Mais um encontro com a paixão.
A reportagem jornalística, seria mais ou menos assim:
- Mais de 1800 inscritos nas diversas provas, desde o Trail Jovem até à distância rainha de 45 km, coloriram o horizonte cinzento da intempérie que se abateu ontem sobre a outrora verde Serra, flagelada pelos recentes incêndios. Os aventureiros atletas que desafiaram a chuva e vento fortes, provaram que também é possível correr sobre os rios, tantas eram as linhas de água que corriam sob seus pés.
Os resultados podem ser consultados aqui.
Como não sou repórter, deixo esse relato para quem estudou belíssimas formas de descrever o “onde, quando, como e porquê”.
Sou totalista das edições do GTSA. Na primeira edição ficámos pelos 21 km, na segunda conseguimos terminar em beleza toda a distância, num belíssimo dia de sol. Ontem, apesar da chuva intensa, da lama resultante dos incêndios do último verão que fustigaram a Serra, e do vento forte, tudo decorreu mais ou menos dentro da normalidade.
Não se pode esperar do trail em Portugal muita “paz”. Caso as provas não se aventurem em maiores quilometragens, o recente boom de participantes de provas em montanha vai fazer com que haja cada vez menos uma família do trail, transformando esta numa imensa comunidade. Longe vão os tempos dos pioneiros do trail em Portugal, em que os participantes e respectivas famílias enchiam uma sala de restaurante no fim das provas. Hoje em dia, com a quantidade de atletas que calcorreiam os trilhos, nem 1 porco assado servido em sandes é suficiente. Os balneários da 1ª edição desta prova, onde lamentávamos o corte da prova pelo mau tempo, foram substituídos por gigantescas tendas instaladas no campo de futebol, que, como sempre, servia de parque de estacionamento, parque esse já insuficiente para mais de 1800 atletas e famílias. Há 2 anos cheguei cedo, pelas 6h00, cruzei-me com o Carlos Sá, vi alguns atletas a acordar, e recordo-me que, pouco depois das 7h ainda se conseguia estacionar junto ao Centro Cultural de Dem, base da prova. Ontem, com o triplo dos atletas inscritos, às 7h10 já era difícil levar o carro até ao campo de futebol. O burburinho da 1ª edição passou a caos. Aqueles momentos que nos habituámos a ter antes das provas de trail, em que todos nos cumprimentávamos e que tão intimistas e únicos nos pareciam, tendem a desaparecer. Não é mau que assim seja. O sucesso que muitos atletas têm tido, o convívio com a natureza que proporciona (apesar de ainda haver muito porco a deixar lixo nos trilhos) e a paixão que estes desafios geram, faz com que sejam cada vez mais os que se aventuram nestas provas. É normal. Na Europa já há muitas provas por sorteio por isso mesmo, portanto nada de novo.
Devido às eleições autárquicas, a prova teve de ser antecipada um dia, sendo assim corrida a um Sábado, o que considero ideal, para podermos todos recuperar no Domingo, mas antecipou também as jornadas técnicas para Sexta, à noite. Às 20h50, quando saímos do Hotel em Caminha, onde decorreu também a Expo-Maratona, ainda nem tinham começado. Depois de um dia de trabalho, viagem para Caminha, prova a começar cedo, lá fomos jantar, eu, o Carlos Natividade, João Meixedo, Vítor Dias e Miguel Santos. Como íamos dormir perto de Ponte de Lima, em Lanheses, casa da família Meixedo, prescindimos de ouvir as palestras e fizemo-nos à “vida”. Num restaurante onde já estava uma bela matilha (os nossos conterrâneos Cães d’Avenida), atirámo.nos a chouriço assado, costelinhas na brasa, arroz de pato no forno (com pato), sobremesas à altura e maduro branco para não descurarmos a hidratação. Tudo como mandam as regras do trail: Conviver. Repasto concluído, lá fomos estrada fora até Lanheses, com alguma chuva, que já fazia adivinhar o banho do dia seguinte. Como habitual quando nos juntámos, deitámo-nos tarde, demasiado tarde, para lá da 1h.
Acordámos cedo, fomos para Dem e para a linha de partida à espera do controlo 0. O Regulamento obrigava-nos a levar (com indicação de controlo de material na partida e controlos surpresa durante a prova) desde manta de sobrevivência, até ao frontal. A ausência de qualquer um dos itens obrigatórios implicaria penalizações, de 1h até à exclusão. Alguém foi controlado? Nada. Pareceu-me demasiado displicente, estando o dia que estava, querendo crer que todos levaram o material obrigatório. É normal, e estava referido no dito regulamento, que quando vamos para a montanha, aquele equipamento deve-nos sempre acompanhar. Mas numa prova que começa e acaba de dia, com tempos limite de passagem, obrigar a levar frontal…
A corrida decorreu como seria de esperar. No meu caso, comecei como acabei, a andar nas subidas e a correr nas descidas e em plano, o que fez com que, apesar de termos saído em últimos (não resistimos a uma foto de um ou outro fã), tenhamos acabado por ter ultrapassado imensa gente até ao final.
Esta prova é uma verdadeira prova de resistência e deve ser feita com muita cabeça. Quem abusa até aos 21 km, normalmente paga na segunda parte, muito mais exigente e onde se concentram as maiores e mais duras subidas. A beleza da serra, ontem, escondeu-se por trás de um nevoeiro que persistiu até ao fim. Talvez tenha sido melhor assim, porque o cinzento das cinzas que a cobre em grande parte, não é o melhor atrativo para voltar. Tenho quase a certeza que muitos dos que lá foram voltarão e trarão mais gente para a admirar. Já eu não sei se farei de novo uma prova que, apesar de continuar a achar a mais equilibrada em quase todos os pontos, se está a transformar em algo demasiado grande que, sem desprimor, não me atrai. Os abastecimentos ontem eram em fila. O abastecimento dos 30 km, talvez o mais importante por ser depois da longa subida desde S. Lourenço até à Sra. do Minho, onde voltaria por nova exigente subida, quando lá cheguei, já não tinha nada com sal, e tudo o resto escasseava. Salvou-se com o chá de cidreira. Mas atrás de mim vinham mais de 100 atletas, pareceu-me que seria o abastecimento mais importante da prova e no entanto era mais pobre que o dos 15. Valeu-me o hábito de contar sempre com o meu abastecimento. É assim que faço, se o da organização não falhar e o meu sobrar, melhor.
As marcações estavam aceitáveis, não me perdi em qualquer lugar, havendo no entanto quem se tenham enganado, ou tenha sido induzido em erro por elementos afectos à organização, como foi o caso de um grupo de favoritos da prova de 21 km.
Os brindes oferecidos (camisola térmica e colete de finisher) são de excelente qualidade, as jornadas técnicas boas e os banhos excelentes.
Talvez não fosse má ideia colocarem a meta junto da zona de balneários e parque, para haver mais gente junto à chegada dos participantes. Cheguei com cerca de 8 horas (menos mais de 2h relativamente ao ano anterior) de prova e havia um silêncio ensurdecedor junto à chegada, salvo 3 ou 4 voluntários que, 200 metros antes saudavam os que concluíam a corrida.
Parabéns aos mais de 1300 finishers, muitos deles estreantes. E que estreia. É uma excelente “prova” para quem se quiser estrear numa distância não elevada, mas com imensa exigência.
Espero voltar a conviver com muitos dos com quem lá me cruzei, e continuar a poder usufruir da amizade dos que comigo fazem o favor de partilhar largos quilómetros de treinos e aventuras. Gosto muito de correr, é um bónus que a vida me deu e que espero continuar a fazer por longos anos. Mas do que mais gosto é do espírito “Ultra”, de quem leva ao extremo a sua paixão e corre horas a fio, sem sofrimento, esse fica para os que competem. Porque apesar dos empenos, o que fica sempre, é a vontade de voltar a passar os belos momentos que passei entre Sexta e Sábado à noite. Do repasto de Sexta, até à Pizza em Portuzelo com que selámos o GTSA 2013, passaram menos de 24 horas, mas a intensidade e prazer que tirei de todos os momentos, de todas as incidências típicas da corrida, valeram muito. É isso que me faz querer continuar apesar de, aparentemente, haver coisas melhores para fazer num fim-de-semana chuvoso. Mas para nós que gostamos tanto disto, não há melhor do que partilhar esta insanidade que nos une e nos faz sentir de bem com a vida, como crianças despreocupadas com o futuro. É a paixão que nos une.
São assim as paixões, ficámos sempre à espera do próximo encontro.