quinta-feira, julho 18, 2019

Santiago - Finisterra 2019

Já faço "Caminhos" desde 2013.

Quando saí para o primeiro fomos logo avisados pelo mais experiente "Caminheiro" do grupo de que, depois de fazer um "caminho", não há quem não queira voltar.
Esse primeiro, bem como o segundo, foi o Caminho Central Português, caminho mais utilizado por cá, passa por Rates, Barcelos, Ponte de Lima, Valença, Tuy, Pontevedra, Redondela, até "entroncar com todos os que existem, no seu "fim", Santiago de Compostela. Há um ano fiz o Português da Costa, hoje em crescimento dado que utiliza toda a recente estrutura construída à beira mar entre Matosinhos e a Póvoa de Varzim (e que "esvaziou" o original, por Santiago de Custóias), fazendo deste o mais escolhido por quem nos visita com este propósito e que desfruta assim da agradável temperatura das praias do norte. Confesso que foi um dos que mais gostei de fazer, pela envolvente natural - varia entre as bucólicas zonas de campo pouco distantes do mar e os imensos areais minhotos -, e pela pouca afluência na chamada Costa da Morte - a Costa galega, mais de pedra do que de areia. Os momentos de introspecção são muitos, as distâncias percorridas sozinho são também imensas, o que nos faz sentir sempre mais peregrinos que meros caminhantes. Tudo isto sem nunca nos sentirmos fora do "Caminho", cruzando sempre, aqui e ali, peregrinos solitários ou em pequenos grupos. Não se vêem por aqui grupos numerosos de "peregrinação", como vulgarmente se encontram nos mais utilizados.

Em Dezembro de 2014 fui pela primeira vez fazer o Caminho de Santiago a Finisterra. Fomos, eu e a Susana - por sua proposta, fazer o que sobra depois da chegada à (demasiado) urbana Santiago e a sua movimentada e ruidosa Catedral. Surpreendidos pela extraordinária monotonia de verde, aqui e ali rasgado por rios e algumas (poucas) casas, desfrutámos de cada hora daqueles três fantásticos dias de Inverno, e do fim ideal, junto ao mar. Podem ler o relato aqui.

Este ano, num desafio surgido na noite da passada quinta feira, a meio de um churrasco de verão, convenci o Meixedo a fazer o mesmo Caminho. Aliciado pelo facto de não acabar em Santiago, mas sim em Finisterra, e adequado aos 3 dias que tinha disponíveis, aceitou de imediato. No dia seguinte lá fomos, rumo a Compostela. Noite dormida, partimos trilho fora. Não consigo descrever tudo o que por lá fomos vivenciando e experimentando, entre dias de aguaceiros de verão, daqueles de trovoada que deixam no ar o cheiro a terra quente e húmida, outro de sol chato e persistente que nos fez terminar o dia com um mergulho na praia de Muxia, e que precedeu o de clima ideal para quem quer desfrutar sem "derreter" ou tremer de frio um dia de névoa da costa noroeste da península, dos que não dão para ir à praia, mas que também não são de ficar em casa. Não há mais para dizer, seriam incompreensíveis palavras para quem nunca se fez ao "Caminho", e redundâncias para quem já teve o privilégio de os percorrer. Formidável Caminho, manancial de páginas marcadas para a vida.

De todos os que fazemos há sempre histórias para construir uma "tela" na nossa memória, e há sempre palavras, episódios ou pessoas, que nos fazem recordar aqueles dias, que os retratam na perfeição. Neste, como no primeiro, ficou-me na memória uma frase de um rapaz - francês, a julgar pelo sotaque -, 35, não mais de 40 anos, tez morena, cabelo a roçar o louro por baixo do pó que o cobria (ao cabelo e às roupas - escuras, clareadas pela poeira dos dias). Desvendou-nos com alegria no olhar o significado da frase que ilustra uma pequena "loja" (bar?) na rua principal de Finisterra, quase a chegar à cidade velha. "Sabes porque é que o verdadeiro Caminho começa no fim?" (em inglês), num tom moderadamente elevado para fazer notar a pertinência da pergunta; a resposta veio com a mesma rapidez, mas num tom já mais atenuado por já ter cativado a nossa atenção: "porque tens sempre vontade de regressar, como temos sempre vontade de buscar o sol, na vida e na natureza". Não falou mais. O João retomou a marcha com um "vamos ao km 0 e já voltamos", eu segui-o. Não voltamos porque tivemos de apanhar um autocarro, o último que nos dava ainda uma esperança ténue de chegar ao Porto no mesmo dia, necessidade imposta por obrigações profissionais. Podemos calcorrear km, caminhos múltiplos, trajetos sem fim. Nunca se sabe o que começa ou acaba, mesmo que nos pareça o início, o epílogo ou o princípio do fim. O(s) caminho(s) que fazemos são sempre mais do que aquilo que (nos) parecem. O Caminho, como explicava o eloquente "francês"(?), é uma espiral de ida e volta, é um ciclo sem fim, com aparentes pontos extremos.



Fica mais uma excelente experiência, ficam as memórias, ficam as vivências, ficam os laços que sempre se consolidam nestes dias de mochila às costas em que nos parece que viveríamos melhor com muito menos do que achamos precisar. Nada é o que parece ser, e tudo pode ser aquilo que nos parece.



Sigamos (n)o Caminho, vivendo o melhor que pudermos e soubermos.


quinta-feira, julho 04, 2019

11 anos a correr, 10 anos depois, um Balanço

Faz este mês 11 anos que deixei de fumar, e 10 anos que consegui correr mais de 7 km.
Entretanto, mais de 8 dezenas de maratonas e ultras depois, bem mais de 1/4 acima dos 100 km, somadas a muitos km em "passeios" com amigos, cujo epílogo vai invariavelmente dar ao mesmo lugar - uma mesa -, impõe-se um balanço.
Aqui vai a minha retrospectiva destes anos de "atleta".
Comecei a correr para perder peso. É um excelente motivo, comum a tanta gente e dos mais mencionados em estudos, para além do "para fugir à mulher/marido". Diziam-me que bastava o hábito da corrida e nós íamos ganhando vontade de correr mais e mais e "virávamos" atletas. Ao princípio foi mais ou menos assim. Dos mais de 200 metros diários a correr - sempre depois de longas caminhadas -, até chegar aos 7 km sem parar, foi um pulo. Um ano com treinos curtos de velocidade (corrida) e longos de resistência (caminhadas) levaram-me ao maravilhoso mundo do chamado "endurance", ou em português para desportistas, o meio-fundo e fundo. Fundo seria o buraco onde me enfiaria se tivesse descoberto algum no fim das 2h20 gastas a percorrer a minha primeira meia maratona. Porra, aquilo parece um semáforo verde em hora de ponta, tantas eram as máquinas que saiam prego a fundo, apesar de lhes chamarem corridas de resistência. Isso, ou eu era mesmo muito lento. Vi imediatamente que não era para mim. Fiz sangue nas mamas, assei os tintins, apareceram-me bolhas nos pés e fiquei com um moreno à trolha que nem vos digo. Mas não desisti. Corri sempre que pude durante todo o ano seguinte. Fui até a mais uma meia maratona onde consegui, pasme-se, baixar um minuto ao meu PB - e foi aqui que comecei a entender o léxico que usavam nas transmissões televisivas de atletismo. Ainda nesse ano fiz o meu SB aos 10 km e outro PB na Maratona. Um PB de merda, note-se, já que 4h28 para correr 42 km... Enfim. Aqui também não me safei. Apesar de toda a experiência adquirida entre PB's e SB's, voltei a queimar os ditos, a assar o rabo e a acabar com sangue nos mamilos. Foi também aqui que as minhas unhas passaram a ser negras e com a grossura dos cascos de um camelo, características que não mais foram revertidas, até hoje, 10 anos volvidos.
Tinha entrado num mundo de tontos. Íamos a maratonas e voltávamos sem conseguir descer escadas. Fomos a Milão, Sevilha, Lisboa, depois ao Gerês e a Caminha. Demos com uma prova numa terra ao pé de Coimbra com nome de Miranda do Corvo, onde uns tontos diziam ter uma "Maratona de Montanha" e saiu-nos uma longa caminhada, tal era o medo de cair se nos soltássemos das pedras onde nos agarrávamos, ou se não nos aguentássemos de pé nas ravinas que nos punham a subir ou descer. Dessa trouxemos garrafões de vinho, salpicões e chouriços. Na véspera andamos por lá a comer chanfana, coisa a que os nutricionistas não achava piada nenhuma. E foi aqui que todos começamos uma nova carreira neste maravilhoso e enganador mundo dos "atletas": O Maraturismo. Tanto foi o turismo, que até fomos ao Entroncamento! Correr uma outra maratona de monte. Aí voltei às bolhas e comecei o dilema das sapatilhas. Parecíamos todos uns entendidos, que afinal "as Trabuco XIV já não eram tão boas como as XIII", como se andássemos há séculos naquela vida de caminhar pelos montes que já ninguém cruzava. Éramos tão entendidos na poda que até tínhamos no grupo um tipo que tinha um blogue com nutricionista e tudo. Nessa, saímos do Entroncamento e fomos ao João dos Leitões, beber espumante e comer umas sandes. É que depois do garrafão e do paio que nos deram nos Abutres, a malta habituou-se à carne de porco para recuperar do esforço (dizem que é muito enzimática) e não queríamos mudar de recuperador (recovery, em linguagem de atleta). Não mais deixamos de ir comer depois das provas. Mas as provas eram cada vez mais longe, que os montes também o são, e então começamos a programar as refeições antes das ditas. De cabrito a chanfana, de verde tinto a "papa figos" acompanhado de tábuas de queijos e presunto foi um arraial de experiência. Um dos nossos chegou às 100 maratonas nesse ano. Nós chegávamos então às 10, ou 20. Tipos experimentados. Começamos então a aumentar a nossa larga experiência em... Comida.
O Vítor, do blogue, veio com uma ideia tonta de irmos a Santiago. Não a pé, que isso não desgasta para comer, íamos a correr. E fomos, 5 "atletas" e uma santa no apoio - que é como quem diz, na preparação da comida. Comemos como verdadeiros atletas desta coisa que agora se chama "ultra". Sandes de tudo, especialidades variadas e mais alguma coisa, marchava tudo (menos farinha de pau... em sandes). Aqui começamos uma nova capacidade, digna dos experientes: Comer e correr ao mesmo tempo, seguido de paragens para beber umas cervejas. Saímos daquela semana tão experientes, que decidimos fazê-lo com quem quisesse aprender. Daí até juntarmos dois cozinheiros e duas dezenas de comensais numa casa no Gerês foi um saltinho. Entre os dois treinos diários, marchavam 4 refeições bem regadas a tinto. Como este "Campus" foi no Inverno levamos um presunto "pata negra" para acompanhar o vinho e as tertúlias à lareira. Hoje chamam a estes encontros "Trail Camps", nós em 2013 chamavamos-lhes "tertúlias gastronómicas com treinos a acompanhar" - Treinos e Tertúlias nos Trilhos. Os treinos foram engraçados, os trilhos eram giros, mas duravam 5 horas por dia. Das 11 que sobravam depois de dormirmos 8, eram para treinar a capacidade de enfardar. Ninguém fez bolhas nos pés, nem assou o rabo. Descobrimos então que éramos tão bons a comer e beber, que não deixaríamos nunca de ser ultra maratonistas, vulgos enfardadores desportivos.
Nesse ano saltei para mais longas distâncias, que eu não queria por nada voltar à minha forma rechonchuda. Continuei a assar o rabo, mas aqui já passei a usar uns excelentes adesivos nos mamilos, que evito esquecer. Sabem, é que tudo o que assa, arde que se farta no banho. Os pés passaram então à fase de fazerem parte de um balão cheio de água. A bolha ocupa toda a base, furamos aquilo por todos os lados, mas ela aparece sempre insistentemente, como uma visita indesejada de Domingo à tarde quando estamos descansados na sesta. Começam as agulhas e as linhas nos pés. Reparem que, começando uma carreira desportiva uns anos antes, já somos comensais e costureiros.
Ora para longas distâncias tínhamos de fazer treinos mais longos e em montanha. Começamos os passeios domingueiros, com passagem por tascos emblemáticos, ou a terminar em algum repasto farto. Até "treinos" longos com almoço de cabrito e bacalhau assado a meio fizemos, em treinos mais técnicos e específicos para longas distâncias. No advento do que outros vieram a chamar treinos bravos, fizemos treinos na Serra de Valongo, com "Tripas à moda do Porto" e maduro tinto no final, acompanhados ao acordeão. Acabávamos os treinos sempre felizes (ou alegres) e a cantar. No Porto tínhamos um treino semanal de rampas a que chamávamos de "treino das iscas", porque acabavam irremediavelmente na "Cremilde" - um icónico tasco ao fundo das escadas do Barredo, na Ribeira -, de onde saíamos já aos s"s (para aquecer). Éramos uns atletas de endurance. Admirável mundo das ultras.
Fomos somando experiências, umas atrás das outras. Eu deixei de assar o rabo e de ligar às bolhas. Passei a usar uma pomada que um amigo me aconselhou - "de bum bum de néném" -. e as bolhas aparecem em cima de outras, enquanto as unhas parecem camadas de cartolina, também sobrepostas. Vão saindo e caindo, sem nunca terem voltado à cor do início de carreira.
Continuamos todos a correr. Entretanto, uns casaram, outros descasaram, outros lesionaram-se, outros têm agora programas de TV. Tudo resultado das provas, que o endurance não transforma apenas as unhas dos pés. Entre casamentos, meniscos partidos e condropatias mais ou menos crónicas, juntamo-nos sempre mais para comer e beber do que para treinar. Os filhos destes ultras estão a caminho da faculdade ou mesmo já licenciados; os meus tempos de provas não melhoram grande coisa, mas não perdemos esperança em melhorar o nosso longo curriculo de roteiros gastronómico-desportivos. Já sabemos de cor os caminhos (e restaurantes) de provas por todo o país. Somos agora uma espécie de "Clube dos Atletas Mortos" e dos "Unidos ao garfo", sem esquecer a hidratação, que como sabemos é fundamental para um bom desempenho desportivo, pelo que também nos unimos ao copo.
E pronto. Estamos velhos, não somos os prometidos atletas, mas somos saudáveis. Felizmente somos todos perfeitinhos. E os miúdos também, obrigado.
Numa última tentativa, lá convenci alguns a fazerem provas mais longas. Como não percebemos de mais nada para além de comida e bebida, enfiámos um Viagra a um e mandámos o tipo para uma prova de mais de 100 km. E não é que resultou? O rapaz acabou sem violar ninguém. A preocupação maior é que não bebe tanto como devia, ainda desidrata. Pior, como com a idade está a ficar sem equilíbrio, temos medo que volte a cair. Já aconteceu duas vezes, temos que o manter "de pé", firme e hirto - daí o Viagra.
Resumindo: Comecei a correr para perder peso, passei ao Endurance para virar atleta e acabei num grupo de homens maduros que se transformam recorrentemente num grupo de adolescentes divertidos em busca de experiências inesquecíveis e marcantes.

Isn't that awesome?