terça-feira, abril 30, 2013

Um Caminho de Vida

Quando acabámos a subida até à entrada na zona histórica de Santiago de Compostela, de um imenso e estranho silêncio, surgiu uma espontânea salva de palmas dos que, já no destino, descansavam nas esplanadas dos cafés. O Caminho é assim, feito de espontaneidade, solidariedade e partilha.

Não esperava, muito sinceramente, que ainda houvesse no Mundo ocidental, tão cheio de egoísmo, inveja, medo e com tantas “trancas” em tudo, um imenso caminho de confiança. É normal encontrarmos nos imensos recantos do Caminho, desde os Albergues aos cafés, trilhos, estradas, templos religiosos ou mesmo campos de cultivo, um peregrino que nos saúda e com quem trocámos palavras de apreço, admiração e incentivo. Nos albergues, tudo ainda é como devia ser. As portas estão abertas, as coisas de cada um permanecem onde as deixámos, o silêncio e o respeito imperam, a partilha é o mote de todos, apesar de cada peregrino se manter numa espécie de limbo individual, onde é normal grupos separarem-se e encontrarem-se pelo Caminho, sem dramas, porque cada um vai caminhando como quer, sem sacrifícios extremos, sinónimos de outras peregrinações, parando onde lhe apetece, sabendo que seguindo as silenciosas vieiras e setas do Caminho há-de encontrar o seu meio, o conforto de quem o acompanha.

Saímos na Quarta-Feira, dia 24 às 8h30, da Sé Catedral do Porto. Entrámos às 17h no Albergue de Barcelos. Foi assim, com esta regularidade de horários até ao último dia. Curiosamente, sem o prevermos e sem fazermos nada para que assim fosse. Foi assim que calhou, e foi assim, mesmo tendo o grupo feito todo o Caminho sem pressão para partir, parar, acelerar ou abrandar o passo, ou sequer olhar para as horas. Fizemos o Caminho sem saber o que vinha, mas obtendo o que nos fazia falta, como no segundo dia, quando, chegados ao Albergue de Rubiães, restavam ocupar… 6 camas, exactamente o número de camas que precisávamos. Ou no terceiro, em que, chegados a Redondela, com o Albergue lotado, tivemos a sorte da presença do inexcedível amigo Ramiro Alvarez, que combinara correr alguns quilómetros connosco, e que, com a sua esposa, fizeram questão de nos albergar em sua casa, com tamanha mordomia, que penso que foi a melhor noite que todos dormimos desde há muito tempo.

Tanta paz nos dá o Caminho. Dá-nos vontade de partilhar, de sorrir, rir, correr, saltar, abraçar o Mundo, o nosso Mundo que tanto destruímos sem razão. O Carlos Natividade tinha-nos dito que o Caminho nos agarrava e nos chamava. Agora entendo na perfeição o que ele, na sua imensa sabedoria, dizia. É arrepiante, mas ao mesmo tempo enternecedor e calmo o que nos dá o Caminho. É a soma das bondades do ser humano, que convergem numa Catedral que é sinónimo de paz e acolhe todos, sem olhar a cores, credos ou estatutos. Ali, aliás como na corrida, somos todos iguais.

É quase impossível fazer uma crónica factual de um Caminho que, apesar de feito com mais 5 pessoas, foi das coisas mais introspectivas que fiz. E introspectiva, apesar de partilhada com 4 companheiros de corrida espectaculares, e uma fabulosa protectora que nos apoiou na rectaguarda, a Naná, esposa do Carlos Natividade, e que nos proporcionou uma fabulosa demonstração de altruísmo em toda a logística necessária para que nós nos preocupássemos apenas em correr.

Não podíamos ter escolhido melhor termo de comparação com a corrida do que o Caminho de Santiago. A melhor definição que eu tenho para a corrida, para a corrida que quase todos nós fazemos, por prazer, por recriação pessoal, é que correr é liberdade, é solidariedade, é a forma de nos mantermos crianças alegres e traquinas, de podermos ser livres e despreocupados, exactamente como as crianças, coisa que já ninguém compreenderia em qualquer outra situação da nossa vida adulta. A corrida liberta-nos da rotina diária, do trabalho, do “politicamente correcto”, da azáfama do dia-a-dia, como mais nenhuma actividade. Não precisámos de tapar os ouvidos para nos ouvirmos apenas a nós próprios quando corremos, não precisámos de marcar hora de correr, de meteorologia favorável, dependemos apenas da nossa vontade. Sabemos que vamos gostar. Não há um dia em que cheguemos ao fim de uma corrida tristes porque estivemos a correr. É a nossa pílula de aconchego. Agora sei que encontrei um destino onde encontrarei tudo isso. Santiago é para o Caminho como a meta para uma qualquer corrida, é o destino mas não é o fim. E no entanto deixou-me a mesma sensação de vontade de voltar como no fim de qualquer corrida voltar a calçar as sapatilhas.

Fico para sempre com imagens flash de 5 amigos a rir, saltar, brincar por imensos 245 km, desde os primeiros 2 dias, onde se enfiavam em tudo o que eram tanques e cursos de água para refrescar os músculos, até ao serpentear de ruas escurecidas pelas antigas casas graníticas, até ao emocionante e sentido abraço na solarenga Praça do Obradoiro.

Sobra a pena de não ter podido ir com todos aqueles que também queriam juntar-se ao grupo, mas fica o orgulho de ter ido com os 5 com quem fui. Foi uma enorme honra partilhar 5 ultra maratonas em 5 dias. 55 km no primeiro dia, do Porto a Barcelos, onde ficámos no Albergue local, 52 no segundo, que acabámos em Rubiães. No terceiro dia, entrada em Espanha com repetição da quilometragem do dia anterior, mas com o conforto e amparo do amigo Ramiro e restante família Alvarez, que nos proporcionou uma noite de reis. Os dois últimos dias foram de 43 km até Caldas de Rei, onde, na entrada da localidade, festejámos o 200º quilómetro, e de 44 na última etapa até Santiago de Compostela. 

Se servir de alguma coisa a experiência destes 5 dias, podem sempre contactar-nos, mas fica a dica da importância da hidratação, alimentação e principalmente um bom espírito de sacrifício e uma gestão inteligente do esforço. Ouçam o corpo, a mente e convençam-se que nós só não conseguimos fazer o que não nos dispomos a tentar. É este um dos grandes ensinamentos do Caminho.

Obrigado Carlos Natividade, Luis Sousa Pires, João Paulo Meixedo, Vitor Dias pela vossa paciência em me aturarem todos aqueles quilómetros. Não faço aqui juras de “amor eterno” porque não tenho jeito para declarações, mas garanto-vos que, convosco, corria até ao fim do mundo. À Naná fica um agradecimento especial, pela dedicação e pela incrível paciência e calma. Obrigado.

A todos os que leem estas coisas que escrevo, obrigado por partilharem comigo este Caminho. Os que comentam, os que não comentam, os que me conhecem, os anónimos, todos vós sois peregrinos com quem partilho o meu Caminho de vida. A todos o meu obrigado por todo o apoio que sei que nos deram.

Vou continuar a tentar fazer o Caminho da vida como até aqui, mas enriquecido com esta brutal experiência de humildade, partilha e solidariedade.

Vamos então:

Ao Caminho!

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8 comentários:

  1. Estou arrepiado Rui...magnifico texto, bela aventura, grande aprendizagem e fantástico grupo de amigos.
    Gostei especialmente da frase "só não conseguimos o que não nos dispomos a tentar"... nem mais... pode ser que um dia tente...gostava muito.... neste caminho ou noutro.
    Aquele abraço e obrigado por partilharem esta vossa aventura.

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  2. Muito bom e potente. Os meus cumprimentos pelo acompanhamento no Paleozóico. Abraço e excelente relato.

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  3. Parabéns por toda a tua postura. Grande abraço.

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  4. Rui,
    Bonito testemunho!! Se me permite, em breve o publicarei no "meu" cantinho.
    Buen camino!

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  5. Gostei muito deste "Um Caminho de Vida". Magnífico. Parabéns.

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  6. Meu caro amigo, obrigado pelo teu testemunho, pois é ensinamento e vida.A nossa equipa LOUSADA RUNNERS finalizou a 1ª etapa (Porto/Barcelos) no passado dia 24/7 e comungo do teu/vosso sentir. Faltam-nos as palavras pois só os olhos da alma transmitem sentimentos indescritiveis. Ver-nos-emos por aí e partilharemos kms de conversa. 1 ABRAÇO

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