Vêm em silêncio. Estacionam perto daquela que há-de ser a almejada meta de uma prometida empreitada digna de registo. Serão 52,5 kms de corrida desde a localidade de Baños de Rio Caldo, na vizinha Galiza, pela Via Nova. Sonolentos, despertam sorrisos com o sono dos que vão chegando. É sempre assim. Os que viajam no dia da prova vão-se abrigando, ora da chuva, ora do frio, dentro dos carros, vão limpando os vidros embaciados, na busca de outros que chegarão, também de casa, também arrancados ao conforto da cama num Domingo de madrugada, ou da escola primária ou pavilhão que serviram de casa aos que vieram de véspera. Nunca fui. Vou quase sempre no dia. A designação do espaço destinado ao alojamento de quem não prescinde de mais uma ou duas horas de sono, “solo duro”, provoca-me dores nas costas por antecipação. Nada que um colchão não resolva, mas…
Em burburinho controlado, caminham apressadamente pela arvorada rua que ladeia as famosas Termas de Caldelas em direcção aos autocarros que os hão-de levar à partida.
Já em elevada agitação, num quase estado de manifestação espontânea de um grupo de miúdos de escola prestes a estrear um brinquedo, aglomeram-se junto a um estranho tanque de água quente ali sito, onde meia dúzia de anónimos se espantavam com tamanha algazarra na normalmente pacata terra. Espantados, mas sem saírem do certamente aconchegante conforto de águas quentes em tempo chuvoso e fresco. Ninguém cedeu à tentação de ali ficar, literalmente, a banhos.
Depois de salvas a César, cuja figura discursou, mas que eu, sinceramente não ouvi, foi dada a ordem de partida.
E dali até ao final foram 5 dezenas de quilómetros a apreciar a beleza do Gerês, na sua vertente mais selvagem. Um percurso belíssimo, com imagens formidáveis que nos fazem ter vontade de voltar. Nem a chuva, fria, nos impediu de desfrutar de todo aquele quadro esplendoroso, desta abençoada terra outrora conservada e cruzada por romanos.
O final da prova é surpreendentemente uma original caminhada pelo Rio Homem, ontem com muita água e caudal devido à chuva, mas onde os músculos relaxam com o choque térmico provocado. No mínimo original. Na minha opinião, genial.
Prova aconselhada a quem gosta de natureza, e quer tentar a estreia numa ultra-maratona de trail. É propícia à corrida, visto as dificuldades técnicas do percurso não serem elevadas, devendo contudo, os menos experientes, refrear a tendência de corrida muito rápida devido à distância. 52 kms custam sempre.
No fim do dia, um sobe e desce de gente mais ou menos vagarosa, normalmente suja de lama, com ar fatigado e sorriso rasgado. Todos se cruzam e se cumprimentam. Mais dois ou três ou mesmo meia-dúzia de amigos que se conheceram no meio de uma serra, enquanto comiam um pedaço de banana e diziam umas palavras de ocasião aos voluntários dos imensos postos de abastecimento. Uns a mancar, outros como se nada fosse, quase todos os estreantes sem largar a medalha que lhes há-de perpetuar aquela sensação feliz e realizada de ser Ultra-Maratonista. Com um espírito que não se explica, não se percebe enquanto não se prova, mas que nos fica no sangue, na mente e no corpo, na exacta medida que nos vão saindo da pele todas as horas de esforço e sofrimento. Um espírito forte, que nos acolhe, que nos suga para dentro de uma família que sabemos que nos vai apoiar no próximo desafio, no próximo empeno, na próxima prova louca onde nos vamos inscrever. Porque depois de uma prova, depois do sofrimento, depois do empeno e enquanto colocam gelo nas mazelas, fazem pesquisas e inscrevem-se em mais uma aventura, em mais uma reunião de gente saudavelmente insana.
É isto o Trail Running.