quarta-feira, março 04, 2015

Viagem interior na Ultra de Sicó

Uma ultra é uma viagem ao interior de nós próprios. É uma viagem rumo ao desconhecido. Sabes por onde viajas, conheces o barco, o mar e até os ventos, mas nunca saberás a infinidade de conjugações com que te irás deparar. É uma viagem deambulante pelo limite do corpo, da mente, da vontade e da resiliência. Todos sabemos ao que vamos, sem saber o que vamos encontrar.
Na azáfama da arena de partida, somos todos gladiadores prontos a serem lançados às feras. O arrepio na espinha, o vazio no estômago, a sensação de levitar sobre todos aqueles que, como tu, sentem a adrenalina a subir no tique-taque decrescente para o tiro de partida. Nada ouves. O silêncio apodera-se de ti. O ruído que também tu fazes são todos os fantasmas que acumulaste e que agora se libertam, rumo aos trilhos para onde vais e onde cumprirão a sua missão: Tentar-te, desanimar-te, alertar-te para as tuas fraquezas, para as dores e para os arrependimentos. Em todo esse ruído há uma paz angelical que te faz sentir capaz de domar todos os teus demónios. É o silêncio do teu treino. O silêncio dos que acreditam em ti, o silêncio das palavras que te disseram há minutos, quando fizeste aquela última chamada “vou agora ao controlo 0, para a partida. Dorme, eu dou-te novidades”; “Força! Nós acreditamos em ti!”. E acreditam. E dormem pouco. E ali vais tu, nessa viagem de mais de 100 km, de mais que muitas horas, que te deixarão à mercê dos elementos, da chuva, do chão de barro que te vai fazer lembrar argila nas mãos de crianças que as formam alegremente. Essa criança, vulnerável, és tu, é o teu filho, é o filho de alguém, desamparado, como tu ali, a cair e levantar, a dar a mão ao colega de ocasião que caiu a teu lado. És tu no teu Mundo. Vais de criança a velho. Só és adulto quando te inscreves. És uma criança mimada nas mãos dos voluntários que te abastecem e mimam, és um velho sem forças nas pendentes montanhosas que parecem não ter fim. És marinheiro. És sim. És marinheiro com pele franzida pelo cansaço, olhos de noite em branco perdido no nevoeiro. Afinal não. És só um pastor que chegou ao alto da sua Serra onde outrora havia moinhos. Estás a sonhar. Sonhas acordado no meio daqueles pesadelos que os fantasmas te vão lançando. E sonhas com os teus anjos. “Tenho de acabar, só faltam 30 km”. E fazes contas “30 km, a este ritmo são 7 ou 8 horas, meu Deus. Como aguento?”. E vêm os teus anjos. Lembras-te do último telefonema. Voltas a ligar. Não atendem, deixas mensagem, como se deixasses uma âncora que te vai puxar até ao fim; quando o telemóvel volta a tocar já te parece o ruído do motor que puxa a âncora. E animas-te de novo com uma canja, um caldo verde, uma bifana, uma cara conhecida, um popular que te grita “CORAGEM!!!”, e voltas a sentir-te vivo. Meu Deus! Ressuscitei! Sou o maior!… Até à fraqueza seguinte. É isto. Morres e ressuscitas vezes sem conta, amas e odeias o trail, queres voltar para casa, para os braços dos teus. Mas isto é tudo teu. A viagem é tua. Mesmo que vás ao lado de alguém, que juntes fraquezas com fracos e te mostres forte, ou fraco, perante fortes, não saberás nunca como eles estão, porque eles estão numa viagem só deles, como tu. Na tua. Aproveita. Faz-te forte. Encontra-te. Vais-te ver como nunca te viste. Chorarás como criança ao cruzar a meta. Aquele que correu a teu lado ficará amigo para a vida. Afinal esteve numa viagem única contigo.
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A importância do planeamento numa viagem destas é fundamental. Nesta Ultra de Sicó, planeiam por nós. Nada foi deixado ao acaso. Fartos abastecimentos, alguns surpresa, apoio dos voluntários – muitos deles também ultra maratonistas e atletas da Associação Mundo da Corrida, e duas “bases de vida”. O termo pode suscitar sustos, mas mais não é que dois pontos onde podemos ter um saco com muda de roupa ou calçado. Importante para quem vai correr muitas horas, já que um coincidia com o início do dia, depois de 7 ou 8h a correr mais de 50 km, e o outro aos 93, onde muitos chegariam com mais de 16h. Estavam portanto no final dos dois primeiros terços de corrida. Os abastecimentos quase sempre de 10 em 10 km (aproximadamente), sendo alguns com sopa (da pedra, caldo verde e canja) ou massa/arroz à bolonhesa. Havia muito mais o que comer, entre queijo, requeijão, bifanas, batatas fritas, fruta variada, bolos, etc.
Sicó tem muito por onde correr, mas tem também muito para subir. Tem trilhos técnicos, alguns belíssimos, como o da Cascata e o de Vale de Poios – o da Cascata é digno de figurar nos lugares mais idílicos do trail, e daria um excelente cartaz da prova. Valeu a pena ter passado por lá. Bem como a passagem por Conimbriga, animada por guerreiros que cuspiam fogo na noite, iluminando-a e secando a chuva miudinha que persistiu quase até ao fim das 24h de tempo limite.
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Condeixa será seguramente um destino de maratonistas em busca da experiência dos 100 km. Sicó tem todas as condições para tomar em Portugal a mesma dimensão de outras provas de 100 km. A localização, a envolvente paisagística, o envolvimento das forças vivas dos Concelhos que acolhem a prova, das suas populações e autoridades, fazem o sucesso desta organização. Estão de parabéns. Pensaram todos os pormenores, focaram-se nos atletas de pelotão (a grande maioria) e superaram as melhores expectativas. A partida às 00h de Sábado foi uma boa decisão. Puderam concentrar na prova rainha toda a atenção e apoio, fazendo com que esta seja, até ao momento, a única em Portugal dedicada à distância superior a 100 km, sem misturas, às vezes complicadas de gerir, de ritmos, disposição e diferentes necessidades. A segurança esteve sempre presente, as marcações eram suficientes e havia sempre um responsável da organização em cada PAC. Parabéns ao Eduardo Santos, Margarida Henriques e restantes operacionais do Mundo da Corrida. Têm uma prova com futuro assegurado, que ombreará seguramente com as melhores da Península Ibérica. Foi um belo cenário para uma viagem ao centro de nós próprios.
As ultras são viagens estranhas. Saímos do conforto, treinamos todo o labirinto de emoções, fraquezas e dificuldades que vamos encontrar. Fazemo-lo em prova para assegurarmos a segurança na loucura. É um salto no desconhecido, mas em Bunjee Jumping. A fantástica conclusão comum a (quase) todos os que partem, é que valeu a pena. Mesmo que interrompamos a viagem. Vale sempre a pena descobrir-mo-nos. Andámos muitas vezes escondidos de nós próprios, ali, na montanha, no carrossel de emoções e sensações encontramos facetas que desconhecíamos possuir. Estas guerras aos nossos fantasmas faz-nos sentir vivos como nunca. Sair da nossa zona de conforto é um passo para nos sentirmos ainda mais confortáveis. É um éden de sensações num inferno de emoções. 

1 comentário:

  1. Planejamento é primordial nestes eventos. Belas imagens, amigo. Meu carinho e admiração.

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