5h30 da manhã. Acordo sobressaltado pela eminente explosão de todos os músculos das pernas. Enfio-me na banheira, encho-a de água fria, e acrescento todo o gelo existente no exíguo congelador do frigorifico.
Mas que raio! Devo ser caso grave de patologia clinica, eventualmente de índole psiquiátrica. Quem é que no seu perfeito juízo, depois de 14 dias ocupados a recuperar de um entorse no pé, salta de pedra em pedra, por rios e montes, durante mais de 10 horas? Só um louco, ou alguém em forte aceleração para um estado de insanidade mental completa.
As pernas teimavam em borbulhar, num efeito conhecido por todos os que já atingiram um dia o limite de resistência muscular, ou o lactato, ou outra coisa qualquer. Cenas técnicas que a mim não me assistem. A mim só me calha a parte de tentar tornear o mau estar que causa.
Revivo por momentos as emoções singulares de mais uma aventura de montanha. Esta tinha sido mal preparada, devido à lesão de última hora, mas ansiada pela abrupta interrupção do ano anterior, aos 21 km por o estado do tempo não permitir a progressão em segurança de todos os atletas. A julgar pelo que vi este ano, foi muito sensata e acertada tal decisão.
Fui para a prova na esperança (vã) de a acabar. Sabia que 14 dias com apenas uma corrida de pouco mais de 10 k era muito pouco para poder apanhar com tanta montanha. Mas arrisquei. Ia tentar compensar a falta de treino com a determinação.
Parti com calma. Fiz os primeiros 15 kms num ritmo agradável. A primeira subida é dura, mas faz-se bem, e o resto do carrossel também se passa em ritmo agradável. A partir daqui a zona que eu mais temia, o rio. Este troço mais técnico, devido à instabilidade do pé, e o medo de reincidir na lesão, fizeram-me atrasar bastante, mas nada que não esperasse. Entre escorregadelas e tombos na lama lá passei o Pincho e as suas fantásticas quedas de água. Chegado a S. Lourenço da Montaria, onde estava a meta da prova mais curta e um abastecimento, primeira avaliação do estado do esqueleto e ponderação "desisto, não desisto...?", optei por seguir. O Manuel Veloso e o Rui Cunha, colegas do Porto Runners, estavam parados uns 500 mts acima do abastecimento e ponderavam o mesmo. Um com cãibras outro com um traumatismo na anca por queda, sentiam-se inferiorizados e com poucas condições para prosseguir. Sentamo-nos os 3, dei um Voltaren Rapid ao Rui e convenci-os a seguirmos juntos. Conhecia a subida, sabia-a dura, mas mais pela distância. Podíamos apoiar-nos mutuamente. Lá fomos. Já aos 25 kms, junto às eólicas, avistamos o "vassoura" (o Telmo Veloso assegurou a tarefa na segunda metade) junto com a Analice. Estávamos em nítida perda, mas com ânimo redobrado. Vinha aí uma descida. Ao chegar ao km 26 deparo-me com mais de uma dezena de corredores, animei-me, pensei que afinal não estava muito lento, havia um grupo grande. Puro engano, era um cruzamento com os 34 kms onde já vinham os que já tinham descido ao Cerquido e voltado a subir à Sra. do Minho. "Subida duríssima Rui", diziam-me o Carlos Madureira e a Flor que de lá vinham. Um elemento da organização que ali estava, animou-nos e aconselhou-nos a abastecer bem e apreciar a dureza e beleza daqueles 8 kms que se seguiam. A descida para o Cerquido foi rápida. Esquecera-me de cortar as unhas (que preciosismo) que agora ia arrancando enquanto recordava todos os pormenores da prova. Deitado na banheira, com os pés ainda massacrados lembro aquela descida e a vontade de as arrancar em plena prova. Chego ao abastecimento dos 29 kms, sento-me a uma sombra e, enquanto comia a sande de presunto que levava na mochila, pensava se ia ter pernas para subir novamente tudo aquilo. Ponderei seriamente mais uma vez desistir. 10 minutos depois chegam os meus companheiros de subida. Pouco depois o Telmo e a Analice e mais um atleta. Éramos os últimos. Saímos juntos. Na subida do Cerquido, onde o Carlos Sá faz séries, a Analice ultrapassa-me. Olho para baixo e vejo os outros 3 mais o Telmo. O Manuel Veloso, que sentia cãibras a descer, a subir revigorava-se e, entretanto, também me ultrapassava. Fiz um esforço, serrei os dentes e lá fui atrás dele. Entretanto um atleta dos Amigos da Montanha também me alcança. Que mal estava. Sentia os músculos das pernas a ferver. A subida era em calçada romana muito antiga, a vista sobre o Vale do Lima era de uma beleza insofismável e o dia estava solarengo. O vento, de Sul a anunciar mudança, em cada viragem do caminho, ora soprava por trás e ajudava, ora soprava de frente e refrescava. No alto, em cima de umas rochas, uns vultos aguardavam-nos. Eram mais voluntários da organização (inexcedíveis, simpáticos, solícitos, do melhor que se pode ver numa prova assim), de prevenção caso fosse necessária alguma ajuda. Chegado ao alto decidi não desistir. A missa decorria na Capela da Sra. do Minho. Uma criança brincava com o pai. O altifalante, veículos modernos de evangelização por esse Portugal rural fora, debitavam um cântico pouco afinado do coro que actuava na animação da celebração. Não era ali que eu ia ficar.
Segui no encalço do Manuel Veloso. O Rui Cunha, que queria parar aos 29 também vinha pouco mais atrás com o Telmo. Estava bem entregue. Aos 34 kms cruzo-me com o cunhado do Carlos Sá, que me felicita por ali ter chegado. Diz-me que o pior já está, incentiva-me e fica por ali à espera dos outros. Pouco depois, na descida, apanho o Manuel Veloso. Fomos juntos até ao km 43. Ora ele me passava a subir e incentivava a acompanha-lo, ora eu abria caminho a descer e a saltitar de pedra em pedra. Depois do km 38, o percurso estendia-se por kms divididos exactamente por metade a subir e metade a descer. Sempre por percursos duros em zonas de rocha. Sempre. A resistência era posta à prova ali. Tanto a física como a psicológica. Aguentámos bem. O Manuel Veloso, dizia que já tinha idade para ter juízo, eu concordava, ele subia bem, eu descia melhor, fomos repartindo forças e lá chegamos ao km 43, ponto comum com o km 3, donde se avistava a meta em Dem. Ali, com o mar no horizonte onde um último raio de sol lhe dava a cor do fogo, por entre as nuvens que entretanto já preencheram o céu, sentíamos o gosto da vitória da vontade sobre todas as dificuldades. Uma última contemplação sobre a espectacular vista da Serra d'Arga, que tem muito para apreciar, destacando-se sempre os cavalos que ali vivem em ambiente natural, numa completa harmonia de uma natureza no seu estado mais selvagem. Pena é que os humanos teimem em deteriorar a paisagem com lixo que por ali vão depositando em incursões mecanizadas.
Na descida ouvi o bater das 18h. O tempo limite da prova estava atingido. A Analice, que entretanto eu alcançara dizia que era limite de 42 e não de 46 kms. Eu sorria. Não era o tempo limite que importava. É aquele sentimento de superação. Aquela agradável sensação de recordar, sempre nos últimos metros, tudo aquilo que tenho passado. Toda a evolução que tenho vivido nos últimos 4 anos. E o prazer enorme de poder terminar uma prova espectacular. Mesmo exemplar em termos organizativos. O percurso é duro. Todos os que andaram muito rápido na primeira metade, pagaram um preço alto na segunda. Não foi o meu caso. Eu paguei em toda a prova. Mas fui recompensado por toda uma experiência que, no próximo ano, irei repetir.
O Manuel Veloso, a Analice (grande campeã) e o Rui Cunha acabaram também a prova. O Telmo acompanhou e ajudou o Araújo (atleta dos Amigos da Montanha) a superar os últimos kms em grande dificuldade. Foi uma prova de superação para todos os que a fizeram. Parabéns ao Carlos Sá, que é um exemplo como atleta, e também um excelente anfitrião. Estava lá, na meta, à espera dos últimos, com o Marco Olmo, padrinho desta edição.
Somos todos um bando de gente incurável. Depois de cada empeno inscrevemo-nos para outros. Ainda alguém há-de (d)escrever os loucos da montanha. Seja pelas amizades que se fazem com aqueles que sabem o que sentimos, mas que só vemos no início e no fim das provas, seja pelo prazer de apreciar a natureza, seja pela vontade de nos superarmos, sentimos todos uma necessidade inexplicável de fazer sempre mais do que achamos possível. Não há limites para qualquer um de nós, senão aqueles que nós colocámos a nós próprios. Desde que a máquina não falhe, que essa, nem se discute, é prioritária.
Mais um belo relato, ... que eu li de pernas esticadas em cima de uma cadeira, apesar de jé terem passado 3 dias da prova ...
ResponderEliminarAquele abraço, campeão!
Foi um valente empeno. Tu fizeste uma grande prova. Recupera, de pernas ao alto. Aquele abraço!
EliminarRelato fantástico Rui Pinho!!! Fico mt contente que conseguiu finalizar esta Prova fantástica!!! Espero revê-lo na Prova dos Amigos da Montanha. Vão ser quase 60 km de puro prazer. Gd abraço e melhoras rápidas.
ResponderEliminarNão devo ir a essa, com muita pena minha. Mas vamo-nos encontrando por aí, nos treinos, ou antes das provas, que tu estás uma máquina. Abraço.
EliminarRecupera bem meu caro
ResponderEliminarAquele abraço
Bruno, obrigado pela força que me foste dando. Vocês foram inexcedíveis. Espero poder em breve ver toda a recompensa da tua dedicação ao treino. És um dos valores a despontar por cá. Um grande abraço!
EliminarGrande prova de superação caro amigo Rui, a emoção tolda-nos os olhos quando finalmente chegamos ao fim de um suplício que impômos a nós próprios. O relato está excelente, é preciso ter uma memória prodigiosa para abarcar com quase todas as incidências de tão grande aventura. Desejo uma boa recuperação.
ResponderEliminarEu tinha dito que não podias faltar ao GTSA para nós não ficarmos privados de uma soberba crónica! Grande abraço, Rui!
ResponderEliminarGrande relato Rui. Só quem participa é que sabe realmente a alegria imensa que sentimos a andar por aqueles montes. Para o ano estaremos lá novamente. Mas olha que até ao fim do ano ainda tens a Utax e a ultra trail AM em Barcelos. Eu vou-me ficar só pela de Barcelos. Aparece por lá, o divertimento é garantido... Abraço. Zé Soares:)
ResponderEliminarParabéns Rui.
ResponderEliminarParabéns Rui
ResponderEliminarCada prova tem a sua história, umas com mais dificuldades outras com menos, mas o mais importante é conseguirmos chegar ao fim mais ricos e com um melhor conhecimento de nós próprios.
Abraço