Venham comigo num sonho.
Em pleno século XXI, no tempo em que a informação viaja mais rápido que nunca, num mundo em que o homem não vive sem a tecnologia, há lugares de sonho onde nada ocorre para além dos efeitos na envolvente natural, onde tudo é caprichado ao ponto de até a intempérie se transformar num momento perfeito.
Neste sonho começamos com a companhia perfeita. Como em todos os sonhos bons – aos outros chamamos pesadelos –, começamos lentamente a embrenharmo-nos no cenário que idilicamente desejamos. Um nevoeiro intenso, com uma chuva miudinha que se avoluma à medida que subimos para Vale do Rossim, deixando Manteigas lá em baixo. Enquanto serpenteamos a montanha, no meio dos pinheiros, como uma vela cujo pavio soçobra às últimas gotas de cera, as luzes da cidade vão-se esvanecendo. É assim que sinto aquela secessão da civilização para o Mundo que nos atrai no trail, que nos transforma em seres diferentes e nos leva para onde mais gostamos de estar – No ventre da Montanha.
A arte de sonhar é a arte de pensar na realização da felicidade, e é uma arte em que o Armando Teixeira, com toda a equipa que programou este Trail camp, se está a especializar, já que uma grande maioria dos atletas presentes era repetente ou trazido por estes. Eu fui levado por uma estreante, e ainda bem. No próximo seremos repetentes, certamente.
Na força da Serra da Estrela bebemos a felicidade da vida. Na superação, na partilha, no riso fácil, nos estalidos da lenha a queimar nas salamandras sentimos todos os elementos essenciais para o conforto. Nada mais nos faz falta. A simplicidade de um campeão que nos mostra que a resiliência é o motor do ser humano, leva-nos a sonhar com o Tor des Geants e o Valle d’Aosta. Se correr 330 km fosse tão fácil como é gostar do Armando e da forma apaixonada como ele nos transmite os seus pesadelos numa prova de sonho, seríamos todos finishers naquela brutalidade só ao alcance de gigantes. Entre um café e um biscoito, um copo de tinto e uma sopa reconfortante, há sempre mais uma conversa sobre sonhos, desejos, pesadelos passados e noites mal dormidas. E há método, muito método, que isto de sair com 50 pessoas para a montanha mais alta de Portugal continental, onde as condições meteorológicas mudam repentinamente, tem que ser muito bem organizado, para se garantir a segurança de todos. E todos estivemos em segurança.
Já escrevi que o Trail nos dá a possibilidade de sermos crianças, sem que ninguém nos leve a mal. Foi exatamente o que sentimos quando longe de tudo, mergulhados no manto branco do maciço central, desatamos a deslizar como podíamos e conseguíamos, ao som de longas gargalhadas e eloquentes “Yupies”. Acho mesmo que o mais comedido foi o pequeno Guilherme (10 anos), que com o Pai Catarino nos guiava trilho fora. Nem o frio, nem o vento forte que baixava 6 graus a sensação térmica dos termómetros a rondar os 0, nos inibiu de nos divertirmos nos trilhos da Estrela. Perfeito.
Sei que relatos de experiências vividas são sempre mais fidedignos falados do que escritos. Não há forma de vos passar o que se sente numa experiência destas. A única forma é vivê-la. Meetings empresariais em salas de hotéis? Digam nas vossas empresas, nas vossas organizações, que conhecem uns tipos que em dia e meio vos podem mostrar a importância do planeamento, da humildade, do trabalho, da alimentação, do respeito para com o próximo e o meio ambiente, e principalmente da organização que permite aprimorar todas estas premissas, e venham com eles. Sintam-se com capacidade para adequar as fracas forças do homem num gigante como a Serra da Estrela, e conseguir tornear todas as adversidades que ela nos impõe. Sintam-se diferentes. Sintam-se gigantes como nós nos sentimos, correndo pela berma da estrada, quase levados pelo forte vento, mas firmes na alegria de ver a admiração dos milhares de turistas que ocupavam as centenas de carros e autocarros e se espantavam com tanta coragem e determinação.
Este fim-de-semana fomos todos gigantes no gigantesco cenário da bela Serra da Estrela. É o sonho de qualquer menino, ser herói na adversidade. O trail proporciona-nos esse sonho.
Um agradecimento a todos os que partilharam um pouco de si neste Trail Camp. É um deleite correr e conhecer gente a correr. É maravilhoso poder fazê-lo em tão belo cenário, onde se respira um mundo selvagem, onde não há tv ou rede de telemóvel, onde uma saída para jantar implica correr monte abaixo até à aldeia mais alta de Portugal. Onde podemos conversar e partilhar, aprender e descansar. E muito obrigado à Armando Teixeira Outdoor Events, que inclui todos os que o ajudaram na organização e realização deste Snow Trail Camp. Foram inexcedíveis.
No final do sonho, quando nos tocam de leve para nos acordar, são mãos que nos chamam para partir (ao tasco “já ali abaixo”, comer queijo), são despedidas que não passam de um até já. É esta constante de sonhar acordado que nos atrai no trail, de poder ir mais alto e mais longe, onde o mundo está exatamente como vale a pena ser visto, disponível só para nós e com a beleza do intocável. É poder fugir do vulgar que nos torna capazes de mais um km, de mais um esforço, de nos superarmos sempre mais. É isto que se aprende e vive num trail camp.
Trail é sonhar acordado. Superação é viver pesadelos e recordá-los como sonhos, e disto, todos somos capazes.