A vida é um encadeado de momentos. O momento normalmente determina o encadeado seguinte.
Chegados à Horta, depois de um calmo e madrugador voo que nos levou a Lisboa primeiro, começou a diversão de qualquer prova de trail. Um americano – Terry Sentinella - oriundo do Alasca e finisher de provas de renome, como a Badwater, que se revelaria puro, divertido e simpático, presenteava o Mário Leal (Diretor da Prova) com o presente mais adequado a um atleta – uma bela garrafa de whiskey do Kentucky. “Tastes like honey”, diria a Amy nessa tarde, amiga que o acompanhou na sua estreia no continente europeu e na terra do avô, deliciada com o toque doce do mel a abafarem os 40º de álcool, quando nos levaram (a mim e ao Miguel) à sua “suite” (tinha wc privativo, logo…) para um rápido “shot”.
Inevitável nesta ilha é a visita ao Peter Café Sport. Não sei bem a história do dono e fundador, mas será alguém que chegou à Horta, e como qualquer um de nós se apaixonou pela paz e beleza envolventes, e que como tantos outros, por ali ficou. O nome do Bar tem “Sport”, fomos então provar o refresco que, como diria o Terry Sentinella, “it’s a funny drink; Tastes like lemonade”. E sim, tem limão e também algum Gin. O resto da tarde foi passada à procura de um restaurante de peixe, que nos levou à conclusão que são raros, à visita a uma exposição brilhantemente dirigida pelo João Melo - que a par do Mário teve a grande responsabilidade de unir todos os organismos de promoção turística e defesa do ambiente da ilha a trabalhar meses a fio para proporcionar um fim de semana de trail inesquecível-, sobre as espécies (mais que muitos milhares) da imensa diversidade que dá cor e vida à ilha (sabiam que a hortênsia, tão característica da ilha a que chamam azul, pela sua cor, é exógena? Curioso como pode vir de longe o que tanto nos virá a caracterizar). A tarde foi rematada por plantação de árvores numa zona onde até há pouco tempo havia uma lixeira a céu aberto. A ilha está mais verde.
O dia acabou com um repousado e tranquilo jantar entre amigos de longa data e outros recém adquiridos, sendo que os de “longa data” não são de há muitos anos, mas como são do trail assim parecem, como ficam agora estes recém chegados. Somos de uma tribo estranha que se entranha.
No dia seguinte, à hora que tinham marcado comigo e com o Miguel para irmos verificar percursos e marcações (trabalho que o João Meixedo e o Vítor Dias andavam a fazer há já 2 dias), lá estavam à porta da base de todo o evento – Hotel Horta – o Hélder e o João. O Hélder, Vigilante da Natureza, trabalhou durante mais de 7 meses com os agricultores locais, na recuperação de trilhos que haviam sido completamente engolidos pelos movimentos de terras do terramoto mais recente a atingir o Faial, em 1998, e que teve como Freguesia mais afectada a Ribeirinha, de onde partiria no dia seguinte a nossa prova. Rapidamente nos apresentamos, tomamos um café e bebemos as suas explicações sobre o enorme abalo que a ilha sofreu e que tanto destruiu naquele lugar. Muitas das casas permanecem abandonadas e quase em ruínas. A Igreja e o Farol continuam de pé mas com aspecto de edifício em ruína eminente. Cumprimentamos o “Agostinho, agricultor que melhor conhece os caminhos antigos deste lado da ilha”, disse o Hélder, antes de nos levar ao cimo de um monte que escondia um belíssimo trilho “com mais de 60 degraus”, dizia num sotaque ligeiro, – dizem que os Faialenses que são os que “melhor falam português, a par de Coimbra” – e que se revelariam mais numerosos (171, contei). Admirada a paisagem junto ao Farol da Ribeirinha, onde a Ilha perdeu mais de 40 mt de território, engolido pelo mar depois de sacudido pelo abalo sísmico, seguimos cordilheira fora, mergulhados num denso nevoeiro que nos permitia apenas apreciar até pouco mais de 100 mt. Chegados aos mais de 1000 mt de altitude, na caldeira do vulcão, nem 5 mt de visibilidade; teríamos de esperar um dia perfeito, para no dia seguinte podermos desfrutar de uma paisagem magnífica, de onde avistaríamos “o Pico, São Jorge, a Graciosa e lá em baixo a cidade da Horta”, dizia o nosso guia. O João, Geógrafo do Parque, explicava a formação vulcânica da ilha, e dizia-nos que aquele vulcão era o maior e mais recente, excluindo o dos Capelinhos em 1958, estimando a sua última atividade há uns “recentes (!) 8, 9 mil anos. O primeiro terá sido junto à Ribeirinha, onde começou a formação da Ilha, há provavelmente mais de 500 milhões. Curioso que, a ausência de atividade vulcânica e a continuação de atividade sísmica, já levaram, por exemplo, a que ilha de Sta Maria tenha perdido cerca de 10% do seu território. Assim passamos parte do dia, bebendo história e geografia de dois, já podemos dizer, dos amigos que fizemos no Faial. Como eu e o Miguel somos tanto de correr como de comer, questionamos onde seria o melhor lugar para se comer peixe. A resposta veio rapidamente com um convite para uma pescaria com o Hélder, que logo nos esclareceu a falta de restaurantes de peixe; ele é tão abundante, que “basta” ir ao mar pescá-lo. Seria o que faríamos dali a dois dias. Neste dia andávamos na Serra, na ausência de caça, e como a hora de almoço se aproximava, lá fomos os 4 à Maria Evelina (ou Café Rumo), na Praia do Norte. O João e o Hélder começaram a falar de petiscos e nós não nos fizemos rogados. Gostamos tanto daquilo que fomos lá todos os dias, excepto no dia da prova. Nesse mesmo dia, à tarde, trocamos a viagem de barco para observar as baleias, e repetindo a visita, dedicámo-nos a treinar para sermos uma, comendo deliciados a linguiça, os queijos, os torresmos de carne em vinha de alho, a salada de polvo, o inhame, o pão de massa sovada (tão bom) e a batata doce que o Rui e o Leonel nos puseram na mesa. O João Mota, que tinha chegado nesse dia, e a Susana ainda se deliciaram com uma deliciosa sopa de feijão vermelho. Uma barrigada. À noite, depois do briefing da prova e do jantar buffet servido no Hotel, ainda comentávamos os deliciosos petiscos e fazíamos contas ao tempo para voltar à Praia do Norte. Dois dias depois da prova voltei lá, literalmente a correr, depois de fazer meia volta à Ilha, mais de 29 km por estrada, onde abundam os chafariz e escasseia o trânsito automóvel. Vale a pena, como vale a pena uma descida à Fajã e uma subida à Ribeira das Cabras, onde a vista é deslumbrante.
O dia da prova estava “de encomenda”, como se diz quando os astros se alinham e tudo é perfeito. Um dia lindo de sol presenteou-nos tudo o que a ilha tem de beleza para oferecer. Pouco mais de 45 km com subidas lindíssimas e duras, cobertas por denso arvoredo, algum estradão, muito verde, muitas vacas (que mugem de quando em vez, admiradas com tamanho burburinho, habituadas que estão ao sossego), um sem fim de voluntários em todos os cruzamentos e abastecimentos, aplaudindo do primeiro ao último (sim fui quase último) e a população toda simpática, sempre a incentivar. A Susana, deliciada pelas paisagens, andava devagar como se não conhecesse a ilha. Eu, que queria desfrutar ao máximo de toda aquela envolvente, recostava-me sempre que me espantava com o que a vista via. Demorámos mais de 2 horas a percorrer os 6 km da cratera do vulcão. Deitei-me, tirei fotografias, procurei (e encontrei) S. Jorge, o Pico e a Graciosa, até ser envolvido de novo pelo nevoeiro e ficar com aquela sensação de quem quer tirar uma foto ao por do sol, mas demora tanto que ele se põe antes de carregar no botão da máquina. É aquilo que nos leva a todos ao trail. Aquela fantástica vontade de ir mais alto para vermos mais além. A vontade de mergulhar na natureza e sermos parte dela. A vontade e capacidade de sermos parte de um mundo que ali está exatamente como deve estar: Como a natureza quer.
Os açorianos podem estar orgulhosos do que conseguiram fazer neste Mundo de ganância, onde se planeia pouco e se tenta ganhar ao máximo, sem pensar em consequências. Ali nota-se que há planeamento. O urbanismo faz-se onde deve ser feito, habitualmente longe de linhas de água e nunca em levadas, a natureza é conservada e bem tratada, o que faz com que, à semelhança de poucas mais zonas do globo, se conserve uma beleza natural imaculada. A ilha tem habitantes, não foi urbanizada nem desvirtuada a favor do humano.
Foram as 8h58 mais bem passadas em provas de trail até hoje. Num ambiente natural fabuloso, com a companhia da Susana, sempre alegre e paciente a escutar as histórias que eu tinha decorado do dia anterior e desbobinava armado em guia turístico, divertindo-se, mas que pouco se importava com a origem da ilha e que cada vez mais desejava era um ribeiro onde enfiar as pernas. Curiosamente a ilha é muito verde, mas apenas corremos numa levada, não tendo cruzado nenhum ribeiro ou queda de água. O final foi duro, muito duro, com duas subidas agressivas, uma em alcatrão, outra por trilhos desenhados com eficientes degraus, entre fajãs e vulcões. A última subida, por degraus muito desnivelados, com uma agressividade daquelas que nos fazem sentir as pulsações algures entre os olhos e os ouvidos, precedia uma descida igualmente por degraus de paus, onde os músculos “tiravam senha” para darem espasmos. Aqui só me dava vontade de rir, ao ver-me a meio de um monte semelhante a uma montanha russa, onde no lugar dos carris havia escadas artesanalmente desenhadas em ramos de faia (a árvore que abunda na Ilha e lhe deu o nome), subir fazia rufar tambores na cabeça, e os músculos das pernas faziam um movimento semelhante ao das colunas quando o som é muito alto. Todo o corpo se descoordenava com tanta dureza.
A parte final da prova é semelhante a correr na lua, com cerca de 1 km nas cinzas do Vulcão dos Capelinhos, ainda sem vegetação. Ao fundo ouvíamos o speaker a pedir “barulho para o Rui e Susana”; a Susana desata às gargalhadas em sprint divertido a deslizar em direção à meta com uma alegria contagiante. Não sei se por sermos quase os últimos, brindaram-nos com o melhor final que tive até hoje. Eu, que estou habituado a chegar à meta com a festa já terminada, cheguei com uma simpática moldura humana que aplaudia e gritava. Até nisto esta prova se revelou exemplar. Parabéns ao voador Armando Teixeira (extraordinário atleta e de uma humildade fora do comum) e à já esperada vitoriosa Anna Frost. Parabéns à organização que esteve à altura do desafio de fazer do Azores Trail Run uma prova de referência nacional.
Nessa noite houve jantar de gala, com entrega de prémios, discursos e atuação de um grupo de dança de Pedro Miguel (Freguesia vizinha de Ribeirinha). Tudo impecavelmente planeado.
No dia seguinte, vivemos como locais. É assim que se conhece verdadeiramente uma terra, vivendo como eles. Fomos com o Hélder e a Dulce (sua esposa) à pesca. Saímos às 6h30 da manhã, deslumbrados com um magnífico nascer do sol, e às 8h já tínhamos 4 “Peixe Serra”, mais de 20 kg de peixe para um belo repasto em casa do anfitrião que é conhecido por ser exímio pescador e se revelou um extraordinário ser humano. Aturou o nosso barulhento e sequioso grupo até às 11 da noite. Comemos lapas grelhadas, peixe serra, ovas grelhadas, tudo regado com vinho do Pico e rematado (para “desmoer”) com um licor de banana local, que nos afinou as vozes e a disposição.
Guardo na memória muito que não consigo descrever. Não sei que mais terá sido importante para a divulgação desta prova, se a Anna Frost, se o ultra maratonista anónimo até há uma semana, Terry Sentinella, ou algum dos outros famosos e anónimos que lá estiveram, se o facto de se ter conseguido realizar uma prova imaculada, atendendo às limitações da ilha, com a presença de mais de duas centenas de corredores que mais não fazem agora que provocar inveja em todos os que não foram. Por mim tenho-vos a dizer, aos que não foram, que, seja para correr, ou apenas como viagem de lazer, vão aos Açores porque vale a pena. Sabem aquelas ilhas paradisíacas do Pacífico, cheias de natureza no seu estado mais belo? Estão aqui ao lado. Chamam-se Açores. Não vejo a hora de voltar. De preferência para correr, e seguramente para conviver com as suas simpáticas gentes. O Faial é um excelente ponto de entrada num paraíso plantado no meio do Atlântico.
A Ilha do Faial formou-se a partir de um encadeado de erupções vulcânicas, de Este para Oeste, sendo visíveis várias caldeiras a partir da caldeira do vulcão central da Ilha, onde começa o Trilho dos 10 Vulcões. Sim, são mesmo 10. Este fim de semana foi um encadeado de acontecimentos que geraram momentos de plena alegria, satisfação e convívio. Fui feliz em muitos sítios, e fui-o muito no Faial. Obrigado a todos os que me proporcionaram todo os momentos de alegria que produziram tamanha felicidade.
Vivam! Sejam felizes!