Muitos dos que começam a ler esta crónica não fazem ideia do que é correr 42 km. Muitos, como eu, não percebem como é possível alguém o fazer em pouco mais de 2 horas. Todos nos espantámos com os resultados, as proezas, as limitações e superações de todos.
Ontem, segundo a organização, foram mais de 5000 os participantes em mais uma edição da Maratona da Cidade Invicta, divididos entre a prova rainha, a Fun Race de 15 km e uma caminhada de 6 km.
A azáfama que se vive à partida destas provas é sempre muita. Os que se estreiam não escondem o nervoso miudinho, a ansiedade de começar e a vontade de acabar, os repetentes, muitos veteranos incentivam os apadrinhados, e os que vão correr a distância mais curta prometem entre dentes alinhar na maratona do ano seguinte.
Dado o tiro de partida, lança-se a confusão. Uns que tentam chegar aos balões (levados por atletas experientes que marcam ritmos para tempos finais entre as 3 e as 4h, com separação de 15 minutos cada) que desejam acompanhar, outros que levam ritmos mais altos, por participarem na prova mais curta ou apenas porque sim.
Eu, que começava ali mais uma participação na minha cidade, a terceira, onde me estreara 2 anos antes, e que sabia o que me esperava, deixei-me ir com ritmo de aquecimento. Sem grandes veleidades a fazer um tempo excepcional, não só por ter feito 20 dias antes uma prova extremamente exigente, de 46 km em montanha, mas também porque o dia se apresentou com vento forte de leste, o que em nada ajudava a fazer bons tempos. Íamos todos sofrer e muito quando chegássemos à marginal. Mas ninguém sofre por antecipação, há que aproveitar o ambiente, a festa da corrida, a alegria contagiante de muitos dos anónimos que enchem as ruas nestas provas. Lá fui eu rumo a Matosinhos, uma excelente novidade no percurso da prova, que faz com que a ida ao Freixo, 7 km que eram penosos para quase todos, seja abolida. Esta novidade tem várias vantagens, além da referida, na minha modesta opinião. Uma delas é a de “colocar” entre os km 22 e 32 a zona de maior concentração de público, entre a Alfândega e a Afurada e respectivo retorno. Depois de passarem a 1/2 maratona, os atletas começam o percurso mais belo, por entre uma pequena multidão, com muitos estrangeiros que não se cansam de apoiar, e com imensos familiares e amigos que ali montam base de incentivos, que entra na zona pedonal da Ribeira e cruza a Ponte D. Luís rumo à margem sul, de onde se aprecia toda a beleza da cascata sanjoanina. Eu não me canso de a apreciar, mas ali, com a viragem a oeste, e com o vento pelas costas, podia finalmente aproveitar a força com que soprava e tentar manter um ritmo que não me fizesse baquear. Passagem ao km 25 com um speaker a incentivar os atletas, incansável, rumo à viragem na Afurada ao km 27. Nesta zona da marginal de Gaia, e graças às alterações no percurso, cruzam-se a grande maioria dos atletas de pelotão, podendo haver uma saudável troca de injeções de moral. O km 30, habitual “Monstro Adamastor” dos maratonistas, situa-se na entrada da Ribeira de Gaia, junto ao Cais, onde há a maior afluência de gente, ainda por cima ao Domingo, cujo espaço está normalmente ocupado por uma pequena feira de artesanato, fazendo com que sejam poucos os que soçobram à inevitável fadiga acumulada. Nova rampa para a ponte, uma pequena viragem a Este, com pouco mais de 1 km e entrada no túnel da Ribeira. O piso em paralelo, a repentina escuridão ou apenas o cansaço, fizeram-me parar. Km 32, o meu muro. Já todos temos técnicas de o contrariar. Peguei num gel, comi-o, bebi uma pequena garrafa de água enquanto fazia o percurso do túnel a passo, saio da escuridão, volto a colocar os óculos de sol e “siga, que para a frente é que é caminho”, disse para mim mesmo. Depois daquele km a 6’30, não mais baixei dos 5’45 até ao km 35. Ali, no abastecimento, peguei num copo de isotónico e em duas garrafas de água e segui a passo. Poucos metros à frente, ainda estava a beber a água, aparece-me o João Mota Freitas, da minha equipa, com o habitual “vamos lá Rui, anda connosco, vamos a 6’, devagar, anda”, fui. Pouco depois foi ele que teve de ficar com mais 3 colegas de equipa. A maratona é uma prova de superação, camaradagem, para a qual é necessário muito treino, mas é principalmente um desafio mental. O corpo fala, a mente contraria ou acompanha. Este ano, ao contrário do ano passado, só tive de lutar contra a fraqueza do corpo, não tive cãibras, ao contrário do João, nem nenhuma lesão que me forçasse a parar. Correr “em casa” tem as suas vantagens, há sempre alguém que nos incentiva, aparece sempre algum conhecido, ou então alguém que desconhecemos e que ali se transforma num apoio tão inesperado como precioso.
Até ao km 38, junto ao Passeio Alegre foi uma luta com o cansaço, dali para a frente foi a mente a comandar. Av. Brasil e os seus intermináveis 2 km, a viragem para a Avenida da Boavista e que boa vista aquela do pórtico laranja que assinala os 42 km. Aqui, já com a companhia da Célia Nuno, da equipa da Filipa Vicente, que se estreou finalmente, depois da desistência por lesão o ano passado. A Célia, que começou a prova comigo, com quem eu troquei algumas palavras aos 40 minutos de prova e com quem tive o privilégio de terminar, e que eu não vira durante mais de 3 horas, tinha-me dado uma outra dica que muitas vezes descurámos: A alimentação. “De 40 em 40 minutos”, disse-me. Foi o que fiz e resultou. Muitas vezes, fraquejámos por falta de alimentação sem o sabermos. Para quem corre mais de 3 horas é fundamental começar a ingerir alimentos antes de ter fome, muito antes. Tenho que lhe agradecer o alerta e a felicitar, bem como à Filipa Vicente pelas excelentes estreias.
Acabei com 4h03 de tempo oficial, menos 3 minutos que o ano passado, em condições menos vantajosas para as minhas características de baixar das 4 horas. O vento forte de leste que se fez sentir na maioria dos kms da parte inicial da prova e principalmente em toda a marginal do Rio, é dos principais handicaps para alguém da minha estrutura, alto e pesado. Fiquei feliz por ter terminado mais uma maratona, por ter acabado com saúde suficiente para correr um pouco mais e com vontade de estar à partida em muitas mais edições da maratona da minha cidade.
A organização esteve à altura dos pergaminhos, sem falhas nos apoios necessários, com excelentes speakers instalados nos pontos mais críticos, e com uma excelente escolha de percurso. Os muitos músicos (?) espalhados ao longo do percurso bem se esforçaram, mas pareceram-me nitidamente desfasados de uma qualquer play-list para a maratona. Entre grupos de música brasileira e outros de covers havia uma heterogeneidade estranha que não encaixava.
O ponto negativo constatei-o depois de finalizada a prova, já depois do brinde com o João Meixedo que me esperou com um copo de cerveja, quando descobri o saco com os meus pertences no meio de um passeio no chão. Os sacos dos atletas estavam em duas tendas, assinaladas como sendo da Maratona ou da Fun Race, todos amontoados, sem supervisão os da Fun Race, e muitos espalhados fora das ditas tendas. Surreal. Para quem está habituado a organizações tão cuidadas, não pode descurar um dos pontos mais importantes de uma corrida destas. O acesso aos sacos devia estar vedado ao público, ao contrário de ser colocado fora da zona de meta. Parece-me menos importante o bacalhau para os Vip’s do que a segurança dos pertences daqueles que confiam na organização para os guardar enquanto correm uma prova que pagaram com esse serviço incluído. Um erro a corrigir.
Foi mais uma Maratona a somar às 11 já concluídas, 6ª de estrada.
Quero agradecer a todos os que me apoiaram durante a prova, enaltecer todos os que a completaram, especialmente os estreantes, que merecem sempre a nossa admiração. Porque, como dizia no início desta prosa, 42 km é uma distância avassaladora para percorrer. É uma violência para o corpo, mas um excelente tónico para a mente. Dificilmente um maratonista verga perante um desafio. O ser capaz de contrariar todas as dificuldades, de superar todas as fraquezas, faz-nos a todos querer chorar de alegria depois de cruzar a meta. Como na vida, na corrida vencem os fortes. E aqueles que vencem as suas fraquezas, são os principais vencedores destas provas. Imaginem o que será mais difícil: Fazer 42 km em pouco mais de 2 horas ou os mesmos 42 km em quase 6 horas, só com uma ambulância como companheira e com todas as probabilidades contra o facto de poder terminar? Nenhuma é fácil e todos nos sentimos enormes quando conseguimos cruzar a linha de chegada.
"A dor é passageira, mas a glória de se alcançar um objetivo é eterna"