Na versão original dos irmãos Grimm da fábula “A Branca de Neve e os 7 anões”, a Rainha má tenta matar a protegida dos anões uma série de vezes. O conto não atribuía nome aos anões, apesar de lhes atribuir personalidades diferentes. Já a versão de Walt Disney conta a história dando nomes coincidentes com a personalidade dos personagens.
A UTSF deste ano foi uma espécie de A Branca de Neve e os 7 Anões revisitado. Nos outros anos tentam-nos “matar”, como na versão animada, apenas uma vez. Este ano, cada dezena de quilómetros parecia ter uma personalidade própria. Desde o “Sabichão” que são os primeiros 10, que nos aconselha sensatez e calma, para não pagarmos mais à frente o esforço, até ao “Feliz” final, passando pelos 10 km do “Zangado”, algures entre o km 50 e o 60, todas as parcelas, ontem, de prova, pareciam ter uma personalidade tão própria e óbvia, que o desenho se anima à medida que vos passar os traços de mais uma loucura, que sempre se anuncia dura, bela e nos proporciona a ansiedade do regresso.
Começar a prova é um desafio já de si enorme para qualquer um, mas incomparavelmente superior para quem já a fez, total ou parcialmente, e isso nota-se na abordagem dos atletas nos quilómetros iniciais, onde alguns fazem autênticos sprints pelos trilhos fora, sem saberem o que aí vinha, e outros, avisados, se contêm. Com início às 5h30, havia que aproveitar ao máximo a temperatura ainda amena e a ausência do sol que nos havia de castigar incessantemente até depois das 21h, para tentar progredir o máximo possível. Mas quem repete esta prova, adivinhando o que o espera depois dos 40 km, tem normalmente algum receio de gastar a descer, aquilo que lhe vai fazer falta mais à frente. E, apesar de nos gráficos de altimetria da prova não parecer, os primeiros 20 km têm a função arreliadora de nos moer as articulações, seja no trilho do Carteiro, seja no rio onde cada pedra é um desafio para contornar. Este ano, com a ausência de chuva na última semana, o rio foi um desafio que contornámos com menor dificuldade, mas com a progressão igualmente lenta.
De Covelo de Paivô (km 20), até ao abastecimento de Drave (km 30), passando por Regoufe, foi um agradável passeio de trail, com as fantásticas vistas que toda aquela cordilheira nos proporciona, onde deu inclusive para fazer uma ou outra foto, e para gritar incentivos aos que, 200 ou 300 metros abaixo (1h, 1h30 à frente), abordavam já o trilho que os havia de levar ao dos Aztecas. A chegada a Drave é sempre surpreendente. Aquele aglomerado de casas de xisto faz-nos viajar no tempo e certifica a máxima de que o homem consegue contornar a maior das adversidades.
No abastecimento dos 30 km não há sólidos. É compreensível. Para se estar naquele abastecimento já tem que se ser atleta. O acesso é feito por trilho, a pé, carregando tudo o que é necessário dar aos atletas. Quem quiser fazer esta prova, deve a partir daqui planear muito bem a alimentação. Os primeiros 3 ou 4 km são feitos por um ribeiro (este ano quase seco), muito exigente para as articulações, e por saídas por trilhos íngremes e exigentes que ladeiam as encostas. São de progressão lenta, este ano dificultados pelo calor e pela ausência de vento. Não quero exagerar, mas não deviam estar menos de 36º naquela zona. A hidratação foi fundamental. O Asdrúbal Freitas grande atleta de trail e excelente desenhador de trilhos, (não fosse um dos braços direitos do Moutinho) “inventou” duas fontes, entubando primorosamente o precioso líquido, que salvou seguramente muitos de nós da desidratação. Muitos dos que não quiseram perder (ou ganhar) 3 ou 4 minutos naquelas fontes para beberem e encherem os reservatórios com água fresca, arrependeram-se na dura subida até aos 3 pinheiros. Aquele monte, completamente exposto ao sol, foi o “estalo” da prova de ontem. O trilho dos Incas, que nos levaria até ao abastecimento dos 40 km, estava cheio de atletas exaustos e espalhados nas poucas zonas de sombra. Alguns só sairiam dali com apoio. O abastecimento na Póvoa das Leiras, habitualmente de festa (não fosse o da cerveja fresca e do chouriço assado), parecia um cenário tirado da maratona das areias. Não havia muita gente com aspecto fresco e a carrinha da organização começava a enésima viagem, com desistentes, até ao Merujal. A médica da organização saía a correr trilho fora para apoiar um dos muitos desidratados. Eu e o Meixedo, companheiro desta e outras muitas aventuras, frescos, fugimos dali depois de encher os cantis. Apressados, cometíamos o primeiro e único erro que quase nos custava a prova: Quase não comemos.
Enfrentámos a “Besta”, trilho desenhado numa escombreira de uma antiga mina de exploração de volfrâmio, em pedra solta, com mais de 100 mt de corda no seu ponto mais inclinado, e onde eu já sentia a falta de alguma coisa. Estava quase desidratado (sem sede, como todos os desidratados) e sentia-o. Um gel, uma barra energética, alguma água não eram suficientes para repor o sal que tinha perdido na transpiração e que jazia nos meus calções, fazendo-os parecer como se fossem de pladur e a minha mochila preta parecesse ter sido caiada. Já no parque eólico e antes da descida para Manhouce (abastecimento 50 km), senti enjoos e fraqueza, que juntos com o imenso calor do meio da tarde me fustigavam de frustração por sentir as pernas frescas e o corpo cansado. Descemos a passo, eu e o Meixedo, fomos-nos sentando aqui e ali, bebi água em todas as bicas da Aldeia de Muro, mas continuava com a falta de sal. Chagado pelo sol, amolecido pelo calor, abatido pela desidratação, pensei que ficaria ali, à espera de boleia para o destino. Como sempre, há alguém que acredita mais em nós, que nós próprios. Que nos incentiva e nos tenta demonstrar que temos mais do que pensámos, que há sempre um renascido em cada derrotado. Fundamental o apoio do Luis Pereira, atleta de topo de trail, que teve o juízo de não se meter a correr debaixo daquele calor, a paciência do casal Fernando e Fátima Rocha, que estão sempre ali, ao km 50, a dar mais do que apoio, são uma simpatia, e o Fernando, sempre com um incentivo sensato. O Meixedo deitou-se à sombra a dormir. Eu, enquanto comia melancia, batatas fritas, fatias de presunto tiradas do meio de um pão, rejuvenescia. Só me vinha à cabeça a expressão “sal da vida”. Neste caso foi mais o sal DÁ vida.
Como quase não me calo, o Meixedo acordou. Já tinha demonstrado que não estava na disposição de desistir, não fosse ele um teimoso de primeira água, e que também não aceitaria que eu desistisse sem antes descansar, comer, hidratar-me e ver se estava ou não em condições de prosseguir. Acordado e rezingão, fez-se ao trilho de dedo em riste, apontando o caminho a pé até ao Merujal. Lá fomos. Estava rejuvenescido. Até ao final não tive mais nenhum episódio do género. Fomos dali até ao km 60 a “comer regueifa”, como diz o nosso mestre e grande amigo Carlos Natividade, e apesar da exigência das subidas e da exigente descida para a Aldeia das Porqueiras, acabei quase a correr a subida até ao abastecimento. Colocado o frontal, aconchegado o estômago com uma salgada canja e tomate com sal, arrancámos rumo ao destino, apesar do tempo já apertado. Poucos metros à frente estava a Célia Azenha, experimentada ultra maratonista, no meio do monte a perguntar por onde era o caminho. As fitas, algumas enroladas pelo vento nocturno de leste, não eram totalmente visíveis, e ela optara por esperar por mim e pelo João. Ali formámos o trio que havia de, algumas horas depois cortar a meta. Juntos fomos subindo, passando por um ou outro atleta, o interminável trilho da Lomba. São 5 km penosos, que à noite se transformam numa lenta caminhada com impropérios para quem nos fez ir por ali, e por elogios deslumbrantes pela magnífica vista nocturna que se desenhava no horizonte. É raro ter tanta visibilidade na Freita e poder ver ao longe as terras que circundam o vale do Vouga, com as suas cintilantes luzes amarelas que mais parecem um imenso carrossel de velas. Maravilhados com as vistas, abismados com a dureza da prova, já só ansiávamos ser barrados aos 65 km por excesso de tempo. Os 300 mt de desnível do PR 7 e da Mizarela pareciam-nos um muro intransponível, fosse pela noite, fosse pelo esforço dos mais de 3000 mt de desnível positivo que já trazíamos acumulados. A Célia, que já fez o mítico Tour de Geants, Mont Blanc, Trans Gran Canaria, Andorra Ultra Trail e outras, dizia que esta era a prova mais dura que tinha feito, não pelo desnível, mas principalmente pela exigência técnica que tanto dificulta a progressão. Chegados ao topo da subida da Lomba, aparece um carro, num cruzamento do trilho com a estrada, com elementos da organização. Pelo rádio, o Moutinho, director da prova, dizia que estava a barrar a passagem no acesso ao PR7. Era já tarde, todos conhecemos os perigos para quem para ali vai depois de 16, 17 ou 18h de prova, e da dificuldade de um eventual resgate. Sensatamente decidimos continuar até ao final, mas sem colocar em perigo a nossa integridade física. Iriamos pela estrada. Recusámos a tentadora boleia e fomos estrada fora, prometendo aos membros da organização que não nos meteríamos no trilho. Uns km à frente, cansados e algo desorientados, uma simples má escolha de direcção num cruzamento levou-nos a perder mais de 1h no meio de um imenso vale, sem noção do local onde estávamos, ou sequer hipótese de voltar para trás. A Célia tinha ficado sem frontal, víamos umas luzes ao longe, que nos parecia ser a casa do Guarda, perto do parque do Merujal, mas não tínhamos noção ou ideia de como lá chegar. O Meixedo decide ir vale fora, eu parado ia-lhe dando indicações da direcção das luzes, e de repente, desapareceu. Fiquei com a Célia, um frontal para dividir, tojos até à cintura, cansados e já a pensar que a Mizarela teria sido o melhor que nos podia ter acontecido. No meio do breu, já a tentar ir na mesma direcção que o João havia tomado, de repente, aparece ele. Estávamos perto do PR7, junto à saída da Mizarela, e que nos levaria até ao final. Acabámos aquela imensa e intensa aventura com mais de 72 km, e um sentimento de superação, camaradagem, solidariedade e desportivismo que tanto caracterizam o ultra maratonismo e o trail em particular.
Ainda não sei muito bem o que fazer com a Branca de Neve nesta história toda, talvez a reserve para personificar a beleza da Serra da Freita e toda a sua arrebatadora imponência.
O papel de madrasta má, que com um sorriso malvado nos prega sempre mais uma partida, fica bem entregue ao José Moutinho. É um mestre a por-nos em dificuldades. Quando achámos que a Freita já era dura como era, ele brinda-nos com trilhos como o “Run Sintra”, ou a “Besta”, ou mesmo a descida à Aldeia das Porqueiras, para que saibamos que pode ser pior ainda. Acho que lhe devo também deixar o papel de Rei, o pai bondoso da Branca de Neve, porque consegue amansar-nos com um abraço no final. A todos sem excepção.
A personagem do Príncipe que nos ressuscita fica na perfeição para todo o Staff da prova. Incansáveis, quase todos eles também atletas, são inexcedíveis. Exemplares. Desde a entrega de dorsais, aos abastecimentos, apoio, tudo. Foram o beijo essencial para anular o veneno da maçã da bruxa.
Os anões esses são muito bem distribuídos, um por cada dez km da UTSF. O Moutinho batizou (e bem) alguns trilhos com nomes de emblemáticas provas de trail. Eu batizo as fases da prova assim:
10 km – O Sabichão. Onde devemos apelar à razoabilidade e conhecimento de quem conhece a prova, e nos avisa para não exagerarmos.
20 km – O Dunga. Como no conto, o único que não falava. Porque parece difícil mas não diz nada do que vem depois.
30 Km – O Envergonhado. Há trilhos já inclinados, há mais dificuldade, mas ainda não mostra muito.
40 km – O Atchim. Um espirro, um estalo, uma chapada chamada trilho dos Aztecas, onde uma subida interminável nos traz à realidade.
50 km – O Soneca. Depois da “Besta”, depois da desidratação no meu caso que quase me adormecia, uma acalmia de 5 km até Manhouce e ao Rio menos poluído da Europa, o Rio Teixeira, onde apetece mergulhar e dormir a sesta.
60 km – O Rezingão ou Zangado. Aqui, algures entre os km 54 e 65, fartámo-nos de dizer palavrões e de bater no tipo que fez aqueles trilhos massacrantes.
70 Km – O Feliz. Seja pelo final, pelos 4 ou 5 que esperam por nós junto à meta (obrigado família Batista), seja pelo sentimento de superação. Ou seja mesmo pelo que conseguimos naquelas 10, 12, 16 ou 20h anteriores: Sermos felizes apesar das contrariedades. Não há como isto. Montanha, natureza, dureza, sofrimento, superação, camaradagem e solidariedade. Feliz.
Ainda não sei as classificações, mas essas até me parecem o menos importante em tudo isto. Ganhou o fantástico Luís Mota, com pouco mais de 9h30 e a Ester Alves (que se estreou na Freita) venceu no feminino. Parabéns aos dois.
Parabéns a todos os que tentaram e a todos os que se superaram. Espero que ninguém tenha sequelas graves do dia de ontem.
Não desistamos nunca. Se não terminámos hoje, tentámos amanhã. No fundo, o que levámos do Trail e dos Ultra em particular, são os momentos e a aprendizagem. A natureza, a serra, toda aquela beleza fica lá, espera-nos. A mim, em particular, atrai-me. No próximo ano não faltarei. Só espero conseguir convencer o João Paulo Meixedo (o verdadeiro Rezingão) a juntar-se a mim, naquela que é já a prova que prova que ele é um amigo e excelente companheiro. Já é o segundo ano consecutivo em que ele me “empurra”.
Não podia fechar os agradecimentos sem me referir ao Carlos Natividade, meu grande mestre, que me fez o favor de esperar por mim nos treinos que fizemos na Freita, e à incansável Naná, sua paciente esposa, de uma simpatia e pachorra extremosa, sempre disponível para aturar as nossas longas maluqueiras no monte. Obrigado.
Lá estaremos em 2014.