segunda-feira, outubro 29, 2012

9ª Maratona do Porto

Muitos dos que começam a ler esta crónica não fazem ideia do que é correr 42 km. Muitos, como eu, não percebem como é possível alguém o fazer em pouco mais de 2 horas. Todos nos espantámos com os resultados, as proezas, as limitações e superações de todos.

Ontem, segundo a organização, foram mais de 5000 os participantes em mais uma edição da Maratona da Cidade Invicta, divididos entre a prova rainha, a Fun Race de 15 km e uma caminhada de 6 km.

A azáfama que se vive à partida destas provas é sempre muita. Os que se estreiam não escondem o nervoso miudinho, a ansiedade de começar e a vontade de acabar, os repetentes, muitos veteranos incentivam os apadrinhados, e os que vão correr a distância mais curta prometem entre dentes alinhar na maratona do ano seguinte. 

Dado o tiro de partida, lança-se a confusão. Uns que tentam chegar aos balões (levados por atletas experientes que marcam ritmos para tempos finais entre as 3 e as 4h, com separação de 15 minutos cada) que desejam acompanhar, outros que levam ritmos mais altos, por participarem na prova mais curta ou apenas porque sim.
Eu, que começava ali mais uma participação na minha cidade, a terceira, onde me estreara 2 anos antes, e que sabia o que me esperava, deixei-me ir com ritmo de aquecimento. Sem grandes veleidades a fazer um tempo excepcional, não só por ter feito 20 dias antes uma prova extremamente exigente, de 46 km em montanha, mas também porque o dia se apresentou com vento forte de leste, o que em nada ajudava a fazer bons tempos. Íamos todos sofrer e muito quando chegássemos à marginal. Mas ninguém sofre por antecipação, há que aproveitar o ambiente, a festa da corrida, a alegria contagiante de muitos dos anónimos que enchem as ruas nestas provas. Lá fui eu rumo a Matosinhos, uma excelente novidade no percurso da prova, que faz com que a ida ao Freixo, 7 km que eram penosos para quase todos, seja abolida. Esta novidade tem várias vantagens, além da referida, na minha modesta opinião. Uma delas é a de “colocar” entre os km 22 e 32 a zona de maior concentração de público, entre a Alfândega e a Afurada e respectivo retorno. Depois de passarem a 1/2 maratona, os atletas começam o percurso mais belo, por entre uma pequena multidão, com muitos estrangeiros que não se cansam de apoiar, e com imensos familiares e amigos que ali montam base de incentivos, que entra na zona pedonal da Ribeira e cruza a Ponte D. Luís rumo à margem sul, de onde se aprecia toda a beleza da cascata sanjoanina. Eu não me canso de a apreciar, mas ali, com a viragem a oeste, e com o vento pelas costas, podia finalmente aproveitar a força com que soprava e tentar manter um ritmo que não me fizesse baquear. Passagem ao km 25 com um speaker a incentivar os atletas, incansável, rumo à viragem na Afurada ao km 27. Nesta zona da marginal de Gaia, e graças às alterações no percurso, cruzam-se a grande maioria dos atletas de pelotão, podendo haver uma saudável troca de injeções de moral. O km 30, habitual “Monstro Adamastor” dos maratonistas, situa-se na entrada da Ribeira de Gaia, junto ao Cais, onde há a maior afluência de gente, ainda por cima ao Domingo, cujo espaço está normalmente ocupado por uma pequena feira de artesanato, fazendo com que sejam poucos os que soçobram à inevitável fadiga acumulada. Nova rampa para a ponte, uma pequena viragem a Este, com pouco mais de 1 km e entrada no túnel da Ribeira. O piso em paralelo, a repentina escuridão ou apenas o cansaço, fizeram-me parar. Km 32, o meu muro. Já todos temos técnicas de o contrariar. Peguei num gel, comi-o, bebi uma pequena garrafa de água enquanto fazia o percurso do túnel a passo, saio da escuridão, volto a colocar os óculos de sol e “siga, que para a frente é que é caminho”, disse para mim mesmo. Depois daquele km a 6’30, não mais baixei dos 5’45 até ao km 35. Ali, no abastecimento, peguei num copo de isotónico e em duas garrafas de água e segui a passo. Poucos metros à frente, ainda estava a beber a água, aparece-me o João Mota Freitas, da minha equipa, com  o habitual “vamos lá Rui, anda connosco, vamos a 6’, devagar, anda”, fui. Pouco depois foi ele que teve de ficar com mais 3 colegas de equipa. A maratona é uma prova de superação, camaradagem, para a qual é necessário muito treino, mas é principalmente um desafio mental. O corpo fala, a mente contraria ou acompanha. Este ano, ao contrário do ano passado, só tive de lutar contra a fraqueza do corpo, não tive cãibras, ao contrário do João, nem nenhuma lesão que me forçasse a parar. Correr “em casa” tem as suas vantagens, há sempre alguém que nos incentiva, aparece sempre algum conhecido, ou então alguém que desconhecemos e que ali se transforma num apoio tão inesperado como precioso.
Até ao km 38, junto ao Passeio Alegre foi uma luta com o cansaço, dali para a frente foi a mente a comandar. Av. Brasil e os seus intermináveis 2 km, a viragem para a Avenida da Boavista e que boa vista aquela do pórtico laranja que assinala os 42 km. Aqui, já com a companhia da Célia Nuno, da equipa da Filipa Vicente, que se estreou finalmente, depois da desistência por lesão o ano passado. A Célia, que começou a prova comigo, com quem eu troquei algumas palavras aos 40 minutos de prova e com quem tive o privilégio de terminar, e que eu não vira durante mais de 3 horas, tinha-me dado uma outra dica que muitas vezes descurámos: A alimentação. “De 40 em 40 minutos”, disse-me. Foi o que fiz e resultou. Muitas vezes, fraquejámos por falta de alimentação sem o sabermos. Para quem corre mais de 3 horas é fundamental começar a ingerir alimentos antes de ter fome, muito antes. Tenho que lhe agradecer o alerta e a felicitar, bem como à Filipa Vicente pelas excelentes estreias.
Acabei com 4h03 de tempo oficial, menos 3 minutos que o ano passado, em condições menos vantajosas para as minhas características de baixar das 4 horas. O vento forte de leste que se fez sentir na maioria dos kms da parte inicial da prova e principalmente em toda a marginal do Rio, é dos principais handicaps para alguém da minha estrutura, alto e pesado. Fiquei feliz por ter terminado mais uma maratona, por ter acabado com saúde suficiente para correr um pouco mais e com vontade de estar à partida em muitas mais edições da maratona da minha cidade.

A organização esteve à altura dos pergaminhos, sem falhas nos apoios necessários, com excelentes speakers instalados nos pontos mais críticos, e com uma excelente escolha de percurso. Os muitos músicos (?) espalhados ao longo do percurso bem se esforçaram, mas pareceram-me nitidamente desfasados de uma qualquer play-list para a maratona. Entre grupos de música brasileira e outros de covers havia uma heterogeneidade estranha que não encaixava. 
O ponto negativo constatei-o depois de finalizada a prova, já depois do brinde com o João Meixedo que me esperou com um copo de cerveja, quando descobri o saco com os meus pertences no meio de um passeio no chão. Os sacos dos atletas estavam em duas tendas, assinaladas como sendo da Maratona ou da Fun Race, todos amontoados, sem supervisão os da Fun Race, e muitos espalhados fora das ditas tendas. Surreal. Para quem está habituado a organizações tão cuidadas, não pode descurar um dos pontos mais importantes de uma corrida destas. O acesso aos sacos devia estar vedado ao público, ao contrário de ser colocado fora da zona de meta. Parece-me menos importante o bacalhau para os Vip’s do que a segurança dos pertences daqueles que confiam na organização para os guardar enquanto correm uma prova que pagaram com esse serviço incluído. Um erro a corrigir.

Foi mais uma Maratona a somar às 11 já concluídas, 6ª de estrada.

Quero agradecer a todos os que me apoiaram durante a prova, enaltecer todos os que a completaram, especialmente os estreantes, que merecem sempre a nossa admiração. Porque, como dizia no início desta prosa, 42 km é uma distância avassaladora para percorrer. É uma violência para o corpo, mas um excelente tónico para a mente. Dificilmente um maratonista verga perante um desafio. O ser capaz de contrariar todas as dificuldades, de superar todas as fraquezas, faz-nos a todos querer chorar de alegria depois de cruzar a meta. Como na vida, na corrida vencem os fortes. E aqueles que vencem as suas fraquezas, são os principais vencedores destas provas. Imaginem o que será mais difícil: Fazer 42 km em pouco mais de 2 horas ou os mesmos 42 km em quase 6 horas, só com uma ambulância como companheira e com todas as probabilidades contra o facto de poder terminar? Nenhuma é fácil e todos nos sentimos enormes quando conseguimos cruzar a linha de chegada.

"A dor é passageira, mas a glória de se alcançar um objetivo é eterna" 

terça-feira, outubro 16, 2012

A história de 50 kgs

 

Este texto foi prometido a uma amiga ainda em Agosto. Pedia-me que descrevesse as minhas motivações, o que me tinha levado à perca de peso que iniciei mais a sério há quatro anos, e quais as mudanças mais significativas nas minhas rotinas diárias. Engloba tudo isso.

Tendo por recorde 36 rissóis (de carne) numa só refeição aos 12 anos, quando estava de dieta por suspeita de apendicite (as desculpas que eu arranjava para ir para a enfermaria do seminário no Inverno…(Sim, eu andei num seminário)), alguns 30 Bollycaos (aquecidos com manteiga), depois de desafiado por alguns amigos numa noite de copos, aos 19/20, altura em que, quando os outros iam aos panados à Mobil (bomba de gasolina de uma marca já extinta, que ainda existe na Avenida dos Combatentes, ali para os lados das Antas) eu comia um, muitas vezes dois Dan Cakes de chocolate (sim daqueles de 400g), era certo e sabido que havia de chegar a obeso. Não foi logo, mas aos 25 anos, quando deixei de jogar futebol de 11 e passei exclusivamente ao Futsal, e que coincidiu com o fim dos treinos de ginásio, rapidamente os meus maus hábitos alimentares me levaram a aumentar de peso.

gordofutsal

(Futsal, esse desporto de sofá)

Foram em média 5 kg por ano. Parece pouco, mas em 10 anos, levou-me à estupidez de não poder baixar-me para apertar os cordões. Nunca me senti infeliz. Sou de riso e piada fácil, tenho por hábito andar bem disposto, a minha profissão implica contactos permanentes com muitas pessoas, em muitos lugares do País e de outros países, o que proporcionava sempre repastos fartos e completos, onde se ultimavam negócios ou se reconfortavam parcerias.
Um dia fui comprar um fato. Era grande. Mas os fatos são sempre grandes, nada de alarmante. Comprei umas calças. 60. Fui-me pesar e vejo 137 kg. Assustei-me.

Godo

(Sim, sou o da direita)

Assim, dificilmente não teria complicações de saúde em breve. A juntar a tudo isto era fumador. Tinha no tabaco um amigo, um companheiro de viagens, um reconfortante escape para o frio, para o calor, para a cerveja geladinha, para o copo de vinho, para tudo. Comecei então uma nova tentativa de dieta. Já tinha tentado algumas. Tinha havido uma altura em que ia para a piscina diariamente. Durante uns meses dediquei-me à natação. Fazia 60 piscinas de 25 mt na especialidade bruços. Emagreci, mas pouco. Veio a Primavera, a piscina era muito quente, um ambiente fechado, preferia o mar. Mas o mar era frio. Deixei e esqueci. Continuava o futsal. E voltei ao volume normal. 
Um dia, vendo uma amiga emagrecer, perguntei-lhe o que fazia. Apresentou-me uma marca de batidos substitutos de refeição. Durante um ano fiz religiosamente a substituição do jantar por um batido. Perdi 8 kg. Ao fim de um ano deixei de fumar. Foi há 4 anos. Com medo de recuperar o peso perdido comecei a correr. Comprei equipamento adequado, e todos os dias corria 4 km, normalmente de madrugada, às vezes a altas horas da noite, sempre de maneira que não me vissem. Admiro as pessoas gordinhas que correm desavergonhadamente. Mas parecia-me melhor ter de correr tão lentamente com poucas testemunhas. 
A corrida levou-me às escolhas acertadas dos alimentos. É inevitável. Quando começamos a correr, consultámos sites de corrida, compramos revistas, equipamento, chegámos a trocar impressões anonimamente em sites de corrida, e depois, inscreve-mo-nos em provas. Foi o que eu fiz um dia. Numa prova de 7 km. Fui, fiz a prova, fui desafiado por um amigo a fazer uma 1/2 maratona e treinei para ela. Achei-me um atleta depois de a concluir (ainda com mais de 115 kgs. Um ano depois fazia a minha primeira maratona, aí já a rondar os 100. Peso neste momento 85 kg, e já completei 5 maratonas de estrada e 6 ultras de montanha. 
Desde o início deste ano que ando entre os 83 e os 87. Peso o mesmo que há 20 anos, mas com muito mais qualidade de vida. As loucuras à mesa moderei-as, o tabaco deixei-o definitivamente e o exercício físico tornou-se num saudável vício e num escape ao bulício do dia-a-dia. As minhas escolhas alimentares são as que me permitem ter mais saciedade, embora fure muitas vezes a dieta exemplar do atleta. E não sou caso único. Saber o que comer é fundamental, comer aquilo que nos dá prazer também. Só não o faço todos os dias, ou todas as semanas. Mas não abdico de uma francesinha de vez em quando, ou do bolo de bolacha da minha mãe (com creme de manteiga, perfeito), ou mesmo de um repasto típico português em ocasiões especiais. Evito os excessos mas não excluo alimentos. Os erros não passam de prémios. É tudo uma questão de equilíbrio.

A vida é equilíbrio. Eu encontrei o meu. E se eu, com um histórico tão “pesado” consegui, só não consegue quem não tentar e não quiser insistir. São muitos os momentos em que queremos desistir, as tentações são muitas, há sempre desculpas para não fazermos aquilo que sabemos ser o mais acertado. O fatídico “é só desta vez” é o erro mais comum e usual de quem quer e precisa de perder peso. Durante muito tempo evitei excessos e alimentos que eu sabai me iam atrasar o equilíbrio que me levaria ao peso minimamente aceitável para poder almejar o sonho de correr uma maratona. Durante o período de treinos menos intensos tenho o cuidado de compensar com muita atenção ao que como, fazendo uma contabilidade dos erros ao pormenor de não excederem as escolhas acertadas. Uma boa forma de os evitar é, quando os estamos quase a cometer, comer uma peça da fruta que mais gostamos, ou um punhado de frutos secos. Normalmente, a vontade de comer um doce é apenas uma indução do cérebro a mostrar-nos o caminho mais curto para acalmar a “fome”, o açúcar. Aprendendo a contornar este impulso, facilmente se perde algum peso. O resto é disciplina e exercício físico. O nosso corpo está tão bem feito, que sempre que o fazemos ficámos com um sorriso rasgado, por mais que soframos. A vida de hoje em dia é tão sedentária que é fundamental o exercício. O resto é a motivação de todos os que reparam na nossa perda de peso e nos vão dando injecções de motivação para não voltar atrás. Sempre com metas alcançáveis, sem desesperar e de preferência com acompanhamento por um profissional. E idealmente devemos publicitar a nossa luta, para sermos ajudados e incentivados pelos que nos rodeiam. Vamos ter tentações toda a vida e a principal é aquela altura em que achámos que já não voltámos atrás. Conheço imensos casos, espero não ser um. E desejo o mesmo a quem, como eu, se decidir a travar uma luta contra o peso.
Estarei sempre aqui para ajudar no que puder.

Obidos

(Foto Ultra Trail Nocturno Lagoa de Óbidos, Agosto 2012, 50 Km)

Daqui a umas horas chego aos 40 anos. Não podia ter escolhido melhor prenda. Saúde, vontade de continuar esta luta permanente e acima de tudo, gozar esta capacidade de me surpreender todos os dias, de poder suplantar sempre mais um obstáculo, de, como na corrida em que, quando estamos cansados nos limitamos a colocar um pé em frente ao outro, poder viver um dia de cada vez, sem a sensação de eternidade, mas com a consciência do fútil e do acessório em contraponto ao mais importante: Viver. E um obeso não vive, desespera por poder usufruir da vida que está para lá da comida. É um escravo da comida.

Obrigado a todos vós que me ajudam permanentemente neste caminho. Todos são determinantes e importantes para mim. Em todos encontro motivação para me suplantar. Em todas as vitórias, por pequenas que vos pareçam, e que sempre mas fazem sentir grandes, é um enorme passo na estabilidade desta forma de vida que desejo nunca abandonar. Não há dia que não recorde o meu eu que ficou para trás. Este de hoje é mais feliz, também graças a todos vós.

Obrigado!

quarta-feira, outubro 10, 2012

Grande Trail Serra D'Arga

5h30 da manhã. Acordo sobressaltado pela eminente explosão de todos os músculos das pernas. Enfio-me na banheira, encho-a de água fria, e acrescento todo o gelo existente no exíguo congelador do frigorifico.
Mas que raio! Devo ser caso grave de patologia clinica, eventualmente de índole psiquiátrica. Quem é que no seu perfeito juízo, depois de 14 dias ocupados a recuperar de um entorse no pé, salta de pedra em pedra, por rios e montes, durante mais de 10 horas? Só um louco, ou alguém em forte aceleração para um estado de insanidade mental completa.
As pernas teimavam em borbulhar, num efeito conhecido por todos os que já atingiram um dia o limite de resistência muscular, ou o lactato, ou outra coisa qualquer. Cenas técnicas que a mim não me assistem. A mim só me calha a parte de tentar tornear o mau estar que causa.
Revivo por momentos as emoções singulares de mais uma aventura de montanha. Esta tinha sido mal preparada, devido à lesão de última hora, mas ansiada pela abrupta interrupção do ano anterior, aos 21 km por o estado do tempo não permitir a progressão em segurança de todos os atletas. A julgar pelo que vi este ano, foi muito sensata e acertada tal decisão.
Fui para a prova na esperança (vã) de a acabar. Sabia que 14 dias com apenas uma corrida de pouco mais de 10 k era muito pouco para poder apanhar com tanta montanha. Mas arrisquei. Ia tentar compensar a falta de treino com a determinação.
Parti com calma. Fiz os primeiros 15 kms num ritmo agradável. A primeira subida é dura, mas faz-se bem, e o resto do carrossel também se passa em ritmo agradável. A partir daqui a zona que eu mais temia, o rio. Este troço mais técnico, devido à instabilidade do pé, e o medo de reincidir na lesão, fizeram-me atrasar bastante, mas nada que não esperasse. Entre escorregadelas e tombos na lama lá passei o Pincho e as suas fantásticas quedas de água. Chegado a S. Lourenço da Montaria, onde estava a meta da prova mais curta e um abastecimento, primeira avaliação do estado do esqueleto e ponderação "desisto, não desisto...?", optei por seguir. O Manuel Veloso e o Rui Cunha, colegas do Porto Runners, estavam parados uns 500 mts acima do abastecimento e ponderavam o mesmo. Um com cãibras outro com um traumatismo na anca por queda, sentiam-se inferiorizados e com poucas condições para prosseguir. Sentamo-nos os 3, dei um Voltaren Rapid ao Rui e convenci-os a seguirmos juntos. Conhecia a subida, sabia-a dura, mas mais pela distância. Podíamos apoiar-nos mutuamente. Lá fomos. Já aos 25 kms, junto às eólicas, avistamos o "vassoura" (o Telmo Veloso assegurou a tarefa na segunda metade) junto com a Analice. Estávamos em nítida perda, mas com ânimo redobrado. Vinha aí uma descida. Ao chegar ao km 26 deparo-me com mais de uma dezena de corredores, animei-me, pensei que afinal não estava muito lento, havia um grupo grande. Puro engano, era um cruzamento com os 34 kms onde já vinham os que já tinham descido ao Cerquido e voltado a subir à Sra. do Minho. "Subida duríssima Rui", diziam-me o Carlos Madureira e a Flor que de lá vinham. Um elemento da organização que ali estava, animou-nos e aconselhou-nos a abastecer bem e apreciar a dureza e beleza daqueles 8 kms que se seguiam. A descida para o Cerquido foi rápida. Esquecera-me de cortar as unhas (que preciosismo) que agora ia arrancando enquanto recordava todos os pormenores da prova. Deitado na banheira, com os pés ainda massacrados lembro aquela descida e a vontade de as arrancar em plena prova. Chego ao abastecimento dos 29 kms, sento-me a uma sombra e, enquanto comia a sande de presunto que levava na mochila, pensava se ia ter pernas para subir novamente tudo aquilo. Ponderei seriamente mais uma vez desistir. 10 minutos depois chegam os meus companheiros de subida. Pouco depois o Telmo e a Analice e mais um atleta. Éramos os últimos. Saímos juntos. Na subida do Cerquido, onde o Carlos Sá faz séries, a Analice ultrapassa-me. Olho para baixo e vejo os outros 3 mais o Telmo. O Manuel Veloso, que sentia cãibras a descer, a subir revigorava-se e, entretanto, também me ultrapassava. Fiz um esforço, serrei os dentes e lá fui atrás dele. Entretanto um atleta dos Amigos da Montanha também me alcança. Que mal estava. Sentia os músculos das pernas a ferver. A subida era em calçada romana muito antiga, a vista sobre o Vale do Lima era de uma beleza insofismável e o dia estava solarengo. O vento, de Sul a anunciar mudança, em cada viragem do caminho, ora soprava por trás e ajudava, ora soprava de frente e refrescava. No alto, em cima de umas rochas, uns vultos aguardavam-nos. Eram mais voluntários da organização (inexcedíveis, simpáticos, solícitos, do melhor que se pode ver numa prova assim), de prevenção caso fosse necessária alguma ajuda. Chegado ao alto decidi não desistir. A missa decorria na Capela da Sra. do Minho. Uma criança brincava com o pai. O altifalante, veículos modernos de evangelização por esse Portugal rural fora, debitavam um cântico pouco afinado do coro que actuava na animação da celebração. Não era ali que eu ia ficar.
Segui no encalço do Manuel Veloso. O Rui Cunha, que queria parar aos 29 também vinha pouco mais atrás com o Telmo. Estava bem entregue. Aos 34 kms cruzo-me com o cunhado do Carlos Sá, que me felicita por ali ter chegado. Diz-me que o pior já está, incentiva-me e fica por ali à espera dos outros. Pouco depois, na descida, apanho o Manuel Veloso. Fomos juntos até ao km 43. Ora ele me passava a subir e incentivava a acompanha-lo, ora eu abria caminho a descer e a saltitar de pedra em pedra. Depois do km 38, o percurso estendia-se por kms divididos exactamente por metade a subir e metade a descer. Sempre por percursos duros em zonas de rocha. Sempre. A resistência era posta à prova ali. Tanto a física como a psicológica. Aguentámos bem. O Manuel Veloso, dizia que já tinha idade para ter juízo, eu concordava, ele subia bem, eu descia melhor, fomos repartindo forças e lá chegamos ao km 43, ponto comum com o km 3, donde se avistava a meta em Dem. Ali, com o mar no horizonte onde um último raio de sol lhe dava a cor do fogo, por entre as nuvens que entretanto já preencheram o céu, sentíamos o gosto da vitória da vontade sobre todas as dificuldades. Uma última contemplação sobre a espectacular vista da Serra d'Arga, que tem muito para apreciar, destacando-se sempre os cavalos que ali vivem em ambiente natural, numa completa harmonia de uma natureza no seu estado mais selvagem. Pena é que os humanos teimem em deteriorar a paisagem com lixo que por ali vão depositando em incursões mecanizadas.
Na descida ouvi o bater das 18h. O tempo limite da prova estava atingido. A Analice, que entretanto eu alcançara dizia que era limite de 42 e não de 46 kms. Eu sorria. Não era o tempo limite que importava. É aquele sentimento de superação. Aquela agradável sensação de recordar, sempre nos últimos metros, tudo aquilo que tenho passado. Toda a evolução que tenho vivido nos últimos 4 anos. E o prazer enorme de poder terminar uma prova espectacular. Mesmo exemplar em termos organizativos. O percurso é duro. Todos os que andaram muito rápido na primeira metade, pagaram um preço alto na segunda. Não foi o meu caso. Eu paguei em toda a prova. Mas fui recompensado por toda uma experiência que, no próximo ano, irei repetir.
O Manuel Veloso, a Analice (grande campeã) e o Rui Cunha acabaram também a prova. O Telmo acompanhou e ajudou o Araújo (atleta dos Amigos da Montanha) a superar os últimos kms em grande dificuldade. Foi uma prova de superação para todos os que a fizeram. Parabéns ao Carlos Sá, que é um exemplo como atleta, e também um excelente anfitrião. Estava lá, na meta, à espera dos últimos, com o Marco Olmo, padrinho desta edição.
Somos todos um bando de gente incurável. Depois de cada empeno inscrevemo-nos para outros. Ainda alguém há-de (d)escrever os loucos da montanha. Seja pelas amizades que se fazem com aqueles que sabem o que sentimos, mas que só vemos no início e no fim das provas, seja pelo prazer de apreciar a natureza, seja pela vontade de nos superarmos, sentimos todos uma necessidade inexplicável de fazer sempre mais do que achamos possível. Não há limites para qualquer um de nós, senão aqueles que nós colocámos a nós próprios. Desde que a máquina não falhe, que essa, nem se discute, é prioritária.