A curiosidade de quem lê estes relatos é a de retirar algo que os faça dar o passo seguinte, de se inscreverem numa destas (aparentes) loucuras. São poucos os que leem relatos de ultra maratonas para sentirem as dores de quem os escreve. Recordo-me da minha primeira participação na Freita, na prova de 17 km, em 2011. Recordo-me de ver chegar os participantes da distância rainha – os até ontem 70 km, e que serão 100 em 2015 – e de pensar por onde raio teriam andado para chegarem sem fala ao final.
Foi assim que cheguei, 16h38 depois da partida às 5h45 – Sem fala. E são poucas as palavras que vou dispensar a este relato. Fartei-me de pensar na analogia a fazer, depois da “Branca de Neve e os 7 anões” do ano passado, mas não há analogia perfeita com o que vivi na Freita e com o que vivo de cada vez que lá vou, seja em treino ou em passeio. Ainda há uma semana torci um pé no PR7, a baixa velocidade. A Freita é como um ninho de cobras, onde somos mordidos e envenenados sem antídoto possível. Fica-nos o veneno no sangue a contaminar-nos a razoabilidade e o bom senso. No início deste mês, quando pedi a um médico um atestado de robustez física para apresentar na partida das 100 milhas, disse-me que dispensava análises complexas ou mais exames, mas que só me voltaria a passar outro quando lhe apresentasse um atestado de sanidade mental. E é isto que todos os que por ali andámos somos – uns seres saudáveis mas completamente loucos por aventura, pelo mergulhar nas entranhas de uma serra que tem tudo o que nos maravilha e nos faz sentir acelerar o sangue nas veias. Subir aos 3 pinheiros e olhar para o imenso verde que transpomos para ali chegar é como tomar um potente ansiolítico. Ou anti-inflamatório, porque depois de ali chegar, apesar de tantas quedas nas pedras do rio que tanto palmilhámos, já nada dói. Aos 3 pinheiros, ou no alto da Besta – uma subida de 1 km em 50 minutos por pedras e queda de água, onde para beber bastava parar e abrir a boca. A serotonina, a dopamina e as outras substâncias que o cérebro vai libertando a cada passo, fazem-nos o favor de nos acalmar a dor que o “Traçador” (Traça a dor) José Moutinho nos proporciona a cada km.
A UTSF não é uma corrida de 70 km. É uma luta intensa contra os nossos medos, contra o limite do aceitável, contra o desgaste físico e mental. Lembrei-me várias vezes de quando jogava Monopólio em miúdo, e naqueles dias de azar, me fartava de sair o “Diretamente para a prisão sem passar pela casa de partida”. Lembram-se? No Monopólio recebíamos dinheiro cada vez que passávamos pela partida para podermos “comprar” as ruas e estações mais caras. Era um jogo de sorte que nos fazia eventualmente virtuais milionários. Não passar na “casa de partida” era um rombo na “Conta”. A UTSF é um manancial de “idas à prisão sem passagens pela partida”, e no entanto sabe tão bem. Provavelmente faz-me mesmo falta uma avaliação psiquiátrica…
Uma certeza trouxe: Voltarei sempre, para esta prova, para treinos, para desfrutar, porque ninguém resiste à Freita. Apesar de todos os treinos, e depois destas 4 participações - finalmente fiz a prova como aconselha o Mestre Moutinho, com mente aberta - por muito que lá vá, há sempre algo novo, uma dor traçada por ele, uma nova subida ainda mais íngreme, uma descida agarrado a cordas, uma transposição de rio agarrado a tipos presos por arneses a uma brutal rocha com vista para uma asfixiante queda de água… Enfim, uma qualquer maravilha que recordamos no dia seguinte sem nos lembrarmos onde nos doía o corpo àquela hora, já com mais de 50 km. E por isso voltamos. Para sentirmos toda aquela mistura de dor e prazer de superação, culminada com o fantástico mergulho nas entranhas da Mizarela e aquela final subida ao paraíso que é a meta, ao fim de 70 quilómetros de trail tão duro quanto belo e puro.
Tudo tão belo. E é quase sempre perfeito estarmos onde gostamos de estar, onde só nos falta quem mais gostávamos de ter ali ao lado. Terei de repetir o campismo no Merujal, para ir desfrutar de toda esta dureza e beleza misturadas numa serra, mas em modo de contemplação.
Obrigado José Moutinho e restante equipa, tão bem co-liderada pela Flor Madureira. A UTSF é um mergulho no mundo da aventura onde nada é o que parece, onde tudo é mais belo e mais duro. É a prova onde passamos por onde ninguém passa. É a prova que inclui passagem por aldeias abandonadas a menos de 1 km de outras, só porque para lá chegar é quase preciso ser atleta. É uma luta contra o cansaço onde cada km é uma bênção da natureza.
Parabéns aos vencedores e alento aos vencidos, uns por quedas, outros por cansaço, outros pelo tempo; insistam e persistam. Cada km na próxima tentativa é uma vitória.
Abençoada Serra. Voltarei cada vez mais vezes, e voltarei seguramente à UTSF.
Parabéns, amigo !
ResponderEliminarAposto que esse médico é o amigo de Felgueiras, o conselheiro das velhotas :)
ResponderEliminarRui, foi um prazer fazer alguns kms contigo, sempre uma animação. Pena tive de não te acompanhar mais tempo, mas como disse um companheiro na altura: "ele queixa-se, mas quando se cala ninguém o apanha!"
Parabéns pela merecida conquista. Abraço
Crónica formidável!!! Deus me permita aventurar-me pelos 100 km no próximo ano, porque é das poucas Provas que me põe em "sentido"!!! :)
ResponderEliminarForça Rui
ResponderEliminarBora lá prós100
Parabéns
Rui, mais uma vez, foi um prazer ler o teu texto. A Freita está sempre a convidar-nos. Mesmo se aos cinquenta e tal kilómetros, num momento de maior fraqueza comentamos para quem vai ao nosso lado: isto já não é para a minha idade, e já lá vão 58, cruzar a linha de chegada, receber a medalha, contar as peripécias, o ânimo renasce e já temos o pensamento para a próxima edição. E até Óbidos, para mais uma noite de convívio.
ResponderEliminarQuero sentir isso...ainda não ganhei coragem para a Freita...talvez para o ano, quem sabe...parabéns por mais esta prova de superação e por mais em belo texto.
ResponderEliminarAbraço campeão !!!
Fantástico, parabéns caro amigo.
ResponderEliminarPorra...nunca lá fui mas agora vou ter de ir!!!!
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