segunda-feira, junho 30, 2014

Ultra Trail Serra da Freita 2014

 

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A curiosidade de quem lê estes relatos é a de retirar algo que os faça dar o passo seguinte, de se inscreverem numa destas (aparentes) loucuras. São poucos os que leem relatos de ultra maratonas para sentirem as dores de quem os escreve. Recordo-me da minha primeira participação na Freita, na prova de 17 km, em 2011. Recordo-me de ver chegar os participantes da distância rainha – os até ontem 70 km, e que serão 100 em 2015 – e de pensar por onde raio teriam andado para chegarem sem fala ao final.

Foi assim que cheguei, 16h38 depois da partida às 5h45 – Sem fala. E são poucas as palavras que vou dispensar a este relato. Fartei-me de pensar na analogia a fazer, depois da “Branca de Neve e os 7 anões” do ano passado, mas não há analogia perfeita com o que vivi na Freita e com o que vivo de cada vez que lá vou, seja em treino ou em passeio. Ainda há uma semana torci um pé no PR7, a baixa velocidade. A Freita é como um ninho de cobras, onde somos mordidos e envenenados sem antídoto possível. Fica-nos o veneno no sangue a contaminar-nos a razoabilidade e o bom senso. No início deste mês, quando pedi a um médico um atestado de robustez física para apresentar na partida das 100 milhas, disse-me que dispensava análises complexas ou mais exames, mas que só me voltaria a passar outro quando lhe apresentasse um atestado de sanidade mental. E é isto que todos os que por ali andámos somos – uns seres saudáveis mas completamente loucos por aventura, pelo mergulhar nas entranhas de uma serra que tem tudo o que nos maravilha e nos faz sentir acelerar o sangue nas veias. Subir aos 3 pinheiros e olhar para o imenso verde que transpomos para ali chegar é como tomar um potente ansiolítico. Ou anti-inflamatório, porque depois de ali chegar, apesar de tantas quedas nas pedras do rio que tanto palmilhámos, já nada dói. Aos 3 pinheiros, ou no alto da Besta – uma subida de 1 km em 50 minutos por pedras e queda de água, onde para beber bastava parar e abrir a boca. A serotonina, a dopamina e as outras substâncias que o cérebro vai libertando a cada passo, fazem-nos o favor de nos acalmar a dor que o “Traçador” (Traça a dor) José Moutinho nos proporciona a cada km.

A UTSF não é uma corrida de 70 km. É uma luta intensa contra os nossos medos, contra o limite do aceitável, contra o desgaste físico e mental. Lembrei-me várias vezes de quando jogava Monopólio em miúdo, e naqueles dias de azar, me fartava de sair o “Diretamente para a prisão sem passar pela casa de partida”. Lembram-se? No Monopólio recebíamos dinheiro cada vez que passávamos pela partida para podermos “comprar” as ruas e estações mais caras. Era um jogo de sorte que nos fazia eventualmente virtuais milionários. Não passar na “casa de partida” era um rombo na “Conta”. A UTSF é um manancial de “idas à prisão sem passagens pela partida”, e no entanto sabe tão bem. Provavelmente faz-me mesmo falta uma avaliação psiquiátrica…

Uma certeza trouxe: Voltarei sempre, para esta prova, para treinos, para desfrutar, porque ninguém resiste à Freita. Apesar de todos os treinos, e depois destas 4 participações - finalmente fiz a prova como aconselha o Mestre Moutinho, com mente aberta - por muito que lá vá, há sempre algo novo, uma dor traçada por ele, uma nova subida ainda mais íngreme, uma descida agarrado a cordas, uma transposição de rio agarrado a tipos presos por arneses a uma brutal rocha com vista para uma asfixiante queda de água… Enfim, uma qualquer maravilha que recordamos no dia seguinte sem nos lembrarmos onde nos doía o corpo àquela hora, já com mais de 50 km. E por isso voltamos. Para sentirmos toda aquela mistura de dor e prazer de superação, culminada com o fantástico mergulho nas entranhas da Mizarela e aquela final subida ao paraíso que é a meta, ao fim de 70 quilómetros de trail tão duro quanto belo e puro.

Tudo tão belo. E é quase sempre perfeito estarmos onde gostamos de estar, onde só nos falta quem mais gostávamos de ter ali ao lado. Terei de repetir o campismo no Merujal, para ir desfrutar de toda esta dureza e beleza misturadas numa serra, mas em modo de contemplação.

Obrigado José Moutinho e restante equipa, tão bem co-liderada pela Flor Madureira. A UTSF é um mergulho no mundo da aventura onde nada é o que parece, onde tudo é mais belo e mais duro. É a prova onde passamos por onde ninguém passa. É a prova que inclui passagem por aldeias abandonadas a menos de 1 km de outras, só porque para lá chegar é quase preciso ser atleta. É uma luta contra o cansaço onde cada km é uma bênção da natureza.
Parabéns aos vencedores e alento aos vencidos, uns por quedas, outros por cansaço, outros pelo tempo; insistam e persistam. Cada km na próxima tentativa é uma vitória.

Abençoada Serra. Voltarei cada vez mais vezes, e voltarei seguramente à UTSF.

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terça-feira, junho 10, 2014

100 Milhas na Serra da Estrela

 

“A vida é uma aventura atrevida ou não é nada” – Frase retirada do Facebook da Cristina Carvalho, vencedora da classificação feminina da prova de 70 km do “Oh Meu Deus” – Serra da Estrela.

Estávamos em Agosto de 1997. O último fim de semana coincidiria com o final do mês. Um amigo, apaixonado das corridas, convidara-nos para irmos à Serra da Estrela a uma prova de atletismo. Chegados à Residencial Académica na Covilhã, nesse Sábado 30 ao final do dia, decidimos ir jantar e mais tarde saberíamos pormenores sobre a tal prova de atletismo em que se podia caminhar. Claro está que não voltamos a falar de corridas. Jantamos, fomos a uma discoteca, compramos uma garrafa de whisky e…

De repente era de manhã. Tínhamo-nos esquecido de pedir pormenores sobre a prova – partida, hora, local, enfim, pormenores sem importância – mas sabíamos que havia um almoço para depois da dita corrida. Recordo-me de ter tomado o pequeno almoço já no limite do tempo disponibilizado para a refeição, com imagens repetidas sobre um carro destruído num túnel de Paris, onde viajava a Princesa de Gales, Diana, que faleceu no local juntamente com Doddy Al Fayed. Foi exactamente no mesmo dia em que fui à minha primeira prova de trail, sem sequer ver a prova. Fomos à Torre, onde pensávamos ser a dita corrida, não vimos mais que uns turistas e alguns lojistas, nenhum vestígio de corrida ou sequer caminhada. Era impensável que alguém corresse ali, não havia por onde, só víamos montes e pedras. Talvez descessem rumo ao infinito, mas, e os carros? Não se viam carros, teriam vindo de autocarro? Teriam subido? É tão inclinado e pouco propício a correr... Pouco depois conseguimos falar com o nosso anfitrião que nos indicou o local do repasto. Foi um belo almoço, a minha primeira prova de trail. Daí para a frente foi sempre a somar…,  Almoços. Mal eu sabia que 17 anos mais tarde, regressaria à Torre num dos maiores desafios da minha curta carreira de corredor amador.

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O desafio

O desafio surgiu pouco depois da desilusão na Ultra do Marão. A Susana confiava nas organizações da Horizontes, provas que habitualmente faz e que recomendava. Com a minha inclinação para me atrever nas 100 Milhas, ela nem hesitou e inscreveu-me antes de eu poder concordar ou não.
Claro que me sentia mais do que treinado para um desafio destes, apesar de o passo anterior, o passo natural de fazer uma prova de 100 km não ter sido dado, mas os 93 do Marão tinham tido um “sabor” de Ultra de 100, com os seus mais de 6.000 m de acumulado positivo e as sensações pós prova. O meu principal receio, consistia nos relatos da primeira edição das 100 Milhas do “Oh Meu Deus” – Serra da Estrela, que falavam em marcações deficientes, ausência de segurança e falhas graves na organização. Mas também haviam relatos que relativizavam as falhas, e o facto de a data da prova ter sido adiada para Junho, com a consequente menor probabilidade de condições meteorológicas adversas, ajudavam a relativizar os receios e confiar nos instintos da minha maior apoiante. “Vai tudo correr bem”, dizia. Não me restou outra coisa que preparar-me para o que a serra me destinaria, mais de 16.000 mt de desnível, muitas horas a correr e muitas contrariedades para ultrapassar.

A aventura

A Serra da Estrela, a que os romanos chamavam Herminius Mons - Montes de Hermes (Deus Greco-Latino dos pastores, também conhecido por Mercúrio) – tem uma longa história ligada ao pastoreio. As lendas sobre a estrela que nascia sobre ela remontam à pré-história, em que pequenas comunidades sobreviviam da caça e recolha de bolota e outros frutos e pastorícia migratória. Viviam nos vales e zonas de mais baixa altitude, e subiam aos pontos mais altos após o surgimento da estrela mais brilhante da constelação de Touro, algures entre o fim de Abril e início de Maio, que anunciava tempo mais ameno, degelo e melhor pastoreio.
Terá sido também esta a primeira data da primeira edição das 100 Milhas do “Oh Meu Deus”, organizada pela Horizontes há pouco mais de 1 ano, data alterada para Junho, para garantir a “colaboração” da meteorologia. Mas nem a meteorologia parecia querer colaborar, quando chegamos a Seia na Sexta-Feira. Chovia, o vento era forte e a ameaça de baixas temperaturas na Torre perigavam a realização da única prova com a distância rainha das ultras em Portugal. Felizmente não aconteceu, apesar da chuva intensa das primeiras horas de prova. Houve frio, vento, chuva e sol, para embelezar na perfeição toda aquela bela envolvente da Serra, que me acolheu durante mais de 38 horas, e em que revivi todo o documentário “Ainda há pastores?”, de Jorge Pelicano. A simpatia e simplicidade dos que ainda por lá resistem, foi-nos servida em forma de abastecimentos acompanhados por ranchos folclóricos, por aplausos saídos de um alpendre escuro, de alguém que, na madrugada, trocou o sono pelo incentivo aos que enfrentam tamanho desafio. Daria um belo documentário esta prova onde se aventuraram menos de 40 atletas. A interrupção da chuva torrencial para a nossa partida foi apenas uma benesse do S. Pedro, que logo a faria voltar, junto com um vento forte que nos impelia para trás nos trilhos mais altos e expostos. Naquelas primeiras 5 horas de prova, que chegaram para percorrer os primeiros 39 km e chegar à bela Loriga, ficamos logo habilitados à muda de roupa que viria 40 km depois, no mesmo exacto ponto. Na primeira noite corremos por levadas escorregadias, onde a mínima distração nos fazia correr dentro de água, para não cairmos no prometido vazio. A escuridão diminuía as vertigens, mas o perigo estava mesmo ali ao lado. Em grupo, com a companhia do Vítor Penetra e do Vítor Rodrigues, lá fomos divertidos com um sexagenário brasileiro que se perdia sempre que se aventurava sozinho nos trilhos. É óptimo fazer provas tão longas com companhia, preferencialmente ocasional. Não sou apologista de esperar ou acelerar alguém, mas entre abastecimentos, de noite, numa prova tão longa, não deixo ninguém sozinho para trás. Até Loriga, já com a aurora, fomos juntos. Em Loriga repousámos, aceitamos uma das imensas sopas oferecidas por um diligente voluntário, e vestimos roupas quentes para a subida de 12 km e 1400 m de desnível positivo até à Torre.
Não vi a tal estrela da lenda dos pastores, mas imaginei o esquilo Scrat, da Idade do Gelo, na sua perseguição à inquieta noz, e onde raio terá ela pousado tantas vezes para nos desvendar aquela bela Garganta de Loriga, um dos 7 Vales glaciares que rodeiam a Serra da Estrela. A subida, linda, por trilhos ainda usados por pastores, como provam as dezenas de mariolas, vai passando por sucessivos “Covões”, alguns com aproveitamento hidroeléctrico, que transpostos, deixam atrás fantásticas imagens de um imenso desordenado desenhado pelo gelo. A subida, tão bela quanto dura, deixou mossa. Reparei-a com um Snickers que a Susana me obrigou a levar, e com tomate com sal e uma sandes de presunto oferecidas por um grupo de escuteiros, e que comi junto à fogueira que lhes acalmava o frio intenso trazido pelo vento cortante dos 1700 m. Faltavam pouco mais de 2 km para chegarmos à Torre, ponto fulcral no percurso, por estar mais ou menos a meio, e por ser a principal dificuldade da prova. Atingida esta primeira meta ainda a meio da manhã, aproveitamos o excelente abastecimento, com apoio médico, para nos aquecermos e recuperarmos forças.
Da Torre a Vale Rossim, percorremos toda a envolvente da Serra, experimentamos os fofos tufos de erva e os duros pedregulhos graníticos sujeitos a fracturação que caracterizam a envolvente. A chegada à Praia Fluvial de Vale Rossim, já com mais de 20 horas de prova e a tocar os 103 km, faziam soar os alarmes nos exclamados palavrões a cada passo dado em cima das pedras redondas que rodeiam a lagoa. Eram os pés a queixarem-se do massacrante piso. Mais caras conhecidas, gente que fazia os 100 e os 70 km, alguns atletas amigos que treinavam por ali, e saímos com alento redobrado rumo ao alto do Malhão, que antecedia o abastecimento reforçado e troca de roupa e calçado de Folgosinho. Quando lá chegássemos estaríamos a apenas uma maratona do sonho. Maratona essa que duraria mais uma longa noite.

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Li imensos relatos de provas longas antes de me aventurar nesta. Não quero massacrar-vos com as dores nos calcanhares ou as bolhas na planta de cada pé. Prefiro dizer-vos que em cada dificuldade que encontramos na montanha, descobrimos mais uma força que julgávamos não ter e descobrimos mais um amigo que nunca mais iremos esquecer. Aquelas longas 38 horas e 53 minutos que passei na Serra da Estrela, deram-me a conhecer seres humanos extraordinários. Dizem que os amigos se conhecem nas dificuldades. Não deixei nenhum para trás sem apoio, recebi apoio de todos, e tenho a certeza que darei um abraço a cada um deles sempre que os encontrar. A cumplicidade da montanha faz-nos sentir parte de um clã, que apesar de não ter rituais secretos ou cumprimentos que nos identifiquem, tem a particularidade de todos sabermos que nunca estaremos sós. Acho que é por isto que sentimos sempre confiança para cada prova que começamos, pela certeza de irmos encontrar outros que como nós se desafiam confiando no apoio dos que connosco se cruzam em cada montanha. Um abraço especial aos que comigo partilharam dores, temores e me apoiaram nos trilhos: Vítor Penetra e Vítor Rodrigues, com quem fui até perto dos 90 km; Carlos Fonseca, Paulo Picão e Rui Rocha, que me acompanharam de Vale Rossim a Folgosinho, e com quem me fui cruzando antes; João Mário Rodrigues, que encontrei no início da segunda noite, e que me acompanhou enquanto pode até à descida para o último PAC. A todos um especial abraço.

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Uma prova de 100 milhas é um desafio extraordinário. É impressionante o quão longo pode ser 1 km numa prova desta natureza. Atrevi-me ao desafio sem pressão, sem noção da distância, sem receios, com “mente aberta” (como aconselha o Mestre Moutinho que enfrentemos as provas de trail) e confiante que a organização rectificaria os erros da primeira edição e tudo correria pelo melhor. Foi o que aconteceu. As marcações estavam irrepreensíveis para quem tivesse um mínimo de experiência em provas de trail, os abastecimentos suficientes e todo o apoio indispensável estava presente. Sempre que vi solicitações de auxílio, apareceu rapidamente um elemento da Horizontes. Os voluntários, bombeiros, equipa médica e população em geral, foram de uma simpatia inexcedível, tudo correu dentro do normal. Só a t-shirt oferecida merecia mais alguma qualidade, e estranhei a ausência de, pelo menos uma refeição de massa ou arroz com proteína.

Resta-me cair na realidade do epílogo desta intensa aventura. Regressando ao filme animado, A Idade do Gelo (a primeira), onde Manny queria seguir o seu caminho ignorando o bebé perdido, tendo sido convencido por Sid a adoptá-lo. Também tive a Sid, na Susana, que me convenceu que eu seria capaz de concluir as 100 milhas, e lá estava, na meta às 7h da manhã para o confirmar, depois de se certificar que eu partia e de me apoiar sempre que pode.
Como sempre, sobram personagens para fazer a analogia com a prova, mas o Diego é bem personificado, pela manha, pelo perigo que espreita, na Serra da Estrela. É o “Oh Meu Deus” de toda esta história com final feliz. A cada dificuldade transposta, vemos a Serra a ceder à nossa força, como o tigre enjoava sempre que abanavam o barco onde seguia com Manny e Sid, e, acossado pela fome sonhava comê-los. A Serra também parece muitas vezes que nos vai levar a melhor, mas com alguma diversão e força de vontade, sem ficção, com treino e juízo, também as provas de 100 Milhas, o “Tigre” na história do trail, se domam. Haja alma!

Mal eu sabia que, 17 anos depois voltaria à Serra da Estrela para fazer aquilo que não cheguei a ver em 1997, uma das primeiras edições da Transestrela, pioneira das corridas de trail em Portugal. A Estrela ficará para sempre marcada na minha vida de corredor amador. Parabéns à organização, que soube corrigir os erros. Temia a prova pelos relatos dos anos anteriores, mas posso confirmar que esteve à altura das melhores organizações. O Road Book com todos os pormenores (altimetria, km entre PAC’s e tipo de track), distribuído a todos os participantes, fossem das 100 Milhas, 100 ou 70 km, é um pormenor de elevada qualidade, bem como a medalha de finisher.

Em 2015 lá estarei, à partida para mais uma aventura. Acompanhem-me. Vale a pena!

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