sábado, maio 02, 2020

UTMB 2017 - Conquistadores do Inútil

Conquistadores do Inútil.

Lionel Terray vivia a montanha intensamente. Desde os 3 anos que escalava por pura diversão. Fugia da escola para as montanhas para desagrado dos pais e tornou-se agricultor em Chamonix quando esta não era ainda a varanda turística que agora se tornou. Aos 21 anos entrou na Escola de alta montanha e daí até à sua morte tornou-se pioneiro em várias conquistas, desde o primeiro a esquiar a face Norte do Monte Branco ou a ser um dos primeiros a subir a um cume acima dos 8.000 metros - o Annapurna em 1950. Morreu aos 45 anos num acidente de escalada numa "parede" fácil do seu "quintal" próximo de casa. Está enterrado no Cemitério de Chamonix - um autêntico "panteão" de homens da montanha e que vale a pena visitar.

As conquistas de Lionel e de muitos dos que no seu tempo se aventuravam nas montanhas eram de um significado especial para o próprio mas, no momento, eram uma inutilidade para ele e apenas um motivo de regozijo quando contasse aos demais. Não havia fotos ou diretos.

No Monte Branco por que Lionel se apaixonou e que atrai tantos aventureiros há algumas histórias de conquistas inúteis. Todos os que conquistaram o lugar na partida e que por um motivo ou outro não puderam correr, pelos que partiram com problemas físicos e fizeram menos do que esperavam, mesmo os que correram 3 km e tiveram que parar. 30, 70 ou 120 km no Ultra Trail Monte Branco significam sempre conquistas inúteis. Conquista de pontos, conquista de uma subida, de mais uma descida, de mais uma noite sem dormir ou de mais um km. São as nossas conquistas inúteis. Subimos mais um cume no carrocel que nos desenham e ali, quase sozinhos, interiorizamos mais uma conquista. Inutilmente para os demais, se não chegamos à meta.

O que todos temos em comum com Lionel é que para chegar às conquistas que o notabilizaram, houve muitas mais que só a ele satisfizeram. Inúteis.

Parei aos 70 km do UTMB. Os motivos pouco importam. Os 4500 d+ que fiz até ali foram divididos por 4 "cumes" à Lionel - inúteis, mas conquistados. Agora vou receber os que vão chegando a Chamonix com muito mais pequenas grandes conquistas - km a km, metro a metro de superação que mais não lhes dão que uma satisfação e sensação de conquista com pouco significado se ficarem pelo caminho. A chegada à meta é o prémio que só quem lá andou percebe. Por cá todos vivem a montanha e dão aos finalistas a honra das palmas merecidas. Reconhecimento do que conquistaram, inutilmente no momento e cheio de significado no final. A volta dentro de Chamonix é o que torna tão especial tanta conquista.

sexta-feira, abril 17, 2020

O estudo que não é um estudo e que se tornou viral

O Estudo que nunca foi um estudo mas que se tornou viral como se alguma vez tivesse sido um estudo, afinal não é um estudo.

Confusos?

O ser humano tem queda para comportamentos de... manada, comportamentos estes ampliados pelo medo. Se nos dizem que vem aí o lobo, logo nos enfiamos num qualquer buraco com medo do lobo, especialmente se nos mostrarem pessoas a ser comidas, tanto mais se eram as que não acreditavam que havia um lobo.

Nos últimos dias, uma simulação feita em computador por uma equipa de engenheiros belgas que nos mostra o efeito spray das exalações, tosses e espirros de pessoas que estão a correr, a caminhar ou a andar de bicicleta tornou-se viral. Talvez tenha visto este gif no Twitter, Facebook, ou NextDoor. Ou, como eu, talvez lhe tenham sido enviadas mensagens escritas por amigos ou familiares preocupados.




Embora este não fosse o objectivo específico da simulação, está actualmente a ser usada nas redes sociais como prova científica de que as pessoas que estão a correr e a andar de bicicleta estão a pôr outras em risco. Se está a apanhar com "gotículas" ou "perdigotos" em si, a percepção com que fica, é que está em risco de contrair coronavírus.

"As pessoas devem ler e não ler mal os meus tweets e textos", escreveu Bert Blocken, da Universidade de Tecnologia de Eindhoven, o principal investigador da simulação, num e-mail para a Motherboard. "Nunca e em parte alguma desencorajei as pessoas de caminhar, correr ou andar de bicicleta". Antes pelo contrário. Talvez as pessoas devessem ler mais, e reagir menos".

Blocken ainda não publicou um documento revisto por pares sobre a simulação. De facto, ainda nem sequer publicou um estudo não revisto por pares. Em vez disso, falou com um repórter Belga sobre o assunto, que por sua vez escreveu um artigo noticioso, que foi agora agregado e amplamente partilhado por muitas publicações. Tendo em conta o que Blocken concluiu e divulgou, tomado à letra, algumas pessoas estão compreensivelmente a concluir que é impossível correr ou andar de bicicleta em segurança nas cidades - ele recomenda uma distância de 20 metros entre os ciclistas e outras pessoas, algo que é impossível de fazer nas cidades. A questão com a sugestão de Blocken de que "lemos mais e reagimos menos" é que não há quase nada para ler, e não há estudo para criticar.

A equipa de Blocken deu o extraordinário passo de falar à comunicação social sobre a sua investigação antes de publicar qualquer coisa sobre o assunto. Não há nenhum estudo escrito para ler ou interpretar. Não conhecemos as especificidades sobre como o estudo foi feito ou como a simulação foi feita, porque a equipa de investigação não partilhou essa informação.

No Twitter, Blocken disse que "atendendo à excepcionalidade desta crise, por ser tão imediata e surpreendente, excepcionalmente, virámos a ordem do avesso": (1) meios de comunicação social, (2) hoje apresentei a proposta de financiamento (3) artigo de revisão pelos pares, mais tarde. O público não pode esperar meses pela revisão pelos pares. Tenho um pequeno texto, vou colocá-lo no Linked In na próxima hora".

Um dia depois, esse post do LinkedIn ainda não tinha sido publicado. O que a equipa publicou é algo a que chama um "white paper", mas que na verdade é uma versão traduzida para o Google do artigo do jornal belga que não foi escrito por Blocken ou pela sua equipa, mas que o cita. Ansys, a empresa que fez a simulação em parceria com Blocken, também publicou um pequeno mas vago comunicado de imprensa. Entretanto, esta simulação tornou-se viral.

via GIPHY

Um artigo escrito por Jurgen Thoelen, que se descreve como um "empresário, construindo nuvens em todas as formas e feitios e atleta ao longo da vida" foi partilhado milhares de vezes. O artigo tem sido partilhado em grupos de whatsapp, no Facebook e no Twitter, e está a ser usado para fomentar uma batalha entre caminheiros, corredores e ciclistas. Um comentário típico é algo como isto, partilhado numa página do Facebook: "Aos egoístas" da minha cidade: "As pessoas continuam a fazer isto. Corredores e ciclistas com zero de consideração pelos outros 🤬🤬".
A simulação que não é um estudo foi assim partilhada com pouco ou nenhum contexto, e os boatos e medos espalharam-se por si mesmos.

Nada foi apresentado sobre as especificidades ou método deste ensaio, do que ele realmente mostra, quais poderiam ser as suas limitações e como foi feito. O que sugere pode ser exacto e útil, mas não há forma de o comprovar. E no entanto, esta investigação já está a ser utilizada para pedir às pessoas que mudem o seu comportamento e a ser apresentada como prova definitiva de que correr e andar de bicicleta são actos irresponsáveis durante a pandemia.

Blocken disse num e-mail, que não era essa a sua intenção.

"A escolha foi feita de comum acordo com todos os investigadores envolvidos e ambas as agências de comunicação universitárias. A crise é mundial e a situação é urgente", escreveu. "Não queríamos manter os resultados em segredo até termos encontrado tempo para escrever a história completa". Se eu tivesse feito o contrário, teríamos sido igualmente criticados. Dado todo o alarido que agora noto, farei mais um esforço e publicarei a história completa no Linked In ainda esta noite".

"A propósito, isto é aerodinâmica e não virologia. A COVID-19 não vai esperar meses ou até o nosso artigo ser publicado."

Blocken tem razão: Enfrentamos uma situação urgente, e é importante que a investigação científica rigorosa seja divulgada o mais rapidamente possível. Mas centenas de outros cientistas conseguiram publicar, nas últimas semanas, estudos sobre o coronavírus revistos por pares, numa escala temporal acelerada. Milhares de outros publicaram estudos que não são revistos por pares, mas que são, pelo menos, estudos da forma como costumamos pensar neles: Os métodos utilizados e conclusões são explicados de uma forma rigorosa que deixa espaço para o contraditório. Embora esta seja uma situação extraordinária, por alguma razão existem salvaguardas em algumas publicações científicas, e já vimos durante esta pandemia que processos precipitados levam à publicação de más e imprecisas conclusões (isto não sugere que a investigação de Blocken é má ou imprecisa, não temos forma de o saber ou afirmar, tendo como base o que foi publicado).

Mesmo que as simulações sejam verdadeiras, devem ser os virologistas e peritos a fazer recomendações de saúde pública, e não "jornalistas" free lancers nos "media", que foi o que aconteceu. Este tipo de investigação é obviamente importante e deve ser feito, mas deve ser divulgado de forma responsável, com as advertências, limitações e incógnitas claramente explicadas e só depois ser utilizada por virologistas e responsáveis de saúde pública para fazer recomendações concretas às pessoas.

Mostrei a investigação de Blocken a William Hanage, um epidemiologista do Centro para a Dinâmica das Doenças Transmissíveis de Harvard. Diz que é um péssimo sinal o facto de a da investigação de Blocken se ter tornado viral e que a sua sugestão nas conclusões de que esta investigação é um "modesto contributo" para a luta contra o Covid-19 o deixou "particularmente irritado".

Ainda não há a evidência científica da propagação do coronavírus pelo ar, havendo até a percepção de que o risco global de transmissão parece ser menor ao ar livre. Os glóbulos e as gotículas são provavelmente portadores do vírus, mas isso não significa que alguém que recebe uma gotícula do hálito de alguém vá ser infectado. A transmissão depende de uma série de factores; um deles é a "carga viral", que é a medida de quanto do vírus está presente em cada gotícula.

"Do lado da epidemiologia - onde as gotículas são muito menos relevantes do que a quantidade de transmissão que ocorre por esta via", disse Hanage. "Os conselhos sobre o afastamento físico consistem realmente em *reduzir* o risco de transmissão, em vez de o eliminar completamente". Refere que estudos como este "não são realmente úteis", pelo menos, não para os epidemiologistas. A quantidade de transmissão a partir desta via, mesmo que seja possível, será infimamente menor que outras". E acrescentou "é preocupante" a rapidez com que o estudo tem sido difundido... especialmente "quando se considera que tive de escrever este e-mail para o comentar em vez de dar os toques finais a um modelo de transmissão em ambiente hospitalar".

Numa nota de rodapé das conclusões sobre o ensaio, Blocken admite que "actualmente o tema de debates intensos entre cientistas de todo o mundo - é até que ponto os resíduos de micro-gotas com o vírus, após evaporação, ainda comportam um risco de infecção". A continuação da investigação virológica deveria lançar mais luz sobre esta questão". Na semana passada, Ed Yong, do The Atlantic, falou com vários virologistas sobre este assunto, e ainda não há consenso sobre o perigo de se fazer exercício físico ou andar na rua, mas há muita investigação que sugere que os benefícios para a saúde mental do exercício são importantes e bastante relevantes. A questão da carga viral e da transmissão não é abordada nem mencionada no artigo original, nem no jornal belga Blocken. Quando questionei o autor se não o preocupava o facto de o seu trabalho se ter tornado viral, especialmente por se basear em conclusões de não especialistas, ele respondeu: "Estou surpreendido com esta pergunta. O senhor, com a sua experiência, deve saber que apenas se pode controlar a primeira linha de atenção dos meios de comunicação social, mas depois as pessoas escrevem histórias das histórias, e é praticamente impossível controlá-las", escreveu. "Isso teria acontecido igualmente se o artigo completo já tivesse sido publicado. Esta não é a minha primeira grande cobertura mediática, por isso já lá estive, já o fiz. Há imprensa livre".

Hanage diz que não há problema em fazer exercício no exterior, desde que se "aplique o bom senso". "Penso que há um equilíbrio", disse, "a não ser na situação em que existam taxas realmente elevadas de transmissão comunitária.

Texto (mal) traduzido daqui.