quarta-feira, outubro 02, 2013

Mudar de direcção

O meu pai foi policia 11 anos. Ainda hoje, aos 76 anos, conduz como lhe ensinaram na extinta Polícia de Viação e Trânsito. Faz pisca para sair de estacionamento, pisca para mudar de direcção, para estacionar, pisca sempre. Chega ao cúmulo de alternar os piscas enquanto faz a manobra de inversão de marcha. Exageros da boa formação. Hoje de manhã andei uns quarteirões atrás de um carro patrulha que nem um único pisca fez. 
Há pessoas que assinalam tudo, desde mudar de emprego, de passatempos, de mulher, de carro, enfim, do que quer que seja, e dizem-no ao núcleo mais próximo, sejam amigos, família ou ao merceeiro. Outros há que nos surpreendem pela mudança sem nada o prever. 
Esta sociedade que foi criada, de rotinas, de Pais, filhos, família, trabalho, amigos, tem virtudes e ainda mais defeitos. É uma sociedade rotineira, onde todos pagámos um preço pela circunstancial liberdade que todos cremos ter. Estamos agarrados à família, ao banco que antecipou o dinheiro para a casa ou para o carro, ao emprego que permite ter todos os comodismos de que não se quer prescindir, à mulher que lava a roupa, passa a ferro, faz o almoço e outras cordialidades, ao leva à escola-traz da escola-leva ao treino-deita na cama, enfim, às rotinas da sociedade urbana moderna. 
Para tudo isto vivemos em caixotes verticais que chamamos prédios, com plasmas e pc's, smartphones e tablets, por onde vemos passar sonhos que só conquistamos com uma volta pela rotina ainda naquela noite e em todos os dias que se lhe seguirão. 
Ocasionalmente somos felizes, mas no dia-a-dia somos rotineiros. Já lá vão os tempos em que tudo era novidade. 
Cada vez mais os nossos anos parecem meses, quando nos tempos em que éramos livres, os meses nos pareciam anos. Agora, em cada Segunda-Feira há um regresso à rotina. A sua ausência só é permitida para os que ainda não têm contas para pagar, filhos para tratar ou conjuge para amar. Esses mantêm a ânsia de cumprir o sonho, que se transformará naquilo que é o homem da sociedade moderna. E depois desiludem-se e vêm que, afinal, os contos de fadas são só isso, Contos de Fadas. 
Na vida como em tudo, o entusiasmo é apenas no início, quando tudo é novidade, quando queremos sentir mais e mais sensações, experiências, vivências, coisas novas! E fazemos sempre os mesmos gestos à espera de resultados diferentes... É a segurança da rotina. 
Na corrida, ao contrário do resto, tudo se sente mais intensamente. Buscamos ali o sorriso fácil, a dor que não esperávamos, ou a sua ausência quando a tínhamos como certa, a sã convivência com quem queremos conviver, o simples prazer de lutar contra muros e intempéries que nas rotinas não somos capazes de enfrentar. Na corrida somos de novo livres, e por isso corremos. Uns e outros, aqui e ali, de madrugada, sozinhos ou em grupo, às vezes em silêncio outras a conversar. Corremos apenas porque sim.
Eu não faço "Planos de treinos". Tenho para mim que fazê-lo é comprometer aquilo que a corrida trouxe de diferente para a minha vida: A liberdade de poder escolher o "Quando, onde, como e com quem", sem fazer fretes, numa espécie de relação aberta. Como no sexo com uma amizade "colorida", (o inesperado sabe sempre melhor, daí ter sempre sapatilhas no carro) se nos encontrarmos e nos apetecer, tudo bem. Até pode ser com um desconhecido ou com quem já nos havíamos cruzado, isto sim é a pureza das coisas que nos dão mais prazer e que mais significado têm, pela ausência de rotina. Por isso gostamos tanto das férias, ou de surpresas. Isso sim é viver, o resto é rotina para mantermos o "status quo". 
Apetece-me mudar de direcção e vou fazê-lo, mas sem "dar pisca". Não que os "condutores" que vêm atrás não mereçam consideração, apenas e só porque não quero rotinar a minha vida. Acontece o que tiver de acontecer, sem "Planos". "Dar pisca" e depois não "virar" é bem pior que não assinalar, porque as desilusões nascem da expectativa. 

16 comentários:

  1. Adorei!
    Um autentico hino à liberdade!

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    1. Um abraço Jorge e obrigado pelas simpáticas palavras ;)

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  2. Muito bom Rui. Posso partilhar? (com os devidos direitos de autor claro) :)
    Abraço e boa mudança de direção.

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  3. Tenho de passar mais vezes por aqui!!!

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  4. Muito bom Rui, mesmo muito bom....como sempre. Estes teus textos fazem-nos reflectir.....mudando de direcção ou não, o importante é que sejamos felizes.
    Grande abraço

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  5. À primeira vista pode parecer redutor pegar num aparentemente pequeno pormenor do teu texto e tecer apenas considerações sobre ele, deixando toda a essência do teu pensamento em segundo plano, mas para quem estiver atento e te conhecer bem perceberá a subtileza. Finalmente alguém percebe porque é que eu nunca cumpri um plano de treinos. Como muito bem escreve o Jorge Branco, trata-se de um hino à liberdade. Ficarei expectante para perceber se também se trata de um grito do Ipiranga.

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    1. Eu grito pouco, amigo. Digamos que é uma reflexão sobre ser ou não tão sincero e ter tanta deferência quando vou fazer isto ou aquilo. É uma reflexão que tantas vezes fazemos sobre se o que temos feito nos realiza.
      E é principalmente isso, um grito à liberdade, que eu tanto prezo e não quero nunca deixar de ter. Mas para isso tenho que "a respeitar" sendo feliz o melhor que sei e possa.
      Abraço!

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  6. Bravo, Rui. Como sempre, estamos perante um excelente texto de reflexão. Há quem defenda a disciplina. Mas deixe-se isso para as coisas que valham realmente a pena. A nosso Corrida não é dessas coisas, por isso também eu sou um defensor acérrimo do treino vadio : correr quando e se apetecer, onde apetecer, com quem apetecer. Assim, retira-se dela muito mais proveito, ainda que a progressão seja diminuta. Mas quem é que, depois dos 40 ou 50, ainda pensa em melhorar o desempenho? Abraço, Rui.

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    1. Obrigado Fernando. Realmente não consigo encontrar motivação para disciplinar uma paixão. A paixão vive-se, não se disciplina. Gosto muito de correr livremente.
      Grande abraço!

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  7. Por vezes quando se "perde" determinada "rotina" é que se percebe como se era feliz a vivê-la :)

    A vida é feita de obrigações também, e aí podemos ser obrigados a viver e praticar determinadas rotinas que nos trazem pouca ou nenhuma felicidade, ou até mesmo, só nos tragam infelicidade ou frustrações.

    Cabe-nos a nós saber vivê-las o melhor possível, essas, as "obrigatórias" pois todas as outras, se vividas por escolha têm elas a obrigação de nos fazerem felizes, mesmo se rotineiras. Se não nos trazem felicidade, então, de facto está na hora de alterar a rotina, mudar de direcção, com ou sem pisca, dependerá da consideração que nos merecem as pessoas a quem piscamos.

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    1. Olá Maria :)
      Obrigado pela partilha.
      O que nos faz felizes nunca é rotineiro. Apenas rotinamos métodos que nos levam a fazer algo que nos dê prazer.
      Claro que há obrigações que temos de cumprir, e que provavelmente não nos dão prazer nenhum, mas o segredo é que podemos equilibrar a balança com coisas que nos agradam mais.
      O pisca é obrigatório. Mesmo que não queiramos, porque sem consideração pelos outros, perdemos respeito por nós próprios. Concordo.
      Bjnhs

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  8. Sempre grandioso!!
    Delicio-me e "encontro-me" em quase todo o que escreves! OBRIGADA! :)

    Abaixo os piscas e os fretes!
    Viva a liberdade, a paixão, e a coragem da mudança de direção!
    Rui Pinho a presidente :)

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    1. É essa a ideia, Patrícia. Coragem para viver livremente as paixões é seguramente o segredo da felicidade. Principalmente a coragem ;)

      Bjnhs

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