quarta-feira, maio 18, 2022

99ª - Ser-se o que se pode é uma felicidade

O Marco, primogénito dos 7 filhos do casal Pinho, corre desde que me lembro dele. No basquetebol primeiro e depois no futebol juvenil do Salgueiros não construiu grande historial, mas era dedicado, e assíduo nas equipas iniciais. Depois, e como todos somos julgados e lembrados pelos nossos piores momentos, “desistiu” do futebol com uma frase que  ouvi e nunca mais esqueci: “O campo é demasiado comprido”, respondeu ao pai quando lhe perguntou porque não queria mais jogar. 

Uns anos mais tarde, já depois da passagem militar obrigatória que voluntariamente fez nos Fuzileiros, voltou ao futebol, agora amador (dos que amam, já que nada mais justifica andar a levar pancada em campos pelados com “direito” a duche de água fria no fim) e por lá andou largos anos, alguns ora comigo na mesma equipa, ora com um ou outro dos 5 rapazes lá de casa. Até aos veteranos manteve a “carreira”. Em paralelo corria. Passado o trauma dos “campos compridos”, lembro-me que correu a primeira edição da S. Silvestre do Porto e algumas das mais antigas corridas populares do grande Porto, nunca excedendo os 21 km da já exigente meia-maratona. Estávamos no tempo em que corriam poucos, muito menos os que pouca corrida treinavam. 
Fiz o primeiro treino exclusivo de corrida com ele, a poucos dias da minha primeira prova - os 7 km da Corrida do Homem e da Mulher, em 2009, que ligava a marginal de Leça a Matosinhos, prova que ele também correu. Depois disso, apenas uma ou outra meia maratona juntos, eventualmente apenas no início, já que ele sempre foi mais rápido que eu (e bastante mais leve). Aventurou-se numa primeira experiência de trail em 2013, na primeira edição do Paleozóico, mas não gostou da maioria das 8h que demorou a concluir aquela que seria a sua primeira experiência acima da distância maratona, e logo numa ultra. Uns anos mais tarde tentou a de estrada, no Porto, tendo vindo a concluir à segunda tentativa, disparando um “não tenho assim tanto tempo para correr, 2h bastam”, voltando assim por mais uns anos aos 21 km de limite. 
Em Novembro último, e depois de muitos treinos por Valongo, voltou aos trilhos, no Trail Longo dos Amigos da Montanha. Inscreveu-se e foi sorteado para a Ultra dos Abutres, mas o covid pregou-lhe uma partida. Adiada a estreia anual para Santa Luzia, voltou aos longos e deixou a ultra, a sua segunda (terceira acima da distância maratona), para Domingo, nos 48 km do Melgaço Alvarinho Trail. Foi ao pódio receber o prémio do segundo lugar do seu escalão, e mais uma vez jurou para nunca mais. Não fossem os interregnos das juras tão longos, e já teria concluído mais algumas. O tirocínio de qualquer um de nós, conclui-se depois de percebermos que jurámos tanto para nunca mais, que vamos acumulando experiências fantásticas, que nos preenchem e nos levam da exaustão à descoberta das enormidades que conseguimos conquistar. 


O texto vai longo e ainda só vos apresentei o Marco. Mas esta minha 99ª maratona, para além da feliz coincidência da companhia do meu irmão, começou e acabou com uma conversa com a Catarina Palmeiro, irmã do Rogério Palmeiro - beirão que todos nos habituamos a ver nas provas longas, com o Pedro Santos e Hélio Costa. A Catarina também correu a ultra. No início fomos uns km juntos, fizemos as apresentações do costume, disse que em era irmã, e contou-me que o Rogério está internado no Hospital da Universidade de Coimbra, para onde foi em estado grave após um acidente. Espera-o uma longa recuperação. Durante toda a prova não mais o infortúnio do Rogério me saiu do pensamento, e fui-me lembrando de tantos com quem corri nos últimos 12 anos, que entretanto por diversos motivos terão deixado de correr. 

O Rogério espalha simpatia. Tem sempre um sorriso e uma palavra de incentivo com todos os que com ele partilham trilhos. É uma verdadeira máquina de dedicação ao trabalho, o que faz com que tenha sucesso nas empreitadas em que se vai metendo, maioritariamente com os também beirões e colegas do Boavista Trail, Pedro e Hélio. Tenho a certeza que vai “terminar” esta ultra que o destino traiçoeiramente lhe atravessou à frente, com o mesmo sorriso com que terminou qualquer outra corrida da sua vida. 


Estaremos todos aqui a torcer pela sua rápida recuperação, prontos para o ajudar e apoiar.

Sou feliz a correr, mas sou muito mais feliz a correr com tantos outros que o fazem com abnegação, dedicação, trabalho e objetivos. Os meus são o modesto “chegar ao fim”, que é o que posso. Não adianta muito sonhar com o que é impossível e feito apenas de fantasia, é sempre preferível a realidade do alcançável. Mas sinceramente, nem nos meus mais rebuscados sonhos, alguma vez imaginei estar à porta de alcançar a 100ª maratona. 


A pobreza de corredor que sou vs a arrogância de querer fazer sempre mais, são imensamente inferiores ao resultado megalómano que acabei por construir. E para aqui chegar foi preciso ter a sorte que a muitos vai faltando. 


Vou meter os olhos num medo qualquer, e abraçar a 100ª. 

99 provas: 34 de 3 dígitos - a maior, 300 km, 23 de “estrada” e as restantes entre os 43 e os 90 km. Tudo junto dá uma bela média de mais de 85 km. 

8495 km. 


Ser-se o que se pode é uma felicidade. 






sábado, maio 02, 2020

UTMB 2017 - Conquistadores do Inútil

Conquistadores do Inútil.

Lionel Terray vivia a montanha intensamente. Desde os 3 anos que escalava por pura diversão. Fugia da escola para as montanhas para desagrado dos pais e tornou-se agricultor em Chamonix quando esta não era ainda a varanda turística que agora se tornou. Aos 21 anos entrou na Escola de alta montanha e daí até à sua morte tornou-se pioneiro em várias conquistas, desde o primeiro a esquiar a face Norte do Monte Branco ou a ser um dos primeiros a subir a um cume acima dos 8.000 metros - o Annapurna em 1950. Morreu aos 45 anos num acidente de escalada numa "parede" fácil do seu "quintal" próximo de casa. Está enterrado no Cemitério de Chamonix - um autêntico "panteão" de homens da montanha e que vale a pena visitar.

As conquistas de Lionel e de muitos dos que no seu tempo se aventuravam nas montanhas eram de um significado especial para o próprio mas, no momento, eram uma inutilidade para ele e apenas um motivo de regozijo quando contasse aos demais. Não havia fotos ou diretos.

No Monte Branco por que Lionel se apaixonou e que atrai tantos aventureiros há algumas histórias de conquistas inúteis. Todos os que conquistaram o lugar na partida e que por um motivo ou outro não puderam correr, pelos que partiram com problemas físicos e fizeram menos do que esperavam, mesmo os que correram 3 km e tiveram que parar. 30, 70 ou 120 km no Ultra Trail Monte Branco significam sempre conquistas inúteis. Conquista de pontos, conquista de uma subida, de mais uma descida, de mais uma noite sem dormir ou de mais um km. São as nossas conquistas inúteis. Subimos mais um cume no carrocel que nos desenham e ali, quase sozinhos, interiorizamos mais uma conquista. Inutilmente para os demais, se não chegamos à meta.

O que todos temos em comum com Lionel é que para chegar às conquistas que o notabilizaram, houve muitas mais que só a ele satisfizeram. Inúteis.

Parei aos 70 km do UTMB. Os motivos pouco importam. Os 4500 d+ que fiz até ali foram divididos por 4 "cumes" à Lionel - inúteis, mas conquistados. Agora vou receber os que vão chegando a Chamonix com muito mais pequenas grandes conquistas - km a km, metro a metro de superação que mais não lhes dão que uma satisfação e sensação de conquista com pouco significado se ficarem pelo caminho. A chegada à meta é o prémio que só quem lá andou percebe. Por cá todos vivem a montanha e dão aos finalistas a honra das palmas merecidas. Reconhecimento do que conquistaram, inutilmente no momento e cheio de significado no final. A volta dentro de Chamonix é o que torna tão especial tanta conquista.

sexta-feira, abril 17, 2020

O estudo que não é um estudo e que se tornou viral

O Estudo que nunca foi um estudo mas que se tornou viral como se alguma vez tivesse sido um estudo, afinal não é um estudo.

Confusos?

O ser humano tem queda para comportamentos de... manada, comportamentos estes ampliados pelo medo. Se nos dizem que vem aí o lobo, logo nos enfiamos num qualquer buraco com medo do lobo, especialmente se nos mostrarem pessoas a ser comidas, tanto mais se eram as que não acreditavam que havia um lobo.

Nos últimos dias, uma simulação feita em computador por uma equipa de engenheiros belgas que nos mostra o efeito spray das exalações, tosses e espirros de pessoas que estão a correr, a caminhar ou a andar de bicicleta tornou-se viral. Talvez tenha visto este gif no Twitter, Facebook, ou NextDoor. Ou, como eu, talvez lhe tenham sido enviadas mensagens escritas por amigos ou familiares preocupados.




Embora este não fosse o objectivo específico da simulação, está actualmente a ser usada nas redes sociais como prova científica de que as pessoas que estão a correr e a andar de bicicleta estão a pôr outras em risco. Se está a apanhar com "gotículas" ou "perdigotos" em si, a percepção com que fica, é que está em risco de contrair coronavírus.

"As pessoas devem ler e não ler mal os meus tweets e textos", escreveu Bert Blocken, da Universidade de Tecnologia de Eindhoven, o principal investigador da simulação, num e-mail para a Motherboard. "Nunca e em parte alguma desencorajei as pessoas de caminhar, correr ou andar de bicicleta". Antes pelo contrário. Talvez as pessoas devessem ler mais, e reagir menos".

Blocken ainda não publicou um documento revisto por pares sobre a simulação. De facto, ainda nem sequer publicou um estudo não revisto por pares. Em vez disso, falou com um repórter Belga sobre o assunto, que por sua vez escreveu um artigo noticioso, que foi agora agregado e amplamente partilhado por muitas publicações. Tendo em conta o que Blocken concluiu e divulgou, tomado à letra, algumas pessoas estão compreensivelmente a concluir que é impossível correr ou andar de bicicleta em segurança nas cidades - ele recomenda uma distância de 20 metros entre os ciclistas e outras pessoas, algo que é impossível de fazer nas cidades. A questão com a sugestão de Blocken de que "lemos mais e reagimos menos" é que não há quase nada para ler, e não há estudo para criticar.

A equipa de Blocken deu o extraordinário passo de falar à comunicação social sobre a sua investigação antes de publicar qualquer coisa sobre o assunto. Não há nenhum estudo escrito para ler ou interpretar. Não conhecemos as especificidades sobre como o estudo foi feito ou como a simulação foi feita, porque a equipa de investigação não partilhou essa informação.

No Twitter, Blocken disse que "atendendo à excepcionalidade desta crise, por ser tão imediata e surpreendente, excepcionalmente, virámos a ordem do avesso": (1) meios de comunicação social, (2) hoje apresentei a proposta de financiamento (3) artigo de revisão pelos pares, mais tarde. O público não pode esperar meses pela revisão pelos pares. Tenho um pequeno texto, vou colocá-lo no Linked In na próxima hora".

Um dia depois, esse post do LinkedIn ainda não tinha sido publicado. O que a equipa publicou é algo a que chama um "white paper", mas que na verdade é uma versão traduzida para o Google do artigo do jornal belga que não foi escrito por Blocken ou pela sua equipa, mas que o cita. Ansys, a empresa que fez a simulação em parceria com Blocken, também publicou um pequeno mas vago comunicado de imprensa. Entretanto, esta simulação tornou-se viral.

via GIPHY

Um artigo escrito por Jurgen Thoelen, que se descreve como um "empresário, construindo nuvens em todas as formas e feitios e atleta ao longo da vida" foi partilhado milhares de vezes. O artigo tem sido partilhado em grupos de whatsapp, no Facebook e no Twitter, e está a ser usado para fomentar uma batalha entre caminheiros, corredores e ciclistas. Um comentário típico é algo como isto, partilhado numa página do Facebook: "Aos egoístas" da minha cidade: "As pessoas continuam a fazer isto. Corredores e ciclistas com zero de consideração pelos outros 🤬🤬".
A simulação que não é um estudo foi assim partilhada com pouco ou nenhum contexto, e os boatos e medos espalharam-se por si mesmos.

Nada foi apresentado sobre as especificidades ou método deste ensaio, do que ele realmente mostra, quais poderiam ser as suas limitações e como foi feito. O que sugere pode ser exacto e útil, mas não há forma de o comprovar. E no entanto, esta investigação já está a ser utilizada para pedir às pessoas que mudem o seu comportamento e a ser apresentada como prova definitiva de que correr e andar de bicicleta são actos irresponsáveis durante a pandemia.

Blocken disse num e-mail, que não era essa a sua intenção.

"A escolha foi feita de comum acordo com todos os investigadores envolvidos e ambas as agências de comunicação universitárias. A crise é mundial e a situação é urgente", escreveu. "Não queríamos manter os resultados em segredo até termos encontrado tempo para escrever a história completa". Se eu tivesse feito o contrário, teríamos sido igualmente criticados. Dado todo o alarido que agora noto, farei mais um esforço e publicarei a história completa no Linked In ainda esta noite".

"A propósito, isto é aerodinâmica e não virologia. A COVID-19 não vai esperar meses ou até o nosso artigo ser publicado."

Blocken tem razão: Enfrentamos uma situação urgente, e é importante que a investigação científica rigorosa seja divulgada o mais rapidamente possível. Mas centenas de outros cientistas conseguiram publicar, nas últimas semanas, estudos sobre o coronavírus revistos por pares, numa escala temporal acelerada. Milhares de outros publicaram estudos que não são revistos por pares, mas que são, pelo menos, estudos da forma como costumamos pensar neles: Os métodos utilizados e conclusões são explicados de uma forma rigorosa que deixa espaço para o contraditório. Embora esta seja uma situação extraordinária, por alguma razão existem salvaguardas em algumas publicações científicas, e já vimos durante esta pandemia que processos precipitados levam à publicação de más e imprecisas conclusões (isto não sugere que a investigação de Blocken é má ou imprecisa, não temos forma de o saber ou afirmar, tendo como base o que foi publicado).

Mesmo que as simulações sejam verdadeiras, devem ser os virologistas e peritos a fazer recomendações de saúde pública, e não "jornalistas" free lancers nos "media", que foi o que aconteceu. Este tipo de investigação é obviamente importante e deve ser feito, mas deve ser divulgado de forma responsável, com as advertências, limitações e incógnitas claramente explicadas e só depois ser utilizada por virologistas e responsáveis de saúde pública para fazer recomendações concretas às pessoas.

Mostrei a investigação de Blocken a William Hanage, um epidemiologista do Centro para a Dinâmica das Doenças Transmissíveis de Harvard. Diz que é um péssimo sinal o facto de a da investigação de Blocken se ter tornado viral e que a sua sugestão nas conclusões de que esta investigação é um "modesto contributo" para a luta contra o Covid-19 o deixou "particularmente irritado".

Ainda não há a evidência científica da propagação do coronavírus pelo ar, havendo até a percepção de que o risco global de transmissão parece ser menor ao ar livre. Os glóbulos e as gotículas são provavelmente portadores do vírus, mas isso não significa que alguém que recebe uma gotícula do hálito de alguém vá ser infectado. A transmissão depende de uma série de factores; um deles é a "carga viral", que é a medida de quanto do vírus está presente em cada gotícula.

"Do lado da epidemiologia - onde as gotículas são muito menos relevantes do que a quantidade de transmissão que ocorre por esta via", disse Hanage. "Os conselhos sobre o afastamento físico consistem realmente em *reduzir* o risco de transmissão, em vez de o eliminar completamente". Refere que estudos como este "não são realmente úteis", pelo menos, não para os epidemiologistas. A quantidade de transmissão a partir desta via, mesmo que seja possível, será infimamente menor que outras". E acrescentou "é preocupante" a rapidez com que o estudo tem sido difundido... especialmente "quando se considera que tive de escrever este e-mail para o comentar em vez de dar os toques finais a um modelo de transmissão em ambiente hospitalar".

Numa nota de rodapé das conclusões sobre o ensaio, Blocken admite que "actualmente o tema de debates intensos entre cientistas de todo o mundo - é até que ponto os resíduos de micro-gotas com o vírus, após evaporação, ainda comportam um risco de infecção". A continuação da investigação virológica deveria lançar mais luz sobre esta questão". Na semana passada, Ed Yong, do The Atlantic, falou com vários virologistas sobre este assunto, e ainda não há consenso sobre o perigo de se fazer exercício físico ou andar na rua, mas há muita investigação que sugere que os benefícios para a saúde mental do exercício são importantes e bastante relevantes. A questão da carga viral e da transmissão não é abordada nem mencionada no artigo original, nem no jornal belga Blocken. Quando questionei o autor se não o preocupava o facto de o seu trabalho se ter tornado viral, especialmente por se basear em conclusões de não especialistas, ele respondeu: "Estou surpreendido com esta pergunta. O senhor, com a sua experiência, deve saber que apenas se pode controlar a primeira linha de atenção dos meios de comunicação social, mas depois as pessoas escrevem histórias das histórias, e é praticamente impossível controlá-las", escreveu. "Isso teria acontecido igualmente se o artigo completo já tivesse sido publicado. Esta não é a minha primeira grande cobertura mediática, por isso já lá estive, já o fiz. Há imprensa livre".

Hanage diz que não há problema em fazer exercício no exterior, desde que se "aplique o bom senso". "Penso que há um equilíbrio", disse, "a não ser na situação em que existam taxas realmente elevadas de transmissão comunitária.

Texto (mal) traduzido daqui.

quinta-feira, dezembro 05, 2019

Algarviana Ultra Trail 2019 - O amor à amizade



Dizer o que nos faz tentar correr 300 km por serras, cerros e barrancos, numa permanente luta contra as adversidades e contra o tempo - que é limitado entre todas as etapas -, é um exercício difícil de concretizar. Já explicar o que nos leva a repetir uma experiência destas, passa de difícil a possível, quando imediatamente depois de a terminarmos, sentimos saudade do conforto que todo aquele staff nos transmite, e descarregamos num choro mais ou menos encapotado toda a emoção que fomos acumulando ao longo de um caminho árduo que nos levou até ali, à tão desejada Ponta de Sagres.
Numa prova de mais de 300 km, o apoio tem uma importância significativa. Tão significativa que depois do sono reposto, e do regresso a casa, todas as palavras ditas e escritas vão diretas a quem nos incentiva, acarinha ou suporta no terreno, sem esperar nada mais que talvez um sorriso em troca, fazendo deste Algarviana Ultra Trail um hino à amizade.
Diz a sabedoria popular que os melhores amigos se fazem nas adversidades - "no hospital, na tropa ou na cadeia"-, isto talvez porque quando estamos mais vulneráveis, nos juntamos a quem conhece e partilha dos nossos receios, males ou fraquezas. Nos trilhos é habitual encontrarmos gente que jamais esqueceremos. É ainda mais habitual vivermos momentos inesquecíveis, com o inevitável colocar de marcos onde as emoções se refletem na superfície da pele e nos fazem arrepiar de cada vez que as invocamos.
Nas 11 bases de vida da ALUT, há gente que nos acolhe nos braços com a ternura de quem protege seres demasiado frágeis, e a bravura de quem admira os afoitos guerreiros que numa marcha gloriosa vão vencendo hordes de inimigos. Somos todos soldados de um exército em batalha contra os elementos de uma serra que não faz reféns, como provam as dezenas de baixas que provoca a cada edição. Feridos, mas não tombados, a principal onda de atletas segue os soldados mais capazes, personificados nos que mais rapidamente cruzam todo o percurso. Pelo caminho, ao contrário das guerras a sério, não se fazem reféns, fazem-se amigos.
Entre tantos guerreiros e permanentes batalhas, há reforços que vão chegando e outros que por lá andam, que nos confortam na partida e chegada de cada uma das 11 encadeadas lutas. Braços de outros recolhem-nos, tomamo-los como nossos, açambarcamos o conforto que nos proporcionam e fazemos deles nossos. Fazemos em cada cara repetida um amigo antigo e em cada cara nova reclamamos a sua dedicada amizade. 
Soldados que soçobram às batalhas juntam-se ao exército da nossa - dos que ficam-,  salvação. À medida que as horas passam e a Serra do Caldeirão e o seu nascer-do-sol único vão ficando para trás, aumenta um em detrimento do outro. Os resistentes vão desistindo, os desistentes resistindo e os combatentes insistindo. 
A partir da segunda noite, os que de nós gostam ou de nós têm dó, rumam ao Algarve serrano em nosso socorro. Sem poderem batalhar a nosso lado, juntam-se aos exércitos que nos aguardam quartel a quartel, enchendo-nos de brio e orgulho, embebedando-nos com mimo, transformando o conforto em motivação para os podermos ver de novo a todos, conhecidos, amigos antigos e recentes. Assim vamos lutando e vencendo, uns todas as 11 batalhas, outros umas quantas de um lado, as outras do outro, sem nunca despirem a pele de lutadores. 
Nas lutas com os trilhos, para além de amigos, somamos inimigos. As bolhas, o frio, o sono, o cansaço, as pedras do caminho, a chuva intensa e fria embrulhada pelo denso nevoeiro da Fóia, a fome ou o enjoo, a sede, os pés e as pernas que latejam a cada passo serpenteado por Monchique rumo à Picota que tarda em chegar. Entre dias e montes curtos e noites e subidas mais ou menos longas, a maior luz é a dos sorrisos que nos esperam, das vozes que imaginamos nas mensagem que lemos ou que ouvimos nas raras alturas em que a rede permite uma chamada, o telefonema a que todos temos direito, mesmo sendo reféns das nossas decisões. Continuamos km a km, base a base até ao glorioso caminho final que nos faz entrar num pequeno paraíso com que sonhamos desde Alcoutim: A Ponta de Sagres e o seu Farol. Ali, entramos com todos os que nos trouxeram caminho fora, amigos chegados, amigos desconhecidos, amigos que jamais esqueceremos. 
Num cantinho inesquecível desta minha viagem ficam a Flor, o Rui, a São, o António, o Carlos, o Teodoro, o Conceição, o Germano, o Bruno, a Fátima, a Alexandra, a Liliana, o Gabriel, a Cláudia, o Jorge, o João, o José e tantos outros que correram a meu lado ou tão só me deram um minuto de si, que significou muito mais para mim. A juntar aos amigos humanos, em mais uma edição do ALUT, não podia faltar uma companhia "animal". Na etapa mais desafiante para o cérebro e para o corpo - a 9ª, de Marmelete a Barão de S. João - uma etapa de 36 km que normalmente ocupa grande parte da 3ª noite, juntou-se a mim e ao António, o "Tiro" da Fóia, um cão gigante com ares de pastor, preto, que nos acompanhou até ao abastecimento e que, ali chegado, se deitou ao meu lado a dormir. Tinha corrido mais de 40 km desde casa, onde regressou no dia seguinte, depois de contactado o dono. Amigável e simpático, protegeu-nos das investidas de matilhas de pequenos canídeos agressivos e foi-nos alegrando o caminho. Um amigo improvável, de onde menos esperavamos, numa terra onde são seguramente mais que os humanos. Neste cocktail de "gente" boa, juntaram-se dois fundamentais amigos: O Miguel e o João Paulo, que vieram do Porto segurar-me nos ombros até à meta e levar-me ao "colo" até casa. 
É por isto que voltamos, pela amizade e pela luta. Pela dor e pela glória. Pelo desconhecido que sabemos que vai ser nosso amigo e pelos nossos amigos que sabemos não nos abandonarem nunca. Pelas noites longas e pelo céu polvilhado pela forte luz das estrelas que, aqui e ali, caem em direção ao infinito, pelos nascer e pôr do sol, pelos que nos esperam por ali, horas a fio. Partimos e chegamos todos juntos.
O ALUT é o lado do Algarve mais genuíno e reconfortante. É um caldeirão onde se misturam a amizade e a resistência, temperados com o recôndito onde não se chega sem alma. Uma sana loucura.

É o amor à amizade.







quinta-feira, julho 18, 2019

Santiago - Finisterra 2019

Já faço "Caminhos" desde 2013.

Quando saí para o primeiro fomos logo avisados pelo mais experiente "Caminheiro" do grupo de que, depois de fazer um "caminho", não há quem não queira voltar.
Esse primeiro, bem como o segundo, foi o Caminho Central Português, caminho mais utilizado por cá, passa por Rates, Barcelos, Ponte de Lima, Valença, Tuy, Pontevedra, Redondela, até "entroncar com todos os que existem, no seu "fim", Santiago de Compostela. Há um ano fiz o Português da Costa, hoje em crescimento dado que utiliza toda a recente estrutura construída à beira mar entre Matosinhos e a Póvoa de Varzim (e que "esvaziou" o original, por Santiago de Custóias), fazendo deste o mais escolhido por quem nos visita com este propósito e que desfruta assim da agradável temperatura das praias do norte. Confesso que foi um dos que mais gostei de fazer, pela envolvente natural - varia entre as bucólicas zonas de campo pouco distantes do mar e os imensos areais minhotos -, e pela pouca afluência na chamada Costa da Morte - a Costa galega, mais de pedra do que de areia. Os momentos de introspecção são muitos, as distâncias percorridas sozinho são também imensas, o que nos faz sentir sempre mais peregrinos que meros caminhantes. Tudo isto sem nunca nos sentirmos fora do "Caminho", cruzando sempre, aqui e ali, peregrinos solitários ou em pequenos grupos. Não se vêem por aqui grupos numerosos de "peregrinação", como vulgarmente se encontram nos mais utilizados.

Em Dezembro de 2014 fui pela primeira vez fazer o Caminho de Santiago a Finisterra. Fomos, eu e a Susana - por sua proposta, fazer o que sobra depois da chegada à (demasiado) urbana Santiago e a sua movimentada e ruidosa Catedral. Surpreendidos pela extraordinária monotonia de verde, aqui e ali rasgado por rios e algumas (poucas) casas, desfrutámos de cada hora daqueles três fantásticos dias de Inverno, e do fim ideal, junto ao mar. Podem ler o relato aqui.

Este ano, num desafio surgido na noite da passada quinta feira, a meio de um churrasco de verão, convenci o Meixedo a fazer o mesmo Caminho. Aliciado pelo facto de não acabar em Santiago, mas sim em Finisterra, e adequado aos 3 dias que tinha disponíveis, aceitou de imediato. No dia seguinte lá fomos, rumo a Compostela. Noite dormida, partimos trilho fora. Não consigo descrever tudo o que por lá fomos vivenciando e experimentando, entre dias de aguaceiros de verão, daqueles de trovoada que deixam no ar o cheiro a terra quente e húmida, outro de sol chato e persistente que nos fez terminar o dia com um mergulho na praia de Muxia, e que precedeu o de clima ideal para quem quer desfrutar sem "derreter" ou tremer de frio um dia de névoa da costa noroeste da península, dos que não dão para ir à praia, mas que também não são de ficar em casa. Não há mais para dizer, seriam incompreensíveis palavras para quem nunca se fez ao "Caminho", e redundâncias para quem já teve o privilégio de os percorrer. Formidável Caminho, manancial de páginas marcadas para a vida.

De todos os que fazemos há sempre histórias para construir uma "tela" na nossa memória, e há sempre palavras, episódios ou pessoas, que nos fazem recordar aqueles dias, que os retratam na perfeição. Neste, como no primeiro, ficou-me na memória uma frase de um rapaz - francês, a julgar pelo sotaque -, 35, não mais de 40 anos, tez morena, cabelo a roçar o louro por baixo do pó que o cobria (ao cabelo e às roupas - escuras, clareadas pela poeira dos dias). Desvendou-nos com alegria no olhar o significado da frase que ilustra uma pequena "loja" (bar?) na rua principal de Finisterra, quase a chegar à cidade velha. "Sabes porque é que o verdadeiro Caminho começa no fim?" (em inglês), num tom moderadamente elevado para fazer notar a pertinência da pergunta; a resposta veio com a mesma rapidez, mas num tom já mais atenuado por já ter cativado a nossa atenção: "porque tens sempre vontade de regressar, como temos sempre vontade de buscar o sol, na vida e na natureza". Não falou mais. O João retomou a marcha com um "vamos ao km 0 e já voltamos", eu segui-o. Não voltamos porque tivemos de apanhar um autocarro, o último que nos dava ainda uma esperança ténue de chegar ao Porto no mesmo dia, necessidade imposta por obrigações profissionais. Podemos calcorrear km, caminhos múltiplos, trajetos sem fim. Nunca se sabe o que começa ou acaba, mesmo que nos pareça o início, o epílogo ou o princípio do fim. O(s) caminho(s) que fazemos são sempre mais do que aquilo que (nos) parecem. O Caminho, como explicava o eloquente "francês"(?), é uma espiral de ida e volta, é um ciclo sem fim, com aparentes pontos extremos.



Fica mais uma excelente experiência, ficam as memórias, ficam as vivências, ficam os laços que sempre se consolidam nestes dias de mochila às costas em que nos parece que viveríamos melhor com muito menos do que achamos precisar. Nada é o que parece ser, e tudo pode ser aquilo que nos parece.



Sigamos (n)o Caminho, vivendo o melhor que pudermos e soubermos.


quinta-feira, julho 04, 2019

11 anos a correr, 10 anos depois, um Balanço

Faz este mês 11 anos que deixei de fumar, e 10 anos que consegui correr mais de 7 km.
Entretanto, mais de 8 dezenas de maratonas e ultras depois, bem mais de 1/4 acima dos 100 km, somadas a muitos km em "passeios" com amigos, cujo epílogo vai invariavelmente dar ao mesmo lugar - uma mesa -, impõe-se um balanço.
Aqui vai a minha retrospectiva destes anos de "atleta".
Comecei a correr para perder peso. É um excelente motivo, comum a tanta gente e dos mais mencionados em estudos, para além do "para fugir à mulher/marido". Diziam-me que bastava o hábito da corrida e nós íamos ganhando vontade de correr mais e mais e "virávamos" atletas. Ao princípio foi mais ou menos assim. Dos mais de 200 metros diários a correr - sempre depois de longas caminhadas -, até chegar aos 7 km sem parar, foi um pulo. Um ano com treinos curtos de velocidade (corrida) e longos de resistência (caminhadas) levaram-me ao maravilhoso mundo do chamado "endurance", ou em português para desportistas, o meio-fundo e fundo. Fundo seria o buraco onde me enfiaria se tivesse descoberto algum no fim das 2h20 gastas a percorrer a minha primeira meia maratona. Porra, aquilo parece um semáforo verde em hora de ponta, tantas eram as máquinas que saiam prego a fundo, apesar de lhes chamarem corridas de resistência. Isso, ou eu era mesmo muito lento. Vi imediatamente que não era para mim. Fiz sangue nas mamas, assei os tintins, apareceram-me bolhas nos pés e fiquei com um moreno à trolha que nem vos digo. Mas não desisti. Corri sempre que pude durante todo o ano seguinte. Fui até a mais uma meia maratona onde consegui, pasme-se, baixar um minuto ao meu PB - e foi aqui que comecei a entender o léxico que usavam nas transmissões televisivas de atletismo. Ainda nesse ano fiz o meu SB aos 10 km e outro PB na Maratona. Um PB de merda, note-se, já que 4h28 para correr 42 km... Enfim. Aqui também não me safei. Apesar de toda a experiência adquirida entre PB's e SB's, voltei a queimar os ditos, a assar o rabo e a acabar com sangue nos mamilos. Foi também aqui que as minhas unhas passaram a ser negras e com a grossura dos cascos de um camelo, características que não mais foram revertidas, até hoje, 10 anos volvidos.
Tinha entrado num mundo de tontos. Íamos a maratonas e voltávamos sem conseguir descer escadas. Fomos a Milão, Sevilha, Lisboa, depois ao Gerês e a Caminha. Demos com uma prova numa terra ao pé de Coimbra com nome de Miranda do Corvo, onde uns tontos diziam ter uma "Maratona de Montanha" e saiu-nos uma longa caminhada, tal era o medo de cair se nos soltássemos das pedras onde nos agarrávamos, ou se não nos aguentássemos de pé nas ravinas que nos punham a subir ou descer. Dessa trouxemos garrafões de vinho, salpicões e chouriços. Na véspera andamos por lá a comer chanfana, coisa a que os nutricionistas não achava piada nenhuma. E foi aqui que todos começamos uma nova carreira neste maravilhoso e enganador mundo dos "atletas": O Maraturismo. Tanto foi o turismo, que até fomos ao Entroncamento! Correr uma outra maratona de monte. Aí voltei às bolhas e comecei o dilema das sapatilhas. Parecíamos todos uns entendidos, que afinal "as Trabuco XIV já não eram tão boas como as XIII", como se andássemos há séculos naquela vida de caminhar pelos montes que já ninguém cruzava. Éramos tão entendidos na poda que até tínhamos no grupo um tipo que tinha um blogue com nutricionista e tudo. Nessa, saímos do Entroncamento e fomos ao João dos Leitões, beber espumante e comer umas sandes. É que depois do garrafão e do paio que nos deram nos Abutres, a malta habituou-se à carne de porco para recuperar do esforço (dizem que é muito enzimática) e não queríamos mudar de recuperador (recovery, em linguagem de atleta). Não mais deixamos de ir comer depois das provas. Mas as provas eram cada vez mais longe, que os montes também o são, e então começamos a programar as refeições antes das ditas. De cabrito a chanfana, de verde tinto a "papa figos" acompanhado de tábuas de queijos e presunto foi um arraial de experiência. Um dos nossos chegou às 100 maratonas nesse ano. Nós chegávamos então às 10, ou 20. Tipos experimentados. Começamos então a aumentar a nossa larga experiência em... Comida.
O Vítor, do blogue, veio com uma ideia tonta de irmos a Santiago. Não a pé, que isso não desgasta para comer, íamos a correr. E fomos, 5 "atletas" e uma santa no apoio - que é como quem diz, na preparação da comida. Comemos como verdadeiros atletas desta coisa que agora se chama "ultra". Sandes de tudo, especialidades variadas e mais alguma coisa, marchava tudo (menos farinha de pau... em sandes). Aqui começamos uma nova capacidade, digna dos experientes: Comer e correr ao mesmo tempo, seguido de paragens para beber umas cervejas. Saímos daquela semana tão experientes, que decidimos fazê-lo com quem quisesse aprender. Daí até juntarmos dois cozinheiros e duas dezenas de comensais numa casa no Gerês foi um saltinho. Entre os dois treinos diários, marchavam 4 refeições bem regadas a tinto. Como este "Campus" foi no Inverno levamos um presunto "pata negra" para acompanhar o vinho e as tertúlias à lareira. Hoje chamam a estes encontros "Trail Camps", nós em 2013 chamavamos-lhes "tertúlias gastronómicas com treinos a acompanhar" - Treinos e Tertúlias nos Trilhos. Os treinos foram engraçados, os trilhos eram giros, mas duravam 5 horas por dia. Das 11 que sobravam depois de dormirmos 8, eram para treinar a capacidade de enfardar. Ninguém fez bolhas nos pés, nem assou o rabo. Descobrimos então que éramos tão bons a comer e beber, que não deixaríamos nunca de ser ultra maratonistas, vulgos enfardadores desportivos.
Nesse ano saltei para mais longas distâncias, que eu não queria por nada voltar à minha forma rechonchuda. Continuei a assar o rabo, mas aqui já passei a usar uns excelentes adesivos nos mamilos, que evito esquecer. Sabem, é que tudo o que assa, arde que se farta no banho. Os pés passaram então à fase de fazerem parte de um balão cheio de água. A bolha ocupa toda a base, furamos aquilo por todos os lados, mas ela aparece sempre insistentemente, como uma visita indesejada de Domingo à tarde quando estamos descansados na sesta. Começam as agulhas e as linhas nos pés. Reparem que, começando uma carreira desportiva uns anos antes, já somos comensais e costureiros.
Ora para longas distâncias tínhamos de fazer treinos mais longos e em montanha. Começamos os passeios domingueiros, com passagem por tascos emblemáticos, ou a terminar em algum repasto farto. Até "treinos" longos com almoço de cabrito e bacalhau assado a meio fizemos, em treinos mais técnicos e específicos para longas distâncias. No advento do que outros vieram a chamar treinos bravos, fizemos treinos na Serra de Valongo, com "Tripas à moda do Porto" e maduro tinto no final, acompanhados ao acordeão. Acabávamos os treinos sempre felizes (ou alegres) e a cantar. No Porto tínhamos um treino semanal de rampas a que chamávamos de "treino das iscas", porque acabavam irremediavelmente na "Cremilde" - um icónico tasco ao fundo das escadas do Barredo, na Ribeira -, de onde saíamos já aos s"s (para aquecer). Éramos uns atletas de endurance. Admirável mundo das ultras.
Fomos somando experiências, umas atrás das outras. Eu deixei de assar o rabo e de ligar às bolhas. Passei a usar uma pomada que um amigo me aconselhou - "de bum bum de néném" -. e as bolhas aparecem em cima de outras, enquanto as unhas parecem camadas de cartolina, também sobrepostas. Vão saindo e caindo, sem nunca terem voltado à cor do início de carreira.
Continuamos todos a correr. Entretanto, uns casaram, outros descasaram, outros lesionaram-se, outros têm agora programas de TV. Tudo resultado das provas, que o endurance não transforma apenas as unhas dos pés. Entre casamentos, meniscos partidos e condropatias mais ou menos crónicas, juntamo-nos sempre mais para comer e beber do que para treinar. Os filhos destes ultras estão a caminho da faculdade ou mesmo já licenciados; os meus tempos de provas não melhoram grande coisa, mas não perdemos esperança em melhorar o nosso longo curriculo de roteiros gastronómico-desportivos. Já sabemos de cor os caminhos (e restaurantes) de provas por todo o país. Somos agora uma espécie de "Clube dos Atletas Mortos" e dos "Unidos ao garfo", sem esquecer a hidratação, que como sabemos é fundamental para um bom desempenho desportivo, pelo que também nos unimos ao copo.
E pronto. Estamos velhos, não somos os prometidos atletas, mas somos saudáveis. Felizmente somos todos perfeitinhos. E os miúdos também, obrigado.
Numa última tentativa, lá convenci alguns a fazerem provas mais longas. Como não percebemos de mais nada para além de comida e bebida, enfiámos um Viagra a um e mandámos o tipo para uma prova de mais de 100 km. E não é que resultou? O rapaz acabou sem violar ninguém. A preocupação maior é que não bebe tanto como devia, ainda desidrata. Pior, como com a idade está a ficar sem equilíbrio, temos medo que volte a cair. Já aconteceu duas vezes, temos que o manter "de pé", firme e hirto - daí o Viagra.
Resumindo: Comecei a correr para perder peso, passei ao Endurance para virar atleta e acabei num grupo de homens maduros que se transformam recorrentemente num grupo de adolescentes divertidos em busca de experiências inesquecíveis e marcantes.

Isn't that awesome?

sexta-feira, maio 31, 2019

Azores Trail 2019 - Grande Rota dos Baleeiros

Who Knows? But you never know unless you try.
Há histórias incríveis no imenso mundo da corrida.
Cada vez me convenço mais da máxima: Correr o que me apetece, a ritmos baixos, desfrutando do prazer que me proporciona. Philip Maffetone defende mesmo que é a melhor forma de ganhar velocidade, mas isso são contas de um rosário que não quero desfiar.
No passado fim de semana, durante a habitual conferência de apresentação do Azores Trail Run, o João Carvalho Joca apresentou, entre muitos outros, um inspirador Senhor, que do alto dos seus 71 anos contava o segredo que afinal eu já adoptara.
Às perguntas de como conseguir consecutivas maratonas abaixo das 3 horas, com provas de 50 km ou mais entre elas, tudo isto tendo começado a competir aos 58, respondia sorridente:
- I... Just run!



118 Maratonas/Ultras, completadas ao fim de 25 horas, nos 118 Km da Whalers' Great Route Ultra-Trail®, no Faial, no passado fim de semana. Carreira que começou na Maratona de Nova Iorque, com um "modesto" tempo de 3h43.
Em Dezembro último, na Maratona de Jacksonville, fez o melhor tempo de sempre no seu escalão, com uns incríveis 2h54'23". E, pasme-se, não foi a sua primeira abaixo das 3h.
A sua maior façanha, diz, foi concluir em 3 meses consecutivos, 3 provas de mais de 200 milhas.
Gene Dykes, franzino - 63 kg em 178 cm de homem - ligeiramente curvado no sorriso com que parece anunciar a sua presença, é inspirador.
Começou a correr na Faculdade. Tentou o sucesso no atletismo, mas rapidamente percebeu que não tinha técnica ou rapidez, tendo dedicado a sua "carreira" de desportista ao Golfe e Bowling. A corrida foi fazendo parte da sua vida apenas na tentativa de se manter em forma, fazendo jogging com intermitente regularidade.
Em 2006 inscreveu-se na Maratona de Nova Iorque, e durante 7 anos foi correndo maratonas, melhorando o seu tempo desde os 3h43 da estreia até 3h16. Numa tentativa de baixar este já interessante tempo, foi a Toronto e, desilusão, fez 3h29. Decide então contratar um treinador e desde então tem melhorado ano após ano, até ao recorde de Dezembro último - recorde que não será oficial, já que a organização não pagou o licenciamento da prova à Federação, o que o inviabiliza. Nada que incomode Gene. Parece até que tem quase a certeza de o vir a bater.
O trail chegou pelas corridas de aventura, e tal como todos nós, foi tentando diferentes distâncias, até que concluiu 3 provas consecutivas de 200 milhas em 3 meses, também um feito nunca alcançado por nenhum outro atleta da sua idade. Este ano começou com provas de 50, 100 e 200 milhas em Janeiro e Fevereiro, com "descansos" máximos de uma semana, como forma de preparação para a Maratona de Boston que concluiu em 2h58'50, melhor tempo de sempre no escalão 70-74. Seguiu-se uma outra maratona na semana seguinte em 3h18. Tudo isto serviu, claro, como preparação para um evento de 24h para ir em busca de novos máximos. No dia 11 de Maio correu 179,92km, batendo o recorde americano das 24h para maiores de 70 e o recorde das 100 milhas no mesmo escalão por quase uma hora de diferença (21h06 vs 21h54). Conheçam-no na primeira pessoa, no vídeo abaixo.


Há um ano conheci, também no Faial, na Grande Rota dos Baleeiros, uma inspiradora professora americana, atleta National Geographic pela inspiração que é para milhares de pessoas, Mirna Valerio, que este ano regressou aos Açores com um grupo de uma quinzena de mulheres que acreditam no seu lema "se eu consigo correr, todos conseguem". A Mirna é uma grande mulher, que tem feito um caminho de perda de peso, correndo, sem estar obcecada com o seu corpo ou peso. É um processo natural, que a levou já a concluir 10 ultra maratonas e 9 maratonas de estrada, e que mostra que a corrida não tem obstáculos.



A distância rainha do evento foi ganha pelo Leonardo Diogo, madeirense de 51 anos, de quem tenho o prazer de ser amigo, e com quem tenho tido o prazer de partilhar excelentes momentos, antes e depois das corridas, que durante... Foi seguramente outro recorde. Não deve ter havido vencedor noutra prova do Ultra Trail World Tour, outro M50. Excecional!
São estes exemplos que, mais do que nos apresentarem atletas de topo internacional - que também gostam, apresentam-se e voltam às provas do Azores Trail Run - fazem deste um evento diferente num universo diferente, de homens e mulheres que nos fazem acreditar que em cada atleta com que nos cruzamos nos trilhos, está um caminho de vida inspirador.
Obrigado Mário Leal. Obrigado ao Azores Trail Run, imbuído por todos os habitantes que nos fazem sentir em casa, vestindo a camisola de voluntário ou aplaudindo o pelotão que brota, entre o pôr do sol e o crepúsculo, lá do fundo do Porto do Salão na saída de prova mais bonita que conheço. Uma prova que nos engole em simpatia, uma prova onde nos levam ao colo de abastecimento em abastecimento e onde é impossível não voltar. Impossível. Os olhos reluzentes da Marla e do Marco que deixaram o bebé António com os avós, a simpatia dos que vieram de Portalegre para não largar a linha de meta até chegarem os últimos - eu e o Meixedo. A felicidade de uma médica que já há muitos anos adoptou o Faial como regaço e que não prescinde das suas férias para estar neste evento. Os fisioterapeutas que não se cansam. Os escuteiros que ganham 80% do que ganha o chefe, que por sua vez ganha 80% do que ganham os organizadores - sim, que os sorrisos, os "obrigados" e os abraços não são só para quem dirige. Centenas de voluntários, uns mais oficiais, outros menos como o Orlando e a querida Leonor, sempre de máquina em punho prontos a registar momentos eternos. O Joca que veio de Chamonix abraçar os amigos e os desconhecidos. A Renata, que vai que não vai, a Paula que é uma máquina à frente da frente de comida. O Paulo, o Carlos Pedro, o Olindo e a Carla, o Dário que foi mas não sem antes marcar uns largos km de percurso, o Alexandre que liderou os homens das espetadas e acabou o fim de semana a oferecer a casa para férias e a fazer mais uns amigos. O Lúcio que despe o fato e aplaude, a Lina que leva toda a prole do Mário e organizam-se em mais uma equipa empenhada, que a pequena (grande!) Francisca remata sempre com o sorriso que herdou dos pais.
Esta prova foi longa. Hão-de faltar referências a muitos voluntários, algumas injustamente, como os funcionários do parque - liderados pelo João Melo - que vão mantendo os trilhos que nos levam de vulcão em vulcão, sempre por mais uma maravilha a descobrir. E depois há um voluntário que viajou do Porto e fez a sua 50ª maratona nestes 118 km da Grande Rota dos Baleeiros - João Meixedo, meu amigo de há alguns anos, e que me acompanha desde a minha primeira maratona. Dormiu pouco, montou e limpou tendas no dia da prova, dormiu pouco na véspera, e mesmo assim acreditou no que eu lhe fui dizendo, concluindo comigo mais uma grande aventura, que podemos somar às muitas que já fizemos. Também ele não achava possível acabar esta "empreitada" nas condições em que a fez, mas sem tentar, nunca saberia. Nada melhor que fazer com um amigo uma prova que é um desfile de amizade.

Entrega e amizade, são as palavras que melhor definem esta organização. É impossível ir ao Azores Trail Run e sair dali indiferente ao espírito de entrega e partilha.

Obrigado e até 2020!






sexta-feira, maio 04, 2018

A “Vitamina i” - iboprufeno



A "Vitamina i" - iboprufeno. Voltaren, Brufen ou outras marcas comerciais que todos já conhecem ou ouviram falar, preocupam muito mais do que a falta de preparação de alguns para as provas em que se inscrevem. Cada um sabe de si. Se está bem ou mal preparado logo vê no dia da prova. Já fui muito bem preparado para Ultras que não terminei. Os DNF são sobrevalorizados, ainda mais nas redes sociais, levando os atletas, principalmente nós, amadores, a cometer erros graves inconscientemente.

Mais do que a preparação física ou mental, preocupam-me os que fazem provas à custa da chamada vitamina "i". Fazer um MIUT "à custa" de uma dezena de ibuprofenos vai-vos fazer muito pior à saúde do que o fazer sem treino adequado.

"Tomar analgésicos enquanto corre distâncias longas duplica seu risco de lesão renal aguda, de acordo com nova pesquisa. Corredores não são estranhos à dor, mas também podemos ficar muito confortáveis medicando-se com anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) para aliviar parte dessa dor. Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford descobriram que os corredores de resistência que tomam o analgésico ibuprofeno enquanto correm dobram o risco de lesão renal aguda.

O estudo

Publicado em 5 de julho no Emergency Medical Journal, pesquisadores de Stanford explicaram que 75 por cento dos ultramaratonistas usam ibuprofeno enquanto treinam e competem sem perceber o stresse que a prática causa aos rins. O líder do estudo, Grant Lipman, MD, um professor associado de medicina de emergência em Stanford e diretor da Stanford Wilderness Medicine, tendo atuado como diretor médico em inúmeras ultramaratonas em todo o mundo explica:

"Correr essas provas tende a doer. Eu vi em primeira mão como é comum para os corredores tomar ibuprofeno antes, durante e depois dessas corridas para aliviar a dor e reduzir o inchaço das articulações.", disse Lipman, que atuou como diretor médico nos eventos de Ultramaratona RacingThePlanet, que se realizam em várias partes do mundo, incluindo China, Antártida e Chile.

Os resultados

O estudo duplo cego - (NT: um método de ensaio clínico realizado em seres humanos onde nem o examinado (objeto de estudo) nem o examinador sabem o que está a ser utilizado como variável em um dado momento, comumente usado para validação de práticas experimentais quantitativas em ciência) -  pedia que 89 corredores tomassem ibuprofeno (real ou placebo) durante um segmento de 80 km de uma ultramaratona de 250 km. Dos 89 participantes, 39 tiveram lesão renal aguda após a primeira secção de 80km da corrida, tendo tomado uma pastilha de ibuprofeno de 400 mg a cada quatro horas. Houve uma taxa 18 por cento maior de lesão renal entre aqueles que tomaram a droga em comparação com aqueles que não tomaram. "Basicamente, para cada cinco corredores que tomaram ibuprofeno, houve um caso adicional de lesão renal aguda", afirmou Lipman, acrescentando que o ibuprofeno fez "uma diferença impressionante" para o aumento destas lesões.

O risco para corredores

Os corredores que tomam ibuprofeno antes, durante ou após um longo período correm risco aumentado de lesão renal porque o ibuprofeno diminui o fluxo sanguíneo. Os corredores de resistência estão muitas vezes desidratados durante a corrida, especialmente depois de algumas horas numa ultramaratona, que é quando o uso de AINEs tende a começar. "Estudos mostram que, para a maioria das pessoas, essa lesão renal aguda geralmente é resolvida dentro de um dia ou dois após a corrida. No entanto, corredores acabaram hospitalizados por insuficiência renal", disse Lipman no estudo. Neste ponto, o estudo menciona um triatleta do Boulder Colorado Ironman, de 40 anos, que morreu por insuficiência renal três dias depois de terminar a corrida. Um corredor de resistência que costumava usar o ibuprofeno para regular sua própria dor. Lipman ficou surpreendido com a extensão do impacto negativo da droga.

A solução

Se és um atleta de ultramaratonas ou de resistência de qualquer tipo, considera tomar acetaminofeno (como Tylenol) em vez de ibuprofeno para alívio da dor e adiciona um banho de gelo como uma boa medida. O próprio Lipman adicionou essas duas recomendações à sua rotina de recuperação - embora ele ainda aconselhe a moderação no uso do paracetamol."

Esqueçam os anti-inflamatórios. Esqueçam. Há casos de hemodiálise depois do abuso destes medicamentos para concluir provas longas.

As lesões nos rins são permanentes. Um DNF resolve-se com treino e numa outra oportunidade. Os vossos rins não dão segundas oportunidades. O vosso ego recupera melhor.

P.S. - De uma partilha no FB, um comentário de um médico:
"A tríade para a insuficiência renal aguda:
- desidratação
- rabdomiólise ( destruição muscular com libertação d mediadores inflamatórios)
- iatrogenia ( algo externo e em especial Anti- inflamatórios, cargas elevadas de proteínas, mas não só,...)

terça-feira, junho 27, 2017

A curiosidade de quem lê estes relatos é a de retirar algo que os faça dar o passo seguinte, de se inscreverem numa destas (aparentes) loucuras. São poucos os que leem relatos de ultra maratonas para sentirem as dores de quem os escreve. Recordo-me da minha primeira participação na Freita, na prova de 17 km, em 2011. Recordo-me de ver chegar os participantes da distância rainha – os até há 3 anos 70 km, e que são agora 100 – e de pensar por onde raio teriam andado para chegarem sem fala ao final.

Foi assim que cheguei ao Portal do Inferno, algumas horas depois da partida às 7h00 – sem fala! E são poucas as palavras que vou dispensar a este relato. Fartei-me de pensar na analogia a fazer, depois da “Branca de Neve e os 7 anões” de 2013, mas não há analogia possível com o que vivi na Freita e com o que vivo de cada vez que lá vou, seja em treino ou em passeio. Há uns tempos torci um pé no PR7, a baixa velocidade. A Freita é como um ninho de cobras, onde somos mordidos e envenenados sem antídoto possível. Fica-nos o veneno no sangue a contaminar-nos a razoabilidade e o bom senso. Certo dia quando pedi a um médico um atestado de robustez física para apresentar na partida de uma prova de 100 milhas, disse-me que só me voltaria a passar outro quando lhe apresentasse um atestado de sanidade mental. E é isto que todos os que por ali andámos somos – uns seres saudáveis mas completamente loucos por aventura, pelo mergulhar nas entranhas de uma serra que tem tudo o que nos maravilha e nos faz sentir acelerar o sangue nas veias. Subir o trilho do "Morto que matou o vivo" até à Pena e olhar para o imenso verde que transpomos para ali chegar é como tomar um potente ansiolítico. Ou anti-inflamatório, porque depois de ali chegar, apesar de tantos quilómetros que palmilhámos, já nada dói. À Pena, ou no alto de Drave – uma subida de 3 km que nos suga o que restava de energia. A serotonina, a dopamina e as outras substâncias que o cérebro vai libertando a cada passo, fazem-nos o favor de nos acalmar a dor que o “Traçador” (Traça a dor) José Moutinho nos proporciona a cada km.

A UTSF não é uma corrida de 100 km. É uma luta intensa contra os nossos medos, contra o limite do aceitável, contra o desgaste físico e mental. Lembrei-me várias vezes de quando jogava Monopólio em miúdo, e naqueles dias de azar, me fartava de sair o “Diretamente para a prisão sem passar pela casa de partida”. Lembram-se? No Monopólio recebíamos dinheiro cada vez que passávamos pela partida para podermos “comprar” as ruas e estações mais caras. Era um jogo de sorte que nos fazia eventualmente virtuais milionários. Não passar na “casa de partida” era um rombo na “Conta”. A UTSF é um manancial de “idas à prisão sem passagens pela partida”, e no entanto sabe tão bem. Provavelmente faz-me mesmo falta uma avaliação psiquiátrica…

Uma certeza trouxe da Freita: Voltarei sempre, para esta prova, para treinos, para desfrutar, porque ninguém resiste à Freita. Apesar de todos os treinos, e depois destas 6 participações, por muito que vá à Freita, há sempre algo novo, uma dor traçada por ele, uma nova subida ainda mais íngreme, uma descida de cortar a respiração, uma transposição de rios com pequenas praias fluviais que julgamos só existirem no paraíso… Enfim, uma qualquer maravilha que recordamos no dia seguinte sem nos lembrarmos onde nos doía o corpo àquela hora, já com mais de 50 km. E por isso voltamos. Para sentirmos toda aquela mistura de dor e prazer de superação, culminada com  fantásticos mergulhos em infindáveis cursos de água límpida e cristalina. Sempre mais e mais água antes de mais uma subida às profundezas do inferno.

E do inferno, ou voltamos ou nos deixamos ficar, como foi o meu caso, outra vez. Mas sem qualquer ressentimento ou arrependimento. Se há coisa que me dá prazer é andar km a insultar o doido do Moutinho e dar-lhe um abraço no final. Ele anda meses a preparar 10 excelentes traçados de 10 km, para nos proporcionar o inferno, para nos mostrar que não somos nada contra a mãe natureza. A nossa e a da Freita. Conheço-a muito bem. Tenho a certeza que ele ainda me há-de pôr a correr onde eu nunca imaginei que fosse possível.

Tudo tão belo.

Obrigado Jose Moutinho e restante equipa, tão bem co-liderada pela Flor Madureira. A UTSF é um mergulho no mundo da aventura onde nada é o que parece, onde tudo é mais belo e mais duro. É a prova onde passamos por onde ninguém passa. É a prova que inclui passagem por aldeias abandonadas a menos de 1 km de outras, só porque para lá chegar é quase preciso ser-se atleta. É uma luta contra o cansaço onde cada km é uma bênção da natureza. Abençoada Serra. Voltarei cada vez mais vezes, e voltarei seguramente ao UTSF.



P. S. - Foto da Escola de Montanha. Passo mais tempo nos rios que nos trilhos.

P. S. 2 - Texto deste ano adaptado daqui http://tripasenortadas.blogspot.pt/2014/06/ultra-trail-serra-da-freita-2014.html
É que mudou a prova, mas a serra é exactamente a mesma, e as sensações também pouco mudam.

P.S. 3 - Este texto é pessoal. Ide-vos catar.

sexta-feira, maio 19, 2017

Fazer das tripas coração!

A arte popular de transformar o que aparentemente se dispensa é equivalente ao toque de midas, que transformava em ouro tudo o que tocava. A diferença entre as duas está na atualidade da primeira em quase tudo o que se faz voluntariamente. A arte de transformar em forças todas as fraquezas e contrariedades que nos metem à frente do nariz, é uma arte portuguesa que dá frutos. Do Salvador que, aparentemente diminuído pela débil saúde e por ser dos poucos a não cantar em inglês, aos inúmeros vencedores por esse mundo fora que transcendem a dimensão de onde são oriundos, há um sem número de exemplos de gente que transborda energia, resistência, alegria e tenacidade face às adversidades, capacidades em que nós lusitanos somos pródigos. 

Portugal estará representado em Itália no campeonato do mundo de trail running, no próximo dia 10 de Junho, dia de Portugal. Não podia haver maior simbolismo para as 7 mulheres e os 6 homens que defenderão o 6º e 5º lugares conquistados coletivamente em Outubro último na prova disputada no Gerês. O trail, disciplina do atletismo que mais tem crescido nos últimos anos, é um dos maiores motores de desenvolvimento turístico dos países com conhecidas estâncias de desportos de inverno de toda a Europa. Andorra, Alpes - franceses, suíços e italianos, Espanha - Picos da Europa, Serra Nevada e Serra de Madrid, Itália, Croácia, Alemanha e muitos outros, apostam no trail para atrair turistas na época baixa deles - o Verão. 

Portugal tem já apostas seguras que visam atrair os que não conseguem correr por ser demasiado frio nos países de origem. A Madeira é o melhor exemplo de aposta neste segmento turístico que tanto movimento lhes tem trazido, e os Açores trilham já o mesmo caminho, internacionalizando provas, cuidando os percursos e fazendo a respetiva divulgação no exterior. 

A Seleção que nos representará é constituída na sua maioria por homens e mulheres que trabalham, têm família e usam o pouco tempo que lhes resta para treinar arduamente. Muitos deles, a maioria, estão entre os melhores da Europa e ombreiam com quem tem apoios para poder dedicar-se quase em exclusivo ao treino e preparação de provas. Apesar de alguns terem alcançado, por mérito das classificações no último Campeonato do Mundo, o Alto rendimento, não têm licença para representarem o País. Militares, professores ou médicos, têm de abdicar dos seus vencimentos ou gastar dias de férias, férias que dependem de autorizações superiores e que, no caso dos professores - por a competição ser coincidente com época de exames está-lhes vedado. Não basta a escassez de meios de uma seleção que é suportada quase em exclusivo pelos meios da Associação de Trail Running de Portugal - Associação que regula e organiza a modalidade, sócia da Federação Portuguesa de Atletismo, ainda lutam os seus atletas contra a fraca cultura desportiva que ainda é característica do nosso País, apesar de já termos todos em todas as modalidades, provado que sabemos ser tão tenazes e abnegados como os melhores. É que meios nem todos têm, mas a vontade depende de cada um e é uma característica que nos está cravada na identidade. A imagem da chegada da nossa primeira atleta no último Mundial - a Sara Brito, carregando a bandeira, rastejando com o olhar fixo na meta, é a prova que nem o cansaço nos derrota, nem a falta de apoios nos atrasa. É para estes que lutam com garra que temos de olhar e proporcionar forma de melhor se prepararem. Meios, à boa maneira portuguesa, desenrascamos. Só precisamos que nos olhem com mais atenção e deixem os nossos atletas lutar por Portugal. Faremos do impossível realidade.

É que transformar tripas em coração não é para qualquer um!

Foto Paulo Jorge Magalhães - Global Imagem

terça-feira, maio 02, 2017

O fim de semana de Trail em números



Como em qualquer fim de semana, houve várias provas de corrida em Portugal, um pouco por todo o lado.
Sem ter analisado os participantes em provas de estrada ou ter sequer olhado para o que aconteceu nas ilhas, deixo alguns números que me alegram e preocupam ao mesmo tempo.
Portugal é um País de modas, mas ao contrário do que muitos pensam não acho que o trail seja apenas uma moda. O trail, é a exemplo de todas as actividades ao ar livre e que nos levam a procurar as nossas origens nos locais mais recônditos e inóspitos, uma actividade saudável e comum nas economias avançadas. É uma modalidade em que todos podem e devem participar, mas que tem de ser olhada com olhos diferentes, tem de ser encarado com o profissionalismo que uma massificação destas exige. Quanto mais cedo melhor.
Atentem:

Este fim-de-semana houve, pelo menos 13 eventos de trail. Destes, quase todos tiveram duas ou mais distâncias, tendo predominado a quilometragem entre os 15 e os 30 km. O limite máximo foi de 50 km. Não tive acesso aos números de inscritos nas caminhadas, habitualmente também muito concorridas.

Trail Glória do Ribatejo (Santarém) - 650
Cascais Trail Experience (Lisboa) - 450
Mesh Nazareth Trail (Leiria) - 82
Ossónoba (Algarve) - 300
Trilhos do Alecrim (Leiria)- 85
Trail do Anjo (Porto) - 181
Raid Atlético dos Barris Trail (Setúbal) - 200
Trilhos dos Pernetas (Aveiro) - 400
Trail Fisgas do Ermelo (Vila Real) - 936
Ultra Geira Romana (Braga) - 700
Boticas Trail (Vila Real) - 200
Penacova Trail do Centro (Coimbra) - 500
Trail Varzim Lazer - ? (300 pelo menos, mas não consegui ver resultados)

Mais de 5000 pessoas em provas de trail num único fim de semana, números que nos devem fazer todos reflectir. Só a título de curiosidade, o último classificado de um dos trails de 18 km demorou mais de 5 horas, quando o primeiro dos 50 km da Geira demorou 3h50. É com esta disparidade de preparação e aptidão que temos de contar numa prova de trail. E contamos. Mas será que os promotores destas provas contam com isto?

Não falta vitalidade ao trail, falta mais regulação e atenção a um fenómeno que não para de crescer. Felizmente.



quarta-feira, abril 26, 2017

MIUT - Uma prova do caralho!



Há coisas do caralho! Há coisas boas com’ó caralho, más com’ó caralho, difíceis com’ó caralho, duras com’ó caralho, fáceis p’a caralho, bonitas com’ó caralho…
O dito, que, diz a lenda (?) tem origem na denominação do cesto do vigia que estava colocado no alto do mastro principal das caravelas e para onde eram enviados os marinheiros malcomportados, que assim, depois do enjoo provocado pelo excesso de “abanos” que se manifestavam mais na ponta do pau, acalmavam e obedeciam com mais vontade. Era mandá-los para o caralho que eles não mais incomodavam.
Na Madeira, o caralho é o pau que se usa para amassar a mistura de fruta e açúcar de cana da poncha.
Na minha terra – a Invicta, o “caralho” é mais ou menos um ponto final. É banal rematarmos o nosso estado de espírito com o banal palavrão. Reconhecemos no entanto o pudor de outras latitudes em utilizar tal liberdade para exprimir estados de alma. Por cá é um direito adquirido desde os tempos idos das cortes monárquicas, que, desconfiamos nós, quando se queriam livrar de alguém mais incómodo os mandavam para o “caralho” geográfico do País – O Norte. Foi assim facilmente assimilado o direito ao uso do calão para expressões mais enfáticas.
Sentimo-nos bem? Estamos como ó caralho!
Mal? Estamos assim como ó caralho.
Mais ou menos? Sei lá ou o caralho.
Não entendemos? Não pescamos um caralho.
Ficamos estáticos? Mexe-te caralho!
É bom? É do caralho!
E mau? Não vale um caralho.
É muito? Eishhh!! Caralho!!
E pouco? Foi pouco, caralho!
Um mentiroso? Aldrabão do caralho!
Um gajo porreiro? Um gajo do caralho!

A Ilha da Madeira à primeira vista para quem faz trail, é uma espécie de “foda-se” com uau à mistura, passando rapidamente a um “caralhos para esta merda” até culminar num “puta que pariu acabei!” ou a um “que se foda esta merda, já não aguento mais isto, caralho”!
Palavrões ouvem-se em várias línguas, já que fazer uma prova com mais de 14000 metros de desnível é livre conduto para a asneira e suficiente para um atestado de loucura. Um alemão dizia-me – a meio caminho entre o Pico Ruivo e o do Areeiro – que esta é a irmã europeia da Diagonal dos Loucos, semelhante nos milhares de degraus, na geografia, no clima e na insanidade necessária para quem, como ele ou como eu, pouco mais conseguia fazer do que andar a fugir à inevitável marretada e ao limite horário de cada um dos fodidos parciais. Desculpem o calão, mas eu fiz os 115 km do MIUT. Ganhei o direito a usá-lo. Ao contrário dos marinheiros nas caravelas, quem faz o MIUT não acalma. Transforma-se numa espécie de domador de feras aparentemente indomáveis. Fica cheio de cagança. É do caralho. E quanto menor o tempo final, maior a cagança! O treino de escadas resultou, o nutricionista ajudou, o treinador treinou bem a dor, o equipamento esteve impecável e afinal a Madeira é do caralho! Muda a cagança à medida que baixa o tempo final, mas não muda a exclamação de quem passa por aquelas subidas pirilau intermináveis, por aqueles degraus que esculpiram pela ilha – os degraus da Madeira deviam ter mais destaque na prova que a areia no deserto – por aquelas descidas de moer as melhores cartilagens e as vistas desafiantes para quem naturalmente sofre de vertigens – o ser humano vive no chão, gosta de gravidade, não foi feito para voar sem paraquedas, e no trail ninguém usa um. O nível da prova é do caralho. Estrangeiros como ó caralho, voluntários do caralho, abastecimentos também do caralho, marcações? I R R E P R E E N S Í V E I S, caralho! “Parecia uma puta de uma pista!”, era a expressão de um atleta minhoto, que sendo de um pouco mais a norte, mais carrega no direito ao calão.
Não me parece que queiram saber que caralho de chapéu era aquele que usava o François D’ Haene (um simples panamá para quem não corre pouco) nem que caralho diziam os polacos, os checos, ou o japonês enfiado num fato de sumo - que deixei de ver na subida ao Pico Ruivo, quando começavam a ficar fodidos de caralho de as subidas não terem fim. Provavelmente diziam algo tão libertador como “caralho”. Os espanhóis diziam “joder”, os franceses “putain”, os alemães “scheisse” e os ingleses e todos os que se queriam fazer entender exclamavam bem alto “fuck”! Pelo menos foi o que me disse a polaca que vestia uns calções azuis com a inscrição “Go Vegan” no rabo. Nas subidas ficava sempre com vontade de lhe dizer que eu não sou vegan nem quero ser e que o melhor era inscrever lá “força nas canetas!”, ou algo mais forte, já que quem ia atrás ia-se entretendo com a mensagem. Dizia eu que a polaca exclamava, algures entre o Pico do Areeiro e o Ribeiro Frio – descida de 9 km – que a “fucking going down hill” era “weird” porque afinal o caminho era “fucking up”. Pois, disse eu, aqui até as descidas doem. Com’ó caralho! E lá ficou a moça a penar, lixada da vida.
Nas montanhas da Madeira tudo dói. As subidas, as descidas, a noite ou o dia, as pedras ou a água. A beleza da prova é transversal. Da partida em Porto Moniz em zigue zague a subir pelo meio das casas, a primeira descida que “paga o bilhete” com milhares a apoiar ruidosa e pacientemente os que ainda descem e os que já mergulharam no breu do alto da Ribeira da Janela em direção ao Fanal, passando pelas vistas de cortar a respiração dos trilhos da Encumeada, Curral das Freiras, Rosário, os Picos – Torrinhas, Ruivo, Areeiro, e depois a costa Norte com a Vereda do Larano e a Boca do Risco. As levadas, a água que chora pelas veredas, os montes de lava transformados em gigantes picos. Lindo. Seja de noite ou de dia. Faltam-nos os “foda-se!” suficientes para classificar a prova.
É uma prova indomável onde a gestão do esforço, alimentação e hidratação, equipamento e ânimo são o essencial. Mas continuará indomável. Há sempre um ponto para quebrar.
Não é para atletas, é para malabaristas. O vassoura que ia sair no horário limite (21h30) do Posto de Apoio e Controlo (PAC) do Pico do Areeiro disse-me que eu dificilmente chegaria ao PAC da Portela dentro do tempo limite, apesar de serem só 14 km. 5 horas para 14 km não davam, achava ele. “Não chego o caralho!” Fui a “voar” e passei 50 atletas até, 15 minutos antes do limite, lá chegar – soube por SMS que me enviou o Hugo Alexandre, chefe de posto, no dia seguinte. “Cheguei, caralho!”. São horas de manobras dignas de mestre de obras a contornar dificuldades. “Estou no meio do pelotão dos tetraplégicos”, pensava eu. Estávamos todos. Do primeiro ao último, ninguém escapa. Nas subidas mais “fi-lhas-da-pu-ta” – assim mesmo silaba a silaba, como passo a passo se fazem – nestas subidas vamos passando por gente agarrada aos bastões com expressão catatónica a fitar o trilho. Perguntamos se precisa de ajuda, vemos o balbuciar do “i’m ok” com a baba a sair pelo canto da boca e fugimos como quem foge da peste que nos há-de inevitavelmente também atingir. Fraquejar no MIUT é ganhar lanço para continuar. E insiste-se. É obra!

O trail é uma luta do caralho. O MIUT é uma prova única, numa ilha excecionalmente bonita que se torna num caso de inevitável sucesso. Mérito de quem organiza, dos voluntários, das entidades que apoiam e dos atletas. Uma prova que retira do nosso léxico popular adjetivos informais que a classificam acima de boa. É muito. É “muito” em tudo. Muito boa, muito dura, muito bem marcada, muito bem controlada e muito compensadora.

Uma prova do caralho!