novo pelo José Guimarães, e onde todos, atletas e organizações, possamos discutir formas de tornear estas surpresas da natureza. O Trail está a evoluir no nosso País, e já é tempo de também neste aspecto, podermos ter alternativas viáveis para minimizar as desilusões.
Foi um excelente fim-de-semana de propaganda do desporto que tanto gostamos. No próximo ano crescerá a prova, seguramente na exacta proporção dos desgostosos de ontem.
Parabéns à Associação Abutrica. Fazer provas de Trail não é fácil (se fosse faziam-se excursões) e quando se tomam decisões, corre-se sempre o risco de haver julgamentos mais ou menos justos. Havemos de discutir isto abertamente, como temos feito nessas tertúlias que estranhamente são tão pouco participadas - corredor de Trail acha sempre que já sabe tudo, mas aprendemos sempre em todas as vezes que saímos para a natureza; daí dar razão ao Moutinho quando diz que, "o importante quando se faz Trail, é ter mente aberta". Não podemos dar nada como garantido, devemos respeitar sempre a natureza, a nossa e a envolvente, com a humildade de quem é sempre mais fraco que os elementos.
É isto a Lousã: Quanto mais me bate, mais eu gosto dela. 
Até aos Trilhos de 2016!