1ª Edição 24h Portugal – Vale de Cambra
O ser humano é uma espécie estranha, dominado por sensações químicas que o impulsionam a fazer coisas que mais nenhum ser vivo faz. A corrida de resistência é uma dessas loucuras que alguns de nós fazemos, e que muitos dos outros, os que não correm, não entendem. É sofrer por prazer.
Há uma estirpe de seres que se divertem a superar desafios, a ultrapassar metas que outros acham irracionais. Eu faço parte deste grupo cada vez maior de homens e mulheres que acham que os impossíveis não são mais que desafios mais ou menos complicados, onde a maior questão é o tempo que demorarão a concluir.
Há algum tempo que tínhamos em mente, eu, o João Meixedo, Vítor Dias e Miguel Santos, ultrapassar a barreira dos 3 dígitos numa prova de corrida. Entre outros desafios que fomos superando, fossem as duas idas a Santiago em 5 etapas de distâncias superiores à maratona, fossem as diversas provas de ultra trail de distâncias intermédias, fomos desenhando, por ideia do João, uma ideia de uma prova de 24h a correr. 24h, porque é normalmente o tempo limite atribuído para concluir a distância, e porque são habituais pelo mundo fora as provas de resistência em circuito ou em pista, e porque seria uma forma acessível (embora igualmente dura, 100 km são muitos km), de qualquer pessoa que quisesse atingir tal número, se pudesse aventurar, num local onde de forma segura poderia gerir a sua prova.
Da ideia surgiu o 24h Portugal, e deste, a enorme empreitada de por de pé uma exigente organização, para que nada faltasse. E nada faltou ou falhou. O João Meixedo e o Vítor Dias, conseguiram entretanto levantar barreiras, transpor obstáculos e dispor meios para que a ideia resultasse em pleno.
Sábado foi o dia D, já com uma arena digna de organizações profissionais, onde nada faltou, desde a tenda de descanso dos atletas, ao imenso espaço relvado para acampar, passando pela tenda principal, onde de hora a hora eram afixados os resultados, e onde os atletas, familiares e público confraternizavam enquanto abasteciam os petiscos e massas cozinhadas pelo Miguel Santos, e servidas pelo excelente contingente de voluntários da Retorta, que em conjunto com a Câmara local foi co-organizador do evento. Nada faltou, nem nada falhou. Houve atletas a partirem com mochila carregada de abastecimentos, e que ao fim de algum tempo as dispensaram, largando lastro que só causava incómodo. Eram abundantes os abastecimentos. Havia serviço de massagens, que nem eu dispensei. Havia uma tenda/Hospital de campanha com uma equipa de emergência de prevenção. Tudo foi pensado ao pormenor, para que nada faltasse aos que se aventuraram na prova.
A prova foi corrida por atletas em solitário, equipas de 2 ou de 4 elementos, masculinas/femininas ou mistas. Em paralelo decorreu uma prova de iniciação à resistência, de 3 horas, que também podia ser corrida em singular ou equipa de 3. Houve muita gente a estrear-se em distâncias que nunca pensou ser capaz de correr, desde os 20, 25 km, até aos mais de 150 de alguns. O vencedor correu mais de 190. Houve mesmo quem conseguisse percorrer mais de 120 km quase exclusivamente a caminhar. Eu, numa equipa de 4, aproveitei a madrugada de Domingo, com a ausência dos meus colegas, e cheguei aos 105 km.
Esta foi a prova que provou (passe o pleonasmo), que só quem não foi a Vale de Cambra não conseguiu superar limites. Quem teve coragem de se aventurar, superou-se (excepto um ou outro lesionado). Parabéns a todos, em especial aos vencedores, Carla André no feminino (primeiro as senhoras), sempre a superar-se, e Andrés Vasquez na geral. Por equipas e na prova de 3 horas, o domínio foi da locomotiva Retorta. Têm uma equipa de autênticos foguetes, tão depressa correm.
Resta-me fazer a devida vénia ao João Paulo Meixedo pela ideia, trabalho e dedicação à prova, ao Vítor Dias, que bem desempenhou o papel de Tenente, e à Retorta, que tem uma excelente equipa de atletismo e um contingente de voluntários que faz inveja a muitas organizações profissionais de voluntariado. Com esta equipa, e com a cooperação da Câmara Municipal, apoios dos patrocinadores e partners institucionais, a prova tem futuro assegurado.
Foi um fim-de-semana de superação, convívio, aprendizagem, partilha e cumplicidade. Não há no panorama das provas de resistência outra prova onde possamos permanentemente ver as forças e fraquezas uns dos outros. Durante 24h corremos juntos, os fortes, os menos fortes, os estreantes, os experientes. No circuito superiormente delineado, marcado e iluminado, íamos nos cruzando com o primeiro, conversando com o último, rindo com um ou outro participante das 3 horas, numa experiência que só assim é possível. Nunca noutra prova tive oportunidade de correr com o primeiro e último classificado ao mesmo tempo. Ali foi possível. E isso é único. Como é única esta nossa paixão de correr muito, com calma e confraternizando muito, para rirmos com o sofrimento, porque sabe ainda melhor.
É uma estranha forma de vida, esta. Mas é uma excelente maneira de nos sentirmos vivos.
Caro amigo,
ResponderEliminarLi arrepiado o que escreveste. Traduziste exactamente aquele que eu gostaria que fosse o sentimento de quem participou nesta aventura. Não admira, para além de seres um amigo especial e me conheceres como poucos, estiveste desde a primeira hora envolvido neste sonho, sendo que os motivos pessoais e profissionais que te fizeram abandonar o projecto enquanto organizador te trouxeram a contrapartida de o poderes abraçar enquanto atleta e assim o vivenciares duplamente.
O resto é demasiado pessoal. Dir-te-ei durante o próximo fim-de-semana no nosso acantonamento no Alto Minho ou mesmo ao longo da prova da Arga … se tiver pernas para te acompanhar.
Aquele abraço.
Caro, cancioneiro!
ResponderEliminarExcelente relato, nem o mestre da tática faria melhor!
Parti para esta prova sem qualquer espécie de estratégia.
O que me levou a aceitar este desafio, foi dedicar um dia à corrida!
Existe dia para isto, dia para aquilo e eu como gosto de correr, como a corrida me dá um prazer imenso, como a corrida já faz parte de mim, resolvi entregar-me durante 24 horas a esta actividade que marca a minha vida e o meu dia a dia.
Para este dia ser mesmo feliz, o melhor que poderia fazer era aliar a corrida à solidariedade, para acrescer uma dose de motivação e emoção à empreitada que tinha pela frente.
Desde que comecei a correr, contabilizo um sem número de competições com resultados bastante satisfatórios, em peovas de estrada: Meias-Maratonas, Maratonas e depois ne vertente de Trail e Ultra-Trail também já por algumas vezes no meu escalão tinha subido ao pódio.
No entanto, surpreendentemente (pelo menos para mim) consegui nas 24 horas de Portugal o resultado mais marcante da minha carreira ( amadora e com muita paixão) desportiva.
A organização com o João Meixedo e o Vitor Dias ao leme esteve irrepreensível. O Grupo Dramático da Retorta é realmente fantástico. O Miguel Santos o melhor atleta/cozinheiro do mundo. O Rui Pinho o melhor atleta/cronista do planeta.
Obrigado a todos, por terem feito que eu tivesse um dia escpectacularmente feliz na qual me entreguei à corrida!
Resta-me apenas dizer, até 2015!
Texto muito bem escrito e que sintetiza o sentimento de todo aquele que já experimentou correr uma prova desse tipo. Ao contrário de corridas por distância, onde na chegada dos primeiros há um bom público para aplaudir e máquinas para fotografar e os últimos e mais lentos geralmente terminam sózinhos e apenas um ou outro familiar e amigo muito chegado está a lhe esperar, aqui neste tipo de prova todos e cada um dos que correm, desde aquele que mais distância faz, até aquele que pouco conseguiu correr, tem a mesma atenção e recebem os mesmos aplausos. Andrés Vázquez
ResponderEliminarNao sei bem o que diga,apenas registo que ,como estreante nas 3horas, senti cada palavra do texto.De facto,só quem veio a Vale de Cambra se superou.Só quem veio a Vale de Cambra é que sabe :) Parabéns pelo poema!
ResponderEliminarEMOCIONANTE, amigo !
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