Todos temos amigos, familiares ou apenas conhecidos, que nos dizem achar espantoso, o facto de termos tempo para treinar, correr, ter vida profissional e familiar e não nos queixarmos. É realmente admirável.
Mais admirável ainda, é o facto de cada vez mais pessoas fazerem parte deste enorme pelotão em que se está a transformar a corrida recreativa em Portugal.
Muita dessa evolução deve-se, na minha opinião, ao facto de haver heróis com histórias de vida pelas quais nos apaixonámos e nos revemos.
Qualquer um de nós, quando quer, tem tempo para fazer as coisas que lhe proporcionam mais prazer e em que melhor partido tira do tempo aplicado para o fazer. É a qualidade da ocupação que nos permite concluir se temos ou não tempo.
Ontem, pouco depois das 6h, nutridos e preparados, mais de 40 pessoas, com um único elo de ligação entre todas elas, o prazer de correr e a vontade de conhecer pormenores de uma prova que se avizinha, dirigiram-se, mais ou menos organizadas em pequenos grupos, para um Free Running na Serra de Arga.
O objectivo deste encontro, era, intenção do seu organizador, Carlos Sá, o de proporcionar uma ambientação ao terreno e às exigências que daí advêm, a quem se quer iniciar na prática da corrida em montanha e por trilhos na natureza. Como organizador do Grande Trail Serra d’Arga, o Carlos quis que alguns dos inscritos na prova tivessem uma primeira abordagem ao terreno, para que se inteirassem das exigências do mesmo e da diferença para as corridas de estrada e/ou pista visto muitos não terem sequer uma única experiência em trail.
Houve de facto lugar para alguns se aperceberem da dureza do desafio de subir uma encosta com 600 mts de desnível, em pouco mais de 2 ou 3 quilómetros.
Enfim, tudo contornado com a compreensão e ajuda de todos para com todos.
Chegados bem cedo a Dem, localidade do Concelho de Caminha que servirá de base à prova, começamos por ouvir, num pequeno briefing, os conselhos e advertências do nosso anfitrião, que, surpreendido pelo nº de participantes (44, quando tinham comunicado a presença apenas 33), pediu para que todos fossem colaborantes.
Iniciamos logo de imediato com uma autêntica escalada de 4 quilómetros, com um desnível de 500 mts. Para quem desconhece a sensação, equivale a subir à Torre dos Clérigos. 7 vezes. Continuamente. Um quebra pernas à partida de uma prova de montanha é mesmo isso. Um quebra pernas, uma forma de selecionar logo no início e refrear os mais apressados. No nosso “estágio” foi a forma de descobrir quem estava habituado a correr e quem não estava em condições de subir à Torre dos Clérigos uma única vez.
Em vez de seleção, visto ser um convívio, um treino onde ninguém ficava para trás, houve celebração. Ali chegados, contemplamos deliciados a fabulosa vista proporcionada pela morfologia do terreno e pelas condições atmosféricas que permitiam, como se pode ver pela foto, ver até à foz do Rio Minho, junto a Caminha.
Foto de conjunto, toca a descer rumo ao Pincho. A meio caminho um primeiro abastecimento junto a uma das abundantes bicas de água, onde alguns se deliciaram com as castanhas que já se notam caídas pelos caminhos.
A figura da prova revela-se aqui. Enquanto me preparava para “assaltar” a mochila do Vítor Dias para comer um indispensável abastecimento em forma de gel, aparece o já baptizado Brecas. O homem, com pouco mais de 6 quilómetros percorridos, já gemia de dores. Queixava-se de cãibras, esticava a perna, massajava os gémeos, mas nada o curaria daquele martírio. Achava que comendo, eventualmente uma coisa daqueles que os atletas comem, se tornaria um atleta. Não, o gel não traz resistência aos músculos, nem serve para os regenerar. Lá por se chamar gel não serve para modelar, como o do cabelo, nem para enrijecer. Não. É gel, porque é mais fácil de transportar e digerir, e porque concentra o essencial para manter a energia necessária para o continuo esforço físico. Mas o Brecas achava que não, que era a poção dos druidas. O Barbosa lá lhe deu um.
Chegados ao Pincho por uma encosta desnivelada, deparasse-nos uma imagem fabulosa, linda. A natureza característica do Minho: Um verde a envolver formações rochosas com quedas de água esplendorosas. Quase por instinto, por celebração do momento, todos ficamos ali por alguns minutos a contemplar o fantástico quadro.
E lá seguimos nós junto ao Rio Âncora numa parte do percurso muito técnica e que ainda não estava limpa da vegetação própria de um ambiente selvagem. Dali trouxe (eu e provavelmente mais alguns) uns picos nos dedos e bastante lama nas meias. Houve tempo para experimentar equipamento, de concluir que os bastões, nesta fase, atrapalhariam e de pedir a S.Pedro que nos dê um dia como o de ontem, nada de chuva ou nevoeiro, pouco sol e temperatura amena, a rondar os 18º. Obrigado.
Rio fora, percurso partilhado com praticantes de canyoning, alguns curiosamente conhecidos de um ou outro corredor (há surpresas em todo o lado, Portugal é mesmo pequenino), lá fomos em direcção a S.Lourenço da Montaria, onde irá terminar a prova de 20 quilómetros.
Ali chegados, antes de iniciarmos a subida à Sra. do Minho, a mais de 800 metros de altitude, alguns dos participantes menos preparados, ou mesmo sem vontade, ou com cãibras, como o Brecas, regressaram a Dem numa carrinha que ali nos esperava precisamente para isso.
Encosta acima, pelo trilho que nos levaria ao final do nosso treino, fomos sentindo a temperatura a descer e a brisa, ligeira, a soprar. O silêncio da montanha a acompanhar-nos e os cavalos garranos ali ao lado, a pastar em grupos pequenos e a olharem-nos com alguma indiferença. No planalto, finalmente terreno para correr em ligeira subida, num esponjoso chão com erva encharcada.
Chegados à Sra. do Minho, tempo para contemplar as vistas, Ponte de Lima ao fundo, Lanheses um pouco mais a Oeste. E ali ficamos a saber que vamos subir e descer aquela autêntica parede. Parede para nós, pista de séries para o Carlos Sá. Não é à toa que é um dos melhores do Mundo no trail. Um atleta fantástico, não me canso de o dizer, com uma humildade e simpatia única dos que nada têm a provar, mas que não se cansam de o fazer. Um campeão!
Começamos ali a parte pior do treino, a que nos pôs pior do que os 1200 metros de desnível positivo acumulado. Preferíamos ter regressado a Dem a correr, do que transportados por um local, numa carrinha de transporte escolar que mais parecia a moto do poço da morte. Eu e o Vitor Dias sentados no chão, completamente enjoados, os demais agarrados como podiam aos bancos, e o motorista a garantir à mulher, via telemóvel, que estava a chegar para o almoço. Enfim, esperemos que as crianças tenham horários compatíveis com os hábitos gastronómicos do dito senhor, senão…
Já com o banho tomado, e depois de uns alongamentos num parque infantil, em ambiente de agradável convivência, iniciamos a terceira parte do free-running. O piquenique correu lindamente, com os já poucos resistentes. Café tomado regresso a casa.
Ficamos todos com a sensação que o Grande Trail Serra D’Arga vai ser uma prova com excelentes condições. O Carlos Sá merece-o e tem feito um trabalho excelente na divulgação de uma modalidade de que tanto gosta e que tão bem nos tem representado por esse mundo fora.
Fica o agradecimento à disponibilidade demonstrada pelo Carlos, e a quem o ajudou a preparar este treino.
Dia 23 de Outubro lá estaremos.
Ficam as imagens recolhidas e compiladas pelo Carlos Sá e pelo Vítor Dias.