quarta-feira, abril 26, 2017

MIUT - Uma prova do caralho!



Há coisas do caralho! Há coisas boas com’ó caralho, más com’ó caralho, difíceis com’ó caralho, duras com’ó caralho, fáceis p’a caralho, bonitas com’ó caralho…
O dito, que, diz a lenda (?) tem origem na denominação do cesto do vigia que estava colocado no alto do mastro principal das caravelas e para onde eram enviados os marinheiros malcomportados, que assim, depois do enjoo provocado pelo excesso de “abanos” que se manifestavam mais na ponta do pau, acalmavam e obedeciam com mais vontade. Era mandá-los para o caralho que eles não mais incomodavam.
Na Madeira, o caralho é o pau que se usa para amassar a mistura de fruta e açúcar de cana da poncha.
Na minha terra – a Invicta, o “caralho” é mais ou menos um ponto final. É banal rematarmos o nosso estado de espírito com o banal palavrão. Reconhecemos no entanto o pudor de outras latitudes em utilizar tal liberdade para exprimir estados de alma. Por cá é um direito adquirido desde os tempos idos das cortes monárquicas, que, desconfiamos nós, quando se queriam livrar de alguém mais incómodo os mandavam para o “caralho” geográfico do País – O Norte. Foi assim facilmente assimilado o direito ao uso do calão para expressões mais enfáticas.
Sentimo-nos bem? Estamos como ó caralho!
Mal? Estamos assim como ó caralho.
Mais ou menos? Sei lá ou o caralho.
Não entendemos? Não pescamos um caralho.
Ficamos estáticos? Mexe-te caralho!
É bom? É do caralho!
E mau? Não vale um caralho.
É muito? Eishhh!! Caralho!!
E pouco? Foi pouco, caralho!
Um mentiroso? Aldrabão do caralho!
Um gajo porreiro? Um gajo do caralho!

A Ilha da Madeira à primeira vista para quem faz trail, é uma espécie de “foda-se” com uau à mistura, passando rapidamente a um “caralhos para esta merda” até culminar num “puta que pariu acabei!” ou a um “que se foda esta merda, já não aguento mais isto, caralho”!
Palavrões ouvem-se em várias línguas, já que fazer uma prova com mais de 14000 metros de desnível é livre conduto para a asneira e suficiente para um atestado de loucura. Um alemão dizia-me – a meio caminho entre o Pico Ruivo e o do Areeiro – que esta é a irmã europeia da Diagonal dos Loucos, semelhante nos milhares de degraus, na geografia, no clima e na insanidade necessária para quem, como ele ou como eu, pouco mais conseguia fazer do que andar a fugir à inevitável marretada e ao limite horário de cada um dos fodidos parciais. Desculpem o calão, mas eu fiz os 115 km do MIUT. Ganhei o direito a usá-lo. Ao contrário dos marinheiros nas caravelas, quem faz o MIUT não acalma. Transforma-se numa espécie de domador de feras aparentemente indomáveis. Fica cheio de cagança. É do caralho. E quanto menor o tempo final, maior a cagança! O treino de escadas resultou, o nutricionista ajudou, o treinador treinou bem a dor, o equipamento esteve impecável e afinal a Madeira é do caralho! Muda a cagança à medida que baixa o tempo final, mas não muda a exclamação de quem passa por aquelas subidas pirilau intermináveis, por aqueles degraus que esculpiram pela ilha – os degraus da Madeira deviam ter mais destaque na prova que a areia no deserto – por aquelas descidas de moer as melhores cartilagens e as vistas desafiantes para quem naturalmente sofre de vertigens – o ser humano vive no chão, gosta de gravidade, não foi feito para voar sem paraquedas, e no trail ninguém usa um. O nível da prova é do caralho. Estrangeiros como ó caralho, voluntários do caralho, abastecimentos também do caralho, marcações? I R R E P R E E N S Í V E I S, caralho! “Parecia uma puta de uma pista!”, era a expressão de um atleta minhoto, que sendo de um pouco mais a norte, mais carrega no direito ao calão.
Não me parece que queiram saber que caralho de chapéu era aquele que usava o François D’ Haene (um simples panamá para quem não corre pouco) nem que caralho diziam os polacos, os checos, ou o japonês enfiado num fato de sumo - que deixei de ver na subida ao Pico Ruivo, quando começavam a ficar fodidos de caralho de as subidas não terem fim. Provavelmente diziam algo tão libertador como “caralho”. Os espanhóis diziam “joder”, os franceses “putain”, os alemães “scheisse” e os ingleses e todos os que se queriam fazer entender exclamavam bem alto “fuck”! Pelo menos foi o que me disse a polaca que vestia uns calções azuis com a inscrição “Go Vegan” no rabo. Nas subidas ficava sempre com vontade de lhe dizer que eu não sou vegan nem quero ser e que o melhor era inscrever lá “força nas canetas!”, ou algo mais forte, já que quem ia atrás ia-se entretendo com a mensagem. Dizia eu que a polaca exclamava, algures entre o Pico do Areeiro e o Ribeiro Frio – descida de 9 km – que a “fucking going down hill” era “weird” porque afinal o caminho era “fucking up”. Pois, disse eu, aqui até as descidas doem. Com’ó caralho! E lá ficou a moça a penar, lixada da vida.
Nas montanhas da Madeira tudo dói. As subidas, as descidas, a noite ou o dia, as pedras ou a água. A beleza da prova é transversal. Da partida em Porto Moniz em zigue zague a subir pelo meio das casas, a primeira descida que “paga o bilhete” com milhares a apoiar ruidosa e pacientemente os que ainda descem e os que já mergulharam no breu do alto da Ribeira da Janela em direção ao Fanal, passando pelas vistas de cortar a respiração dos trilhos da Encumeada, Curral das Freiras, Rosário, os Picos – Torrinhas, Ruivo, Areeiro, e depois a costa Norte com a Vereda do Larano e a Boca do Risco. As levadas, a água que chora pelas veredas, os montes de lava transformados em gigantes picos. Lindo. Seja de noite ou de dia. Faltam-nos os “foda-se!” suficientes para classificar a prova.
É uma prova indomável onde a gestão do esforço, alimentação e hidratação, equipamento e ânimo são o essencial. Mas continuará indomável. Há sempre um ponto para quebrar.
Não é para atletas, é para malabaristas. O vassoura que ia sair no horário limite (21h30) do Posto de Apoio e Controlo (PAC) do Pico do Areeiro disse-me que eu dificilmente chegaria ao PAC da Portela dentro do tempo limite, apesar de serem só 14 km. 5 horas para 14 km não davam, achava ele. “Não chego o caralho!” Fui a “voar” e passei 50 atletas até, 15 minutos antes do limite, lá chegar – soube por SMS que me enviou o Hugo Alexandre, chefe de posto, no dia seguinte. “Cheguei, caralho!”. São horas de manobras dignas de mestre de obras a contornar dificuldades. “Estou no meio do pelotão dos tetraplégicos”, pensava eu. Estávamos todos. Do primeiro ao último, ninguém escapa. Nas subidas mais “fi-lhas-da-pu-ta” – assim mesmo silaba a silaba, como passo a passo se fazem – nestas subidas vamos passando por gente agarrada aos bastões com expressão catatónica a fitar o trilho. Perguntamos se precisa de ajuda, vemos o balbuciar do “i’m ok” com a baba a sair pelo canto da boca e fugimos como quem foge da peste que nos há-de inevitavelmente também atingir. Fraquejar no MIUT é ganhar lanço para continuar. E insiste-se. É obra!

O trail é uma luta do caralho. O MIUT é uma prova única, numa ilha excecionalmente bonita que se torna num caso de inevitável sucesso. Mérito de quem organiza, dos voluntários, das entidades que apoiam e dos atletas. Uma prova que retira do nosso léxico popular adjetivos informais que a classificam acima de boa. É muito. É “muito” em tudo. Muito boa, muito dura, muito bem marcada, muito bem controlada e muito compensadora.

Uma prova do caralho!