Empeno Abutrico.
O subtítulo serve como definição perfeita para o estado do meu corpo no “day after” à prova que decorreu ontem, nos belíssimos trilhos que circundam Miranda do Corvo e a Lousã, com base no ninho da Associação que organiza o evento, sita na primeira destas localidades.
Fomos brindados pela Natureza com um dia belíssimo, embora frio, para percorrermos aqueles 45 km de subidas e descidas. A esfregar as mãos e a bater o dente, fomos chegando ao Pavilhão Municipal de Miranda do Corvo, onde decorriam as verificações de material obrigatório para os participantes da Ultra. No centro do ringue o ambicionado alvo para todos os que partiam, o insuflável pórtico com a inscrição que todos queremos ver: META.
A partida foi dada depois de um aquecimento sui generis ao som de uma gaita de foles e bombos que encorajou os que ainda se resguardavam do frio.
Não tenho a mínima noção do desenrolar da prova para vos poder descrever as vicissitudes que levaram às classificações finais. Posso no entanto testemunhar, enquanto finalizador, a imensa alegria que nos invade quando regressamos ao Pavilhão. Aquela última subida, já dentro da Vila…
Fiz o primeiro terço da prova sempre na espectativa de começar a descer. Está bem. Os abutres acharam que descer não se desce no início e só nos deram pouco mais de 2 km de descida nos primeiros 20, com muita subida e mais lama ainda! Até aí, no máximo da altitude que atingimos (935 mts), acompanhei o passo do João Meixedo (ou ele o meu), junto com o Luis Rodrigues, também dos Porto Runners e de um companheiro de jornada que conhecemos na Serra, o Bruno Domingos, homem do BTT e que se estreava, como nós, numa ultra de montanha. Na subida para o alto da Serra o Meixedo “meteu” a tracção às 4 e lá foi ele no seu passo rumo a uma brilhante participação. Ainda o vi, depois de passar a íngreme descida do “Revoltado” (nome atribuído por mim a um corta-fogo com uma inclinação tal que parecia o tecto de Miranda do Corvo, onde um atleta reclamava e dizia que aquilo era de loucos e que só saía dali de helicóptero) mas não consegui ir tão rápido quanto ele. Juntámo-nos, eu e o Bruno, com a Carla Monteiro, que vinha desde a partida com o Fran, e nos tinham alcançado no 1º abastecimento.
Seguimos monte abaixo, (com 1 km em que subimos mais de 130 mts e me fartei de praguejar), e que culminou com uma descida de uma pista de Downhill com inclinações superiores a 30%, e onde as quedas, sem gravidade, foram uma constante. Foi uma desagradável incursão ao “sku”, vulgo desporto de quem não se consegue manter em pé, e que durou praticamente até ao km 28, onde estava o segundo abastecimento. Sabíamos que ainda vinha muita subida, embora tivéssemos já um assinalável desnível positivo acumulado, sendo essencial e muito importante um rápido restabelecimento das forças. Comemos uma sande de presunto e um creme de cenoura, enchemos os reservatórios de isotónico, e lá fomos nós para o trilho. Até aos 33 km, num trilho muito técnico, junto a belíssimas quedas de água, fartei-me de insultar a geografia do terreno, na esperança que o calão e os impropérios servissem de alavanca em cada obstáculo que tinha de transpor. Subimos 5 km em pouco mais de 1h30, e demorámos 2 horas para completar os restantes 12 km até à meta, num trilho muito bonito e extremamente técnico, semelhante à parte inicial da prova, onde abundavam as passagens por pontes de madeira e troncos de árvores sobre o rio, onde nós optávamos por refrescar os pés e limpar a lama das sapatilhas. Os últimos 5 km, já depois do abastecimento foram em corrida, ligeira que já não havia forças, para tentar chegar o mais rápido possível ao fim.
Depois de uma paragem técnica para retirar duas pedras da sapatilha, lá fomos nós em busca da meta. 9 horas depois de sair daquele Pavilhão, no crepúsculo do dia, algures no meio da Vila de Miranda, oiço umas vozes ao alto a gritarem “força, são só mais 100 metros”; olho e vejo uma parede verde com um carreiro ao meio desenhado por passadas firmes dos mais de 300 atletas que por ali tinham escalado o último obstáculo, rumo à glória de terminar aquele fabulosos desafio. Ao olhar para aquele autêntico muro, confesso que me foi impossível conter o insulto, que verbalizei para os meus pés, transformando nas últimas forças o último nome que chamei àquele último trilho abutrico.
Foi a minha primeira Ultra, numa prova que recomendo.
Agradeço a paciência da Carla Monteiro, do Francisco Serrano Cantalejo (Fran) e do Bruno, que me aturaram, e que esperaram por mim quando eu pensava que ia fracassar. É formidável como o corpo humano aguenta tanto antes de quebrar, e como a nossa cabeça faz tanta diferença num momento de fraqueza.
A corrida transformou a minha vida, mas não é mais do que um estado de alma que tão bem nos faz ao corpo. Há quem diga que começamos a morrer quando deixamos de ser crianças, e nós, os que corremos por prazer, encontrámos na corrida a forma perfeita de, enquanto adultos, fazermos uma série de traquinices e maluqueiras que de outra forma não faríamos, e que ninguém nos leva a mal. Mesmo desafiando os nossos limites, num plano de quase inconsciência juvenil, temos a recompensa única de terminar desafios que, ainda há pouco tempo julgávamos impossíveis. É essa a única diferença em relação à infância, a consciência dos desafios. Mas sem desafios, a vida perde sal.
Resta-me agradecer aos meus companheiros de equipa dos Porto Runners, em especial aos companheiros de jornada Joana Leite e Miguel Santos, dois campeões numa estreia em grande nível; e ainda a todos os envolvidos na organização deste magnífico evento. Todos foram inexcedíveis, sempre com palavras de incentivo e exemplares na colaboração com os atletas.
Parabéns aos Abutres!
Vemo-nos na 3ª Edição!