A minha 9ª maratona de estrada (20ª absoluta), coincidiu com a 10ª edição desta que é, há muito, a mais participada e a melhor maratona em território nacional.
Pelo 4º ano consecutivo alinhava à partida da distância rainha do atletismo, depois de em 2009 ter corrido a “Family Race”, prova de 15 km, integrada na mesma organização, e que dá um colorido especial à partida, junto ao Palácio de Cristal, fazendo com que a multidão à partida seja avassaladora e arrepiante. Tanta gente tem aderido à corrida e às diversas provas que se organizam nesta cidade, que parecem ser, a seguir à noite de S. João, as ocasiões em que mais gente se junta para uma manifestação, neste caso desportiva.

Tinha como primeiro objectivo, como em todas as provas que alinho, terminar sem sequelas, e de preferência em condições de correr no dia seguinte. É que gosto tanto de correr, que não arrisco nada para fazer melhor. Acho que devo cerrar os dentes e contrariar as fraquezas, mas nunca contrario o corpo, só a cabeça. Talvez só assim se justifique a ausência de lesões nestes anos de corrida. O segundo objectivo era terminar abaixo das 4 horas. Tinha falhado este objectivo nas 2 anteriores edições por ridículos 4 e 2 minutos respectivamente.
O UTAX tinha deixado as suas marcas, principalmente no “motor”. Sem o gripar, deixara-o cansado, sem capacidade de exceder as 3.000 rotações. Notei na descida da Avenida da Boavista, entre os 4 e os 7 km, que aquele não era dia para grandes veleidades, atendendo ao facto de não conseguir, a descer, baixar dos 5’10/km.
Nada de grave. A experiência que acumulei em tanta prova e treino, levou-me a reflectir uma simples evidência: “Se não dá para mais, não forces”, pensei. Lá fui no meu ritmo em direcção a Matosinhos, cumprimentando entusiasticamente todos os que, já em sentido contrário seguiam em direcção à Foz.
Sabia que um ritmo entre os 5’30 e 5’40 seriam suficientes para me manter a “salvo” do balão das 4h, sendo este o objectivo interiorizado, a táctica de ataque à prova. Aprendi que, mesmo tendo no momento outras sensações, a regra de ouro é comer e beber sempre. Sem sede ia bebendo água e comendo 1 gel a cada 40 minutos de prova, que se revelaram fundamentais mais à frente.
Ao km 10, 55 minutos de prova. Houve tempos em que aceleraria feito doido para baixar aquele que era um tempo vergonhoso para uma prova de 10 km, mas como faltavam 30… e 2 (há muita gente que se esquece dos 2, e o que custam…), e como ainda estava à frente do balão das 4, não era grave, era bom. Siga. Viragem em Matosinhos, vamos lá até à Afurada. Porra, lembrei-me da minha primeira prova, que também passara ali e terminou na Praia de Matosinhos e o que tinha sofrido para não andar a passo. Que diferença…
Marginal fora, tempo formidável para correr, nada de vento como no ano anterior, nem chuva, nada a atrapalhar, nem uma desculpa para não atingir o objectivo 2. Era “só” ter juízo e não abusar. A marginal entre a Foz e a Ribeira é belíssima para correr. Fui por lá fora saudando e sendo saudado por público e outros atletas, já na companhia do Renato, dos Porto Runners, que havia feito um Ironman em Outubro, e muito perto do António Nascimento, que se prepara para dobrar a distância e que ia ali em ritmo de treino longo.

A entrada na Ribeira foi um tónico de motivação, com muito público a saudar a passagem dos atletas horas a fio (muitos espanhóis, que são sempre animados e tanto incentivam), o que contrastava com a indiferença que imperava na margem Sul, onde os clientes habituais dos diversos cafés do antigo mercado de Gaia balbuciavam comentários de análise comparativa entre os níveis de preparação e fadiga dos diversos atletas que estendiam a passagem do pelotão por múltiplos “copos de três”. Era ali o “muro”. A ida à Afurada, com retorno ao km 26, era para muitos o flagelo dos km no corpo, ou menos preparado, ou mais fatigado, ou pouco cuidado nos primeiros km.

Em cada viragem via os balões das 3h45 e das 4h à mesma distância, o que revelava coerência no ritmo e esforço. Ao chegar de novo ao Cais de Gaia e ao abastecimento dos 30 km, começo a ver caras conhecidas a fraquejar. A tentação de parar para beber é sempre maior que a força de seguir, temos que a contrariar. Foi o que fiz. Peguei em 2 garrafas de água e segui. Chegada à Ponte Luiz I, subida que parece sempre ter inclinação e distância superiores aos 100 m que tem, e alívio por saber que era “só” acabar, depois de uma pequena incursão à marginal Este, outrora a gigante ida ao Freixo. Alívio e cansaço. Começavam a pesar os km. A entrada no Túnel da Ribeira e aquele paralelo para calcorrear é sempre um momento de superação, temos que meter na cabeça que aquilo não é assim tanto e não caminhar, como muitos já faziam. Siga.

Depois da Igreja de S. Francisco e da chegada ao alcatrão baixei ligeiramente o ritmo. Sentia-me cansado, chegara o momento de apelar mais um pouco à lucidez. Deixei seguir o Renato, que ia mais fresco e abrandei. Fiz um descanso activo até ao abastecimento dos 35 km, na Arrábida, com passagem pela Alfândega e o apoio do Miguel Santos, fundamental, como sempre, não parando e resistindo à tentação de acelerar. Mais 2 garrafas de água, mais um gel, sempre a trote. No Fluvial fiz contas de cabeça. “Rui, falta um trote de recuperação até ao Parque”. Fui passando “caminheiros”, muitos deles tinha visto junto ao balão das 3h30 e das 3h45, nem falava com os conhecidos, tal era o medo de contágio (naquelas alturas, só nos lamentámos, acabando por influenciar quem vai, como eu ia “nos arames”). Mais um pouco de paralelo junto ao Castelo da Foz, a subir ligeiramente, onde quase todos caminhavam e eu parecia sprintar. Nova recta conhecida, a Foz à esquerda e o abastecimento dos 40 ali tão perto. De repente passa por mim um “balão” que dizia “4h00”. Era a Conceição Grare a portadora das más notícias. “Anda Rui”, dizia, “anda que vamos para baixo das 4h00”. “Para baixo das 4?”, perguntei, “és tu o balão e vais muito rápido”. Felizmente o balão “oficial” vinha um pouco mais atrás, a Conceição estava a terminar a prova e esquecera-se de tirar o balão cujo ritmo tinha sido por ela orientado até a um determinado ponto, onde passara a responsabilidade.
Há alturas numa maratona em que parecemos adormecer. Aquele momento do susto que me pregou a Conceição foi o momento de despertar. Pouco depois da placa dos 40 km, mais caras conhecidas. O Professor Ascensão e a Marisa Barros ainda lá estavam, depois de os ter saudado mais de 2 horas antes, à passagem do km 15. A Marisa coloca-se ao meu lado a correr, peço-lhe encarecidamente para não fazer de lebre que me matava. Ela sorri, dá-me os parabéns “por mais uma”, e diz a sorrir “agora é só subires, já acabaste”. Que rico tónico. Olho para a frente e vejo o Castelo do Queijo e a bela da rotunda com que vinha a “sonhar” acordado. Entro na Avenida e de repente vejo um mar imenso de cabeças e corpos a batalhar contra o cansaço.

Senti-me tão bem na Avenida que desatei a acelerar. As cãibras quiseram começar-me a lembrar da quantidade de km, mas eu fiz-lhes um “manguito”. Cerrei os dentes, levantei a cabeça e desatei a sprintar (pensava eu) Avenida fora. Vejo ao longe camisolas do Gaia Running, equipa de amigos que treina ao lado de minha casa, e reconheço uma cabeça coberta por cabelos brancos. Era o Lopes. Vamos lá apanhar o Lopes. Apanhei o Lopes, saúdo-o a ele, ao Luis Duarte que brilhantemente se estreava, e a mais um outro elemento da equipa, e de repente entrámos num “túnel” de gente: Atletas, público e familiares de atletas, que deram um final único, emocionante e que me levaram “ao colo” literalmente até à meta e ao objectivo cumprido. Olho para o relógio ao entrar na Avenida do Parque e vejo 3h58’58. Acabei com o cronómetro oficial nas 3h59’12, o que quer dizer que devo ter batido o meu record dos 200 mt 

Baixei das 4h na maratona da minha cidade, depois de o ter conseguido já em Sevilha, Sevilha, que será seguramente a minha próxima incursão à distância rainha do atletismo.
As maratonas de estrada são para quem gosta de correr, como o balneário para quem gosta de futebol. É aqui que se sente a corrida na sua plenitude. Não há espaço para descanso, abastecimentos prolongados ou outros sossegos. Tudo aqui é intenso, das emoções à gestão do esforço, à velocidade, ao juízo. E tudo se revela fundamental para o sucesso, seja para os que terminam abaixo das 3h, 3h15, 3h30, 3h45, 4h ou que se limitam a chegar. Porque meus amigos, quando chegámos ao muro, que todos queremos adiar, seja aos 30, 32 ou aos 36, a distância que resta varia entre os 30 e os mais de 60 minutos a concluir, e se correr um minuto que seja com um empeno valente é duro…
É por isso que considero todos os que correm uma maratona verdadeiros campeões. Sofre-se muito. Sofre-se o que só nós, os que as corremos compreendemos.
Os que como eu tanto gostam de trail e tão pouco apreciam alcatrão, sabem do que falo. A experiência da maratona é o clímax da corrida de resistência à velocidade. E o ambiente de superação que se vive numa maratona é mesmo único.
Parabéns a todos!
Venha a próxima!
P.S. – Créditos das fotos aos sempre presentes: Lina Branco Batista, Miguel Martins, Paulo Rodrigues e Clinica Médica da Foz. Obrigado!