A curiosidade de quem lê estes relatos é a de retirar algo que os faça dar o passo seguinte, de se inscreverem numa destas (aparentes) loucuras. São poucos os que leem relatos de ultra maratonas para sentirem as dores de quem os escreve. Recordo-me da minha primeira participação na Freita, na prova de 17 km, em 2011. Recordo-me de ver chegar os participantes da distância rainha – os até há 3 anos 70 km, e que são agora 100 – e de pensar por onde raio teriam andado para chegarem sem fala ao final.
Foi assim que cheguei ao Portal do Inferno, algumas horas depois da partida às 7h00 – sem fala! E são poucas as palavras que vou dispensar a este relato. Fartei-me de pensar na analogia a fazer, depois da “Branca de Neve e os 7 anões” de 2013, mas não há analogia possível com o que vivi na Freita e com o que vivo de cada vez que lá vou, seja em treino ou em passeio. Há uns tempos torci um pé no PR7, a baixa velocidade. A Freita é como um ninho de cobras, onde somos mordidos e envenenados sem antídoto possível. Fica-nos o veneno no sangue a contaminar-nos a razoabilidade e o bom senso. Certo dia quando pedi a um médico um atestado de robustez física para apresentar na partida de uma prova de 100 milhas, disse-me que só me voltaria a passar outro quando lhe apresentasse um atestado de sanidade mental. E é isto que todos os que por ali andámos somos – uns seres saudáveis mas completamente loucos por aventura, pelo mergulhar nas entranhas de uma serra que tem tudo o que nos maravilha e nos faz sentir acelerar o sangue nas veias. Subir o trilho do "Morto que matou o vivo" até à Pena e olhar para o imenso verde que transpomos para ali chegar é como tomar um potente ansiolítico. Ou anti-inflamatório, porque depois de ali chegar, apesar de tantos quilómetros que palmilhámos, já nada dói. À Pena, ou no alto de Drave – uma subida de 3 km que nos suga o que restava de energia. A serotonina, a dopamina e as outras substâncias que o cérebro vai libertando a cada passo, fazem-nos o favor de nos acalmar a dor que o “Traçador” (Traça a dor) José Moutinho nos proporciona a cada km.
A UTSF não é uma corrida de 100 km. É uma luta intensa contra os nossos medos, contra o limite do aceitável, contra o desgaste físico e mental. Lembrei-me várias vezes de quando jogava Monopólio em miúdo, e naqueles dias de azar, me fartava de sair o “Diretamente para a prisão sem passar pela casa de partida”. Lembram-se? No Monopólio recebíamos dinheiro cada vez que passávamos pela partida para podermos “comprar” as ruas e estações mais caras. Era um jogo de sorte que nos fazia eventualmente virtuais milionários. Não passar na “casa de partida” era um rombo na “Conta”. A UTSF é um manancial de “idas à prisão sem passagens pela partida”, e no entanto sabe tão bem. Provavelmente faz-me mesmo falta uma avaliação psiquiátrica…
Uma certeza trouxe da Freita: Voltarei sempre, para esta prova, para treinos, para desfrutar, porque ninguém resiste à Freita. Apesar de todos os treinos, e depois destas 6 participações, por muito que vá à Freita, há sempre algo novo, uma dor traçada por ele, uma nova subida ainda mais íngreme, uma descida de cortar a respiração, uma transposição de rios com pequenas praias fluviais que julgamos só existirem no paraíso… Enfim, uma qualquer maravilha que recordamos no dia seguinte sem nos lembrarmos onde nos doía o corpo àquela hora, já com mais de 50 km. E por isso voltamos. Para sentirmos toda aquela mistura de dor e prazer de superação, culminada com fantásticos mergulhos em infindáveis cursos de água límpida e cristalina. Sempre mais e mais água antes de mais uma subida às profundezas do inferno.
E do inferno, ou voltamos ou nos deixamos ficar, como foi o meu caso, outra vez. Mas sem qualquer ressentimento ou arrependimento. Se há coisa que me dá prazer é andar km a insultar o doido do Moutinho e dar-lhe um abraço no final. Ele anda meses a preparar 10 excelentes traçados de 10 km, para nos proporcionar o inferno, para nos mostrar que não somos nada contra a mãe natureza. A nossa e a da Freita. Conheço-a muito bem. Tenho a certeza que ele ainda me há-de pôr a correr onde eu nunca imaginei que fosse possível.
Tudo tão belo.
Obrigado Jose Moutinho e restante equipa, tão bem co-liderada pela Flor Madureira. A UTSF é um mergulho no mundo da aventura onde nada é o que parece, onde tudo é mais belo e mais duro. É a prova onde passamos por onde ninguém passa. É a prova que inclui passagem por aldeias abandonadas a menos de 1 km de outras, só porque para lá chegar é quase preciso ser-se atleta. É uma luta contra o cansaço onde cada km é uma bênção da natureza. Abençoada Serra. Voltarei cada vez mais vezes, e voltarei seguramente ao UTSF.
P. S. - Foto da Escola de Montanha. Passo mais tempo nos rios que nos trilhos.
P. S. 2 - Texto deste ano adaptado daqui http://tripasenortadas.blogspot.pt/2014/06/ultra-trail-serra-da-freita-2014.html
É que mudou a prova, mas a serra é exactamente a mesma, e as sensações também pouco mudam.
P.S. 3 - Este texto é pessoal. Ide-vos catar.
Foi assim que cheguei ao Portal do Inferno, algumas horas depois da partida às 7h00 – sem fala! E são poucas as palavras que vou dispensar a este relato. Fartei-me de pensar na analogia a fazer, depois da “Branca de Neve e os 7 anões” de 2013, mas não há analogia possível com o que vivi na Freita e com o que vivo de cada vez que lá vou, seja em treino ou em passeio. Há uns tempos torci um pé no PR7, a baixa velocidade. A Freita é como um ninho de cobras, onde somos mordidos e envenenados sem antídoto possível. Fica-nos o veneno no sangue a contaminar-nos a razoabilidade e o bom senso. Certo dia quando pedi a um médico um atestado de robustez física para apresentar na partida de uma prova de 100 milhas, disse-me que só me voltaria a passar outro quando lhe apresentasse um atestado de sanidade mental. E é isto que todos os que por ali andámos somos – uns seres saudáveis mas completamente loucos por aventura, pelo mergulhar nas entranhas de uma serra que tem tudo o que nos maravilha e nos faz sentir acelerar o sangue nas veias. Subir o trilho do "Morto que matou o vivo" até à Pena e olhar para o imenso verde que transpomos para ali chegar é como tomar um potente ansiolítico. Ou anti-inflamatório, porque depois de ali chegar, apesar de tantos quilómetros que palmilhámos, já nada dói. À Pena, ou no alto de Drave – uma subida de 3 km que nos suga o que restava de energia. A serotonina, a dopamina e as outras substâncias que o cérebro vai libertando a cada passo, fazem-nos o favor de nos acalmar a dor que o “Traçador” (Traça a dor) José Moutinho nos proporciona a cada km.
A UTSF não é uma corrida de 100 km. É uma luta intensa contra os nossos medos, contra o limite do aceitável, contra o desgaste físico e mental. Lembrei-me várias vezes de quando jogava Monopólio em miúdo, e naqueles dias de azar, me fartava de sair o “Diretamente para a prisão sem passar pela casa de partida”. Lembram-se? No Monopólio recebíamos dinheiro cada vez que passávamos pela partida para podermos “comprar” as ruas e estações mais caras. Era um jogo de sorte que nos fazia eventualmente virtuais milionários. Não passar na “casa de partida” era um rombo na “Conta”. A UTSF é um manancial de “idas à prisão sem passagens pela partida”, e no entanto sabe tão bem. Provavelmente faz-me mesmo falta uma avaliação psiquiátrica…
Uma certeza trouxe da Freita: Voltarei sempre, para esta prova, para treinos, para desfrutar, porque ninguém resiste à Freita. Apesar de todos os treinos, e depois destas 6 participações, por muito que vá à Freita, há sempre algo novo, uma dor traçada por ele, uma nova subida ainda mais íngreme, uma descida de cortar a respiração, uma transposição de rios com pequenas praias fluviais que julgamos só existirem no paraíso… Enfim, uma qualquer maravilha que recordamos no dia seguinte sem nos lembrarmos onde nos doía o corpo àquela hora, já com mais de 50 km. E por isso voltamos. Para sentirmos toda aquela mistura de dor e prazer de superação, culminada com fantásticos mergulhos em infindáveis cursos de água límpida e cristalina. Sempre mais e mais água antes de mais uma subida às profundezas do inferno.
E do inferno, ou voltamos ou nos deixamos ficar, como foi o meu caso, outra vez. Mas sem qualquer ressentimento ou arrependimento. Se há coisa que me dá prazer é andar km a insultar o doido do Moutinho e dar-lhe um abraço no final. Ele anda meses a preparar 10 excelentes traçados de 10 km, para nos proporcionar o inferno, para nos mostrar que não somos nada contra a mãe natureza. A nossa e a da Freita. Conheço-a muito bem. Tenho a certeza que ele ainda me há-de pôr a correr onde eu nunca imaginei que fosse possível.
Tudo tão belo.
Obrigado Jose Moutinho e restante equipa, tão bem co-liderada pela Flor Madureira. A UTSF é um mergulho no mundo da aventura onde nada é o que parece, onde tudo é mais belo e mais duro. É a prova onde passamos por onde ninguém passa. É a prova que inclui passagem por aldeias abandonadas a menos de 1 km de outras, só porque para lá chegar é quase preciso ser-se atleta. É uma luta contra o cansaço onde cada km é uma bênção da natureza. Abençoada Serra. Voltarei cada vez mais vezes, e voltarei seguramente ao UTSF.
P. S. - Foto da Escola de Montanha. Passo mais tempo nos rios que nos trilhos.
P. S. 2 - Texto deste ano adaptado daqui http://tripasenortadas.blogspot.pt/2014/06/ultra-trail-serra-da-freita-2014.html
É que mudou a prova, mas a serra é exactamente a mesma, e as sensações também pouco mudam.
P.S. 3 - Este texto é pessoal. Ide-vos catar.
Óh páh … continuo sem "tomates" para me inscrever. É que este cabeça dura acha que quando for tem que ser à grande. Enfim … Aquele abraço e boa aventura
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