quinta-feira, dezembro 05, 2019

Algarviana Ultra Trail 2019 - O amor à amizade



Dizer o que nos faz tentar correr 300 km por serras, cerros e barrancos, numa permanente luta contra as adversidades e contra o tempo - que é limitado entre todas as etapas -, é um exercício difícil de concretizar. Já explicar o que nos leva a repetir uma experiência destas, passa de difícil a possível, quando imediatamente depois de a terminarmos, sentimos saudade do conforto que todo aquele staff nos transmite, e descarregamos num choro mais ou menos encapotado toda a emoção que fomos acumulando ao longo de um caminho árduo que nos levou até ali, à tão desejada Ponta de Sagres.
Numa prova de mais de 300 km, o apoio tem uma importância significativa. Tão significativa que depois do sono reposto, e do regresso a casa, todas as palavras ditas e escritas vão diretas a quem nos incentiva, acarinha ou suporta no terreno, sem esperar nada mais que talvez um sorriso em troca, fazendo deste Algarviana Ultra Trail um hino à amizade.
Diz a sabedoria popular que os melhores amigos se fazem nas adversidades - "no hospital, na tropa ou na cadeia"-, isto talvez porque quando estamos mais vulneráveis, nos juntamos a quem conhece e partilha dos nossos receios, males ou fraquezas. Nos trilhos é habitual encontrarmos gente que jamais esqueceremos. É ainda mais habitual vivermos momentos inesquecíveis, com o inevitável colocar de marcos onde as emoções se refletem na superfície da pele e nos fazem arrepiar de cada vez que as invocamos.
Nas 11 bases de vida da ALUT, há gente que nos acolhe nos braços com a ternura de quem protege seres demasiado frágeis, e a bravura de quem admira os afoitos guerreiros que numa marcha gloriosa vão vencendo hordes de inimigos. Somos todos soldados de um exército em batalha contra os elementos de uma serra que não faz reféns, como provam as dezenas de baixas que provoca a cada edição. Feridos, mas não tombados, a principal onda de atletas segue os soldados mais capazes, personificados nos que mais rapidamente cruzam todo o percurso. Pelo caminho, ao contrário das guerras a sério, não se fazem reféns, fazem-se amigos.
Entre tantos guerreiros e permanentes batalhas, há reforços que vão chegando e outros que por lá andam, que nos confortam na partida e chegada de cada uma das 11 encadeadas lutas. Braços de outros recolhem-nos, tomamo-los como nossos, açambarcamos o conforto que nos proporcionam e fazemos deles nossos. Fazemos em cada cara repetida um amigo antigo e em cada cara nova reclamamos a sua dedicada amizade. 
Soldados que soçobram às batalhas juntam-se ao exército da nossa - dos que ficam-,  salvação. À medida que as horas passam e a Serra do Caldeirão e o seu nascer-do-sol único vão ficando para trás, aumenta um em detrimento do outro. Os resistentes vão desistindo, os desistentes resistindo e os combatentes insistindo. 
A partir da segunda noite, os que de nós gostam ou de nós têm dó, rumam ao Algarve serrano em nosso socorro. Sem poderem batalhar a nosso lado, juntam-se aos exércitos que nos aguardam quartel a quartel, enchendo-nos de brio e orgulho, embebedando-nos com mimo, transformando o conforto em motivação para os podermos ver de novo a todos, conhecidos, amigos antigos e recentes. Assim vamos lutando e vencendo, uns todas as 11 batalhas, outros umas quantas de um lado, as outras do outro, sem nunca despirem a pele de lutadores. 
Nas lutas com os trilhos, para além de amigos, somamos inimigos. As bolhas, o frio, o sono, o cansaço, as pedras do caminho, a chuva intensa e fria embrulhada pelo denso nevoeiro da Fóia, a fome ou o enjoo, a sede, os pés e as pernas que latejam a cada passo serpenteado por Monchique rumo à Picota que tarda em chegar. Entre dias e montes curtos e noites e subidas mais ou menos longas, a maior luz é a dos sorrisos que nos esperam, das vozes que imaginamos nas mensagem que lemos ou que ouvimos nas raras alturas em que a rede permite uma chamada, o telefonema a que todos temos direito, mesmo sendo reféns das nossas decisões. Continuamos km a km, base a base até ao glorioso caminho final que nos faz entrar num pequeno paraíso com que sonhamos desde Alcoutim: A Ponta de Sagres e o seu Farol. Ali, entramos com todos os que nos trouxeram caminho fora, amigos chegados, amigos desconhecidos, amigos que jamais esqueceremos. 
Num cantinho inesquecível desta minha viagem ficam a Flor, o Rui, a São, o António, o Carlos, o Teodoro, o Conceição, o Germano, o Bruno, a Fátima, a Alexandra, a Liliana, o Gabriel, a Cláudia, o Jorge, o João, o José e tantos outros que correram a meu lado ou tão só me deram um minuto de si, que significou muito mais para mim. A juntar aos amigos humanos, em mais uma edição do ALUT, não podia faltar uma companhia "animal". Na etapa mais desafiante para o cérebro e para o corpo - a 9ª, de Marmelete a Barão de S. João - uma etapa de 36 km que normalmente ocupa grande parte da 3ª noite, juntou-se a mim e ao António, o "Tiro" da Fóia, um cão gigante com ares de pastor, preto, que nos acompanhou até ao abastecimento e que, ali chegado, se deitou ao meu lado a dormir. Tinha corrido mais de 40 km desde casa, onde regressou no dia seguinte, depois de contactado o dono. Amigável e simpático, protegeu-nos das investidas de matilhas de pequenos canídeos agressivos e foi-nos alegrando o caminho. Um amigo improvável, de onde menos esperavamos, numa terra onde são seguramente mais que os humanos. Neste cocktail de "gente" boa, juntaram-se dois fundamentais amigos: O Miguel e o João Paulo, que vieram do Porto segurar-me nos ombros até à meta e levar-me ao "colo" até casa. 
É por isto que voltamos, pela amizade e pela luta. Pela dor e pela glória. Pelo desconhecido que sabemos que vai ser nosso amigo e pelos nossos amigos que sabemos não nos abandonarem nunca. Pelas noites longas e pelo céu polvilhado pela forte luz das estrelas que, aqui e ali, caem em direção ao infinito, pelos nascer e pôr do sol, pelos que nos esperam por ali, horas a fio. Partimos e chegamos todos juntos.
O ALUT é o lado do Algarve mais genuíno e reconfortante. É um caldeirão onde se misturam a amizade e a resistência, temperados com o recôndito onde não se chega sem alma. Uma sana loucura.

É o amor à amizade.







quinta-feira, julho 18, 2019

Santiago - Finisterra 2019

Já faço "Caminhos" desde 2013.

Quando saí para o primeiro fomos logo avisados pelo mais experiente "Caminheiro" do grupo de que, depois de fazer um "caminho", não há quem não queira voltar.
Esse primeiro, bem como o segundo, foi o Caminho Central Português, caminho mais utilizado por cá, passa por Rates, Barcelos, Ponte de Lima, Valença, Tuy, Pontevedra, Redondela, até "entroncar com todos os que existem, no seu "fim", Santiago de Compostela. Há um ano fiz o Português da Costa, hoje em crescimento dado que utiliza toda a recente estrutura construída à beira mar entre Matosinhos e a Póvoa de Varzim (e que "esvaziou" o original, por Santiago de Custóias), fazendo deste o mais escolhido por quem nos visita com este propósito e que desfruta assim da agradável temperatura das praias do norte. Confesso que foi um dos que mais gostei de fazer, pela envolvente natural - varia entre as bucólicas zonas de campo pouco distantes do mar e os imensos areais minhotos -, e pela pouca afluência na chamada Costa da Morte - a Costa galega, mais de pedra do que de areia. Os momentos de introspecção são muitos, as distâncias percorridas sozinho são também imensas, o que nos faz sentir sempre mais peregrinos que meros caminhantes. Tudo isto sem nunca nos sentirmos fora do "Caminho", cruzando sempre, aqui e ali, peregrinos solitários ou em pequenos grupos. Não se vêem por aqui grupos numerosos de "peregrinação", como vulgarmente se encontram nos mais utilizados.

Em Dezembro de 2014 fui pela primeira vez fazer o Caminho de Santiago a Finisterra. Fomos, eu e a Susana - por sua proposta, fazer o que sobra depois da chegada à (demasiado) urbana Santiago e a sua movimentada e ruidosa Catedral. Surpreendidos pela extraordinária monotonia de verde, aqui e ali rasgado por rios e algumas (poucas) casas, desfrutámos de cada hora daqueles três fantásticos dias de Inverno, e do fim ideal, junto ao mar. Podem ler o relato aqui.

Este ano, num desafio surgido na noite da passada quinta feira, a meio de um churrasco de verão, convenci o Meixedo a fazer o mesmo Caminho. Aliciado pelo facto de não acabar em Santiago, mas sim em Finisterra, e adequado aos 3 dias que tinha disponíveis, aceitou de imediato. No dia seguinte lá fomos, rumo a Compostela. Noite dormida, partimos trilho fora. Não consigo descrever tudo o que por lá fomos vivenciando e experimentando, entre dias de aguaceiros de verão, daqueles de trovoada que deixam no ar o cheiro a terra quente e húmida, outro de sol chato e persistente que nos fez terminar o dia com um mergulho na praia de Muxia, e que precedeu o de clima ideal para quem quer desfrutar sem "derreter" ou tremer de frio um dia de névoa da costa noroeste da península, dos que não dão para ir à praia, mas que também não são de ficar em casa. Não há mais para dizer, seriam incompreensíveis palavras para quem nunca se fez ao "Caminho", e redundâncias para quem já teve o privilégio de os percorrer. Formidável Caminho, manancial de páginas marcadas para a vida.

De todos os que fazemos há sempre histórias para construir uma "tela" na nossa memória, e há sempre palavras, episódios ou pessoas, que nos fazem recordar aqueles dias, que os retratam na perfeição. Neste, como no primeiro, ficou-me na memória uma frase de um rapaz - francês, a julgar pelo sotaque -, 35, não mais de 40 anos, tez morena, cabelo a roçar o louro por baixo do pó que o cobria (ao cabelo e às roupas - escuras, clareadas pela poeira dos dias). Desvendou-nos com alegria no olhar o significado da frase que ilustra uma pequena "loja" (bar?) na rua principal de Finisterra, quase a chegar à cidade velha. "Sabes porque é que o verdadeiro Caminho começa no fim?" (em inglês), num tom moderadamente elevado para fazer notar a pertinência da pergunta; a resposta veio com a mesma rapidez, mas num tom já mais atenuado por já ter cativado a nossa atenção: "porque tens sempre vontade de regressar, como temos sempre vontade de buscar o sol, na vida e na natureza". Não falou mais. O João retomou a marcha com um "vamos ao km 0 e já voltamos", eu segui-o. Não voltamos porque tivemos de apanhar um autocarro, o último que nos dava ainda uma esperança ténue de chegar ao Porto no mesmo dia, necessidade imposta por obrigações profissionais. Podemos calcorrear km, caminhos múltiplos, trajetos sem fim. Nunca se sabe o que começa ou acaba, mesmo que nos pareça o início, o epílogo ou o princípio do fim. O(s) caminho(s) que fazemos são sempre mais do que aquilo que (nos) parecem. O Caminho, como explicava o eloquente "francês"(?), é uma espiral de ida e volta, é um ciclo sem fim, com aparentes pontos extremos.



Fica mais uma excelente experiência, ficam as memórias, ficam as vivências, ficam os laços que sempre se consolidam nestes dias de mochila às costas em que nos parece que viveríamos melhor com muito menos do que achamos precisar. Nada é o que parece ser, e tudo pode ser aquilo que nos parece.



Sigamos (n)o Caminho, vivendo o melhor que pudermos e soubermos.


quinta-feira, julho 04, 2019

11 anos a correr, 10 anos depois, um Balanço

Faz este mês 11 anos que deixei de fumar, e 10 anos que consegui correr mais de 7 km.
Entretanto, mais de 8 dezenas de maratonas e ultras depois, bem mais de 1/4 acima dos 100 km, somadas a muitos km em "passeios" com amigos, cujo epílogo vai invariavelmente dar ao mesmo lugar - uma mesa -, impõe-se um balanço.
Aqui vai a minha retrospectiva destes anos de "atleta".
Comecei a correr para perder peso. É um excelente motivo, comum a tanta gente e dos mais mencionados em estudos, para além do "para fugir à mulher/marido". Diziam-me que bastava o hábito da corrida e nós íamos ganhando vontade de correr mais e mais e "virávamos" atletas. Ao princípio foi mais ou menos assim. Dos mais de 200 metros diários a correr - sempre depois de longas caminhadas -, até chegar aos 7 km sem parar, foi um pulo. Um ano com treinos curtos de velocidade (corrida) e longos de resistência (caminhadas) levaram-me ao maravilhoso mundo do chamado "endurance", ou em português para desportistas, o meio-fundo e fundo. Fundo seria o buraco onde me enfiaria se tivesse descoberto algum no fim das 2h20 gastas a percorrer a minha primeira meia maratona. Porra, aquilo parece um semáforo verde em hora de ponta, tantas eram as máquinas que saiam prego a fundo, apesar de lhes chamarem corridas de resistência. Isso, ou eu era mesmo muito lento. Vi imediatamente que não era para mim. Fiz sangue nas mamas, assei os tintins, apareceram-me bolhas nos pés e fiquei com um moreno à trolha que nem vos digo. Mas não desisti. Corri sempre que pude durante todo o ano seguinte. Fui até a mais uma meia maratona onde consegui, pasme-se, baixar um minuto ao meu PB - e foi aqui que comecei a entender o léxico que usavam nas transmissões televisivas de atletismo. Ainda nesse ano fiz o meu SB aos 10 km e outro PB na Maratona. Um PB de merda, note-se, já que 4h28 para correr 42 km... Enfim. Aqui também não me safei. Apesar de toda a experiência adquirida entre PB's e SB's, voltei a queimar os ditos, a assar o rabo e a acabar com sangue nos mamilos. Foi também aqui que as minhas unhas passaram a ser negras e com a grossura dos cascos de um camelo, características que não mais foram revertidas, até hoje, 10 anos volvidos.
Tinha entrado num mundo de tontos. Íamos a maratonas e voltávamos sem conseguir descer escadas. Fomos a Milão, Sevilha, Lisboa, depois ao Gerês e a Caminha. Demos com uma prova numa terra ao pé de Coimbra com nome de Miranda do Corvo, onde uns tontos diziam ter uma "Maratona de Montanha" e saiu-nos uma longa caminhada, tal era o medo de cair se nos soltássemos das pedras onde nos agarrávamos, ou se não nos aguentássemos de pé nas ravinas que nos punham a subir ou descer. Dessa trouxemos garrafões de vinho, salpicões e chouriços. Na véspera andamos por lá a comer chanfana, coisa a que os nutricionistas não achava piada nenhuma. E foi aqui que todos começamos uma nova carreira neste maravilhoso e enganador mundo dos "atletas": O Maraturismo. Tanto foi o turismo, que até fomos ao Entroncamento! Correr uma outra maratona de monte. Aí voltei às bolhas e comecei o dilema das sapatilhas. Parecíamos todos uns entendidos, que afinal "as Trabuco XIV já não eram tão boas como as XIII", como se andássemos há séculos naquela vida de caminhar pelos montes que já ninguém cruzava. Éramos tão entendidos na poda que até tínhamos no grupo um tipo que tinha um blogue com nutricionista e tudo. Nessa, saímos do Entroncamento e fomos ao João dos Leitões, beber espumante e comer umas sandes. É que depois do garrafão e do paio que nos deram nos Abutres, a malta habituou-se à carne de porco para recuperar do esforço (dizem que é muito enzimática) e não queríamos mudar de recuperador (recovery, em linguagem de atleta). Não mais deixamos de ir comer depois das provas. Mas as provas eram cada vez mais longe, que os montes também o são, e então começamos a programar as refeições antes das ditas. De cabrito a chanfana, de verde tinto a "papa figos" acompanhado de tábuas de queijos e presunto foi um arraial de experiência. Um dos nossos chegou às 100 maratonas nesse ano. Nós chegávamos então às 10, ou 20. Tipos experimentados. Começamos então a aumentar a nossa larga experiência em... Comida.
O Vítor, do blogue, veio com uma ideia tonta de irmos a Santiago. Não a pé, que isso não desgasta para comer, íamos a correr. E fomos, 5 "atletas" e uma santa no apoio - que é como quem diz, na preparação da comida. Comemos como verdadeiros atletas desta coisa que agora se chama "ultra". Sandes de tudo, especialidades variadas e mais alguma coisa, marchava tudo (menos farinha de pau... em sandes). Aqui começamos uma nova capacidade, digna dos experientes: Comer e correr ao mesmo tempo, seguido de paragens para beber umas cervejas. Saímos daquela semana tão experientes, que decidimos fazê-lo com quem quisesse aprender. Daí até juntarmos dois cozinheiros e duas dezenas de comensais numa casa no Gerês foi um saltinho. Entre os dois treinos diários, marchavam 4 refeições bem regadas a tinto. Como este "Campus" foi no Inverno levamos um presunto "pata negra" para acompanhar o vinho e as tertúlias à lareira. Hoje chamam a estes encontros "Trail Camps", nós em 2013 chamavamos-lhes "tertúlias gastronómicas com treinos a acompanhar" - Treinos e Tertúlias nos Trilhos. Os treinos foram engraçados, os trilhos eram giros, mas duravam 5 horas por dia. Das 11 que sobravam depois de dormirmos 8, eram para treinar a capacidade de enfardar. Ninguém fez bolhas nos pés, nem assou o rabo. Descobrimos então que éramos tão bons a comer e beber, que não deixaríamos nunca de ser ultra maratonistas, vulgos enfardadores desportivos.
Nesse ano saltei para mais longas distâncias, que eu não queria por nada voltar à minha forma rechonchuda. Continuei a assar o rabo, mas aqui já passei a usar uns excelentes adesivos nos mamilos, que evito esquecer. Sabem, é que tudo o que assa, arde que se farta no banho. Os pés passaram então à fase de fazerem parte de um balão cheio de água. A bolha ocupa toda a base, furamos aquilo por todos os lados, mas ela aparece sempre insistentemente, como uma visita indesejada de Domingo à tarde quando estamos descansados na sesta. Começam as agulhas e as linhas nos pés. Reparem que, começando uma carreira desportiva uns anos antes, já somos comensais e costureiros.
Ora para longas distâncias tínhamos de fazer treinos mais longos e em montanha. Começamos os passeios domingueiros, com passagem por tascos emblemáticos, ou a terminar em algum repasto farto. Até "treinos" longos com almoço de cabrito e bacalhau assado a meio fizemos, em treinos mais técnicos e específicos para longas distâncias. No advento do que outros vieram a chamar treinos bravos, fizemos treinos na Serra de Valongo, com "Tripas à moda do Porto" e maduro tinto no final, acompanhados ao acordeão. Acabávamos os treinos sempre felizes (ou alegres) e a cantar. No Porto tínhamos um treino semanal de rampas a que chamávamos de "treino das iscas", porque acabavam irremediavelmente na "Cremilde" - um icónico tasco ao fundo das escadas do Barredo, na Ribeira -, de onde saíamos já aos s"s (para aquecer). Éramos uns atletas de endurance. Admirável mundo das ultras.
Fomos somando experiências, umas atrás das outras. Eu deixei de assar o rabo e de ligar às bolhas. Passei a usar uma pomada que um amigo me aconselhou - "de bum bum de néném" -. e as bolhas aparecem em cima de outras, enquanto as unhas parecem camadas de cartolina, também sobrepostas. Vão saindo e caindo, sem nunca terem voltado à cor do início de carreira.
Continuamos todos a correr. Entretanto, uns casaram, outros descasaram, outros lesionaram-se, outros têm agora programas de TV. Tudo resultado das provas, que o endurance não transforma apenas as unhas dos pés. Entre casamentos, meniscos partidos e condropatias mais ou menos crónicas, juntamo-nos sempre mais para comer e beber do que para treinar. Os filhos destes ultras estão a caminho da faculdade ou mesmo já licenciados; os meus tempos de provas não melhoram grande coisa, mas não perdemos esperança em melhorar o nosso longo curriculo de roteiros gastronómico-desportivos. Já sabemos de cor os caminhos (e restaurantes) de provas por todo o país. Somos agora uma espécie de "Clube dos Atletas Mortos" e dos "Unidos ao garfo", sem esquecer a hidratação, que como sabemos é fundamental para um bom desempenho desportivo, pelo que também nos unimos ao copo.
E pronto. Estamos velhos, não somos os prometidos atletas, mas somos saudáveis. Felizmente somos todos perfeitinhos. E os miúdos também, obrigado.
Numa última tentativa, lá convenci alguns a fazerem provas mais longas. Como não percebemos de mais nada para além de comida e bebida, enfiámos um Viagra a um e mandámos o tipo para uma prova de mais de 100 km. E não é que resultou? O rapaz acabou sem violar ninguém. A preocupação maior é que não bebe tanto como devia, ainda desidrata. Pior, como com a idade está a ficar sem equilíbrio, temos medo que volte a cair. Já aconteceu duas vezes, temos que o manter "de pé", firme e hirto - daí o Viagra.
Resumindo: Comecei a correr para perder peso, passei ao Endurance para virar atleta e acabei num grupo de homens maduros que se transformam recorrentemente num grupo de adolescentes divertidos em busca de experiências inesquecíveis e marcantes.

Isn't that awesome?

sexta-feira, maio 31, 2019

Azores Trail 2019 - Grande Rota dos Baleeiros

Who Knows? But you never know unless you try.
Há histórias incríveis no imenso mundo da corrida.
Cada vez me convenço mais da máxima: Correr o que me apetece, a ritmos baixos, desfrutando do prazer que me proporciona. Philip Maffetone defende mesmo que é a melhor forma de ganhar velocidade, mas isso são contas de um rosário que não quero desfiar.
No passado fim de semana, durante a habitual conferência de apresentação do Azores Trail Run, o João Carvalho Joca apresentou, entre muitos outros, um inspirador Senhor, que do alto dos seus 71 anos contava o segredo que afinal eu já adoptara.
Às perguntas de como conseguir consecutivas maratonas abaixo das 3 horas, com provas de 50 km ou mais entre elas, tudo isto tendo começado a competir aos 58, respondia sorridente:
- I... Just run!



118 Maratonas/Ultras, completadas ao fim de 25 horas, nos 118 Km da Whalers' Great Route Ultra-Trail®, no Faial, no passado fim de semana. Carreira que começou na Maratona de Nova Iorque, com um "modesto" tempo de 3h43.
Em Dezembro último, na Maratona de Jacksonville, fez o melhor tempo de sempre no seu escalão, com uns incríveis 2h54'23". E, pasme-se, não foi a sua primeira abaixo das 3h.
A sua maior façanha, diz, foi concluir em 3 meses consecutivos, 3 provas de mais de 200 milhas.
Gene Dykes, franzino - 63 kg em 178 cm de homem - ligeiramente curvado no sorriso com que parece anunciar a sua presença, é inspirador.
Começou a correr na Faculdade. Tentou o sucesso no atletismo, mas rapidamente percebeu que não tinha técnica ou rapidez, tendo dedicado a sua "carreira" de desportista ao Golfe e Bowling. A corrida foi fazendo parte da sua vida apenas na tentativa de se manter em forma, fazendo jogging com intermitente regularidade.
Em 2006 inscreveu-se na Maratona de Nova Iorque, e durante 7 anos foi correndo maratonas, melhorando o seu tempo desde os 3h43 da estreia até 3h16. Numa tentativa de baixar este já interessante tempo, foi a Toronto e, desilusão, fez 3h29. Decide então contratar um treinador e desde então tem melhorado ano após ano, até ao recorde de Dezembro último - recorde que não será oficial, já que a organização não pagou o licenciamento da prova à Federação, o que o inviabiliza. Nada que incomode Gene. Parece até que tem quase a certeza de o vir a bater.
O trail chegou pelas corridas de aventura, e tal como todos nós, foi tentando diferentes distâncias, até que concluiu 3 provas consecutivas de 200 milhas em 3 meses, também um feito nunca alcançado por nenhum outro atleta da sua idade. Este ano começou com provas de 50, 100 e 200 milhas em Janeiro e Fevereiro, com "descansos" máximos de uma semana, como forma de preparação para a Maratona de Boston que concluiu em 2h58'50, melhor tempo de sempre no escalão 70-74. Seguiu-se uma outra maratona na semana seguinte em 3h18. Tudo isto serviu, claro, como preparação para um evento de 24h para ir em busca de novos máximos. No dia 11 de Maio correu 179,92km, batendo o recorde americano das 24h para maiores de 70 e o recorde das 100 milhas no mesmo escalão por quase uma hora de diferença (21h06 vs 21h54). Conheçam-no na primeira pessoa, no vídeo abaixo.


Há um ano conheci, também no Faial, na Grande Rota dos Baleeiros, uma inspiradora professora americana, atleta National Geographic pela inspiração que é para milhares de pessoas, Mirna Valerio, que este ano regressou aos Açores com um grupo de uma quinzena de mulheres que acreditam no seu lema "se eu consigo correr, todos conseguem". A Mirna é uma grande mulher, que tem feito um caminho de perda de peso, correndo, sem estar obcecada com o seu corpo ou peso. É um processo natural, que a levou já a concluir 10 ultra maratonas e 9 maratonas de estrada, e que mostra que a corrida não tem obstáculos.



A distância rainha do evento foi ganha pelo Leonardo Diogo, madeirense de 51 anos, de quem tenho o prazer de ser amigo, e com quem tenho tido o prazer de partilhar excelentes momentos, antes e depois das corridas, que durante... Foi seguramente outro recorde. Não deve ter havido vencedor noutra prova do Ultra Trail World Tour, outro M50. Excecional!
São estes exemplos que, mais do que nos apresentarem atletas de topo internacional - que também gostam, apresentam-se e voltam às provas do Azores Trail Run - fazem deste um evento diferente num universo diferente, de homens e mulheres que nos fazem acreditar que em cada atleta com que nos cruzamos nos trilhos, está um caminho de vida inspirador.
Obrigado Mário Leal. Obrigado ao Azores Trail Run, imbuído por todos os habitantes que nos fazem sentir em casa, vestindo a camisola de voluntário ou aplaudindo o pelotão que brota, entre o pôr do sol e o crepúsculo, lá do fundo do Porto do Salão na saída de prova mais bonita que conheço. Uma prova que nos engole em simpatia, uma prova onde nos levam ao colo de abastecimento em abastecimento e onde é impossível não voltar. Impossível. Os olhos reluzentes da Marla e do Marco que deixaram o bebé António com os avós, a simpatia dos que vieram de Portalegre para não largar a linha de meta até chegarem os últimos - eu e o Meixedo. A felicidade de uma médica que já há muitos anos adoptou o Faial como regaço e que não prescinde das suas férias para estar neste evento. Os fisioterapeutas que não se cansam. Os escuteiros que ganham 80% do que ganha o chefe, que por sua vez ganha 80% do que ganham os organizadores - sim, que os sorrisos, os "obrigados" e os abraços não são só para quem dirige. Centenas de voluntários, uns mais oficiais, outros menos como o Orlando e a querida Leonor, sempre de máquina em punho prontos a registar momentos eternos. O Joca que veio de Chamonix abraçar os amigos e os desconhecidos. A Renata, que vai que não vai, a Paula que é uma máquina à frente da frente de comida. O Paulo, o Carlos Pedro, o Olindo e a Carla, o Dário que foi mas não sem antes marcar uns largos km de percurso, o Alexandre que liderou os homens das espetadas e acabou o fim de semana a oferecer a casa para férias e a fazer mais uns amigos. O Lúcio que despe o fato e aplaude, a Lina que leva toda a prole do Mário e organizam-se em mais uma equipa empenhada, que a pequena (grande!) Francisca remata sempre com o sorriso que herdou dos pais.
Esta prova foi longa. Hão-de faltar referências a muitos voluntários, algumas injustamente, como os funcionários do parque - liderados pelo João Melo - que vão mantendo os trilhos que nos levam de vulcão em vulcão, sempre por mais uma maravilha a descobrir. E depois há um voluntário que viajou do Porto e fez a sua 50ª maratona nestes 118 km da Grande Rota dos Baleeiros - João Meixedo, meu amigo de há alguns anos, e que me acompanha desde a minha primeira maratona. Dormiu pouco, montou e limpou tendas no dia da prova, dormiu pouco na véspera, e mesmo assim acreditou no que eu lhe fui dizendo, concluindo comigo mais uma grande aventura, que podemos somar às muitas que já fizemos. Também ele não achava possível acabar esta "empreitada" nas condições em que a fez, mas sem tentar, nunca saberia. Nada melhor que fazer com um amigo uma prova que é um desfile de amizade.

Entrega e amizade, são as palavras que melhor definem esta organização. É impossível ir ao Azores Trail Run e sair dali indiferente ao espírito de entrega e partilha.

Obrigado e até 2020!