Repito-me ao considerar as provas de trail como reuniões de família, onde todos se conhecem, ou se não se conhecem, facilmente se integram. Como em todas as famílias, há uma altura no ano em que a reunião é especial, uma espécie de banquete de Natal, onde todos se reúnem e celebram mais um ano, com farta mesa, onde há de tudo. O UTAX é a celebração do trail em Portugal. Com uma prova de 88 km e outra de 45 (Trail da Lousã) cuja designação é fiel ao percurso, com passagens por Aldeias de Xisto, tem a distância e a localização ideais para reunir os amantes do trail nacional, numa Serra que é um hino à natureza, com um pinhal imenso, quedas de água, rios e ribeiros, aldeias preservadas e recuperadas, e uma paz de cortar a respiração. A vontade que nos dá é de parar, contemplar e chorar para dentro o rol de sensações que só uma beleza daquelas nos induz.
Sexta-Feira, dia de verificações técnicas e levantamento de dorsais para os atletas da Ultra, ao chegar a Castanheira de Pêra, base da prova, foi provavelmente o dia em que mais chuva, das fortes, vi cair. Estava apreensivo. Apesar da confiança que tinha nas pernas e na cabeça, as imagens da prova dos Abutres em Janeiro deste ano, onde abundaram a lama e água daquelas cercanias vieram-me à memória. Temia passar no dia seguinte o mesmo que passara então, calcorreando trilhos lamacentos e penosos, onde a difícil progressão duplicam o cansaço. Enfim, temores que felizmente não se confirmaram. Depois de uma noite dormida rapidamente, no lotado pavilhão da escola local, e já com café tomado numa pastelaria que abrira propositadamente às 5h, dirijo-me para o controlo 0. Muitas caras conhecidas, muitos bons dias com sorrisos ensonados, um flash aqui e ali das habituais fotos, um ambiente calmo, sereno e de sã convivência, como são sempre os que antecedem estas provas.
Dada a partida, lá fomos a despertar os músculos em direcção às eólicas, cujas luzes sinalizadoras se avistavam bem lá no alto, por um pinhal onde rapidamente se dispersou o pelotão. Pouco depois, ainda no início da subida, reagrupámos todos, uns subiam, outros desciam, estávamos todos perdidos. Todos, do primeiro ao último. Esperámos pelo vassoura que nos encaminhou para o “Downhill” (feito uphill) que nos haveria de encaminhar até ao alto da Serra. As marcações, talvez devido à chuva e ao vento forte do dia anterior, eram deficientes em muitos pontos do percurso, sendo mais difícil o período nocturno. Registe-se que, a nível de percurso, só uma ou outra falha de marcação não pode diminuir o excelente trabalho de limpeza de trilhos e sua escolha. É uma prova com um percurso equilibradíssimo, onde não faltam zonas de trilhos planos ou pouco íngremes onde se corre durante quilómetros, passando por single tracks sinuosos em matas fechadas, e cujo final tem a sensatez de ser em estrada, estradão e trilhos pouco técnicos, provavelmente a pensar nos atletas mais lentos, como eu, que chegando ali já de noite, têm dificuldade duplicada pelo cansaço e ausência de luz natural.
A partir daqui, já com o dia a raiar, o pelotão foi dispersando serra fora. Até aos 16 km, primeiro abastecimento, foi um agradável serpentear, divertido e luxuoso aquecimento. No primeiro abastecimento, primeira desilusão. Não havia nada com sal, o isotónico tinha acabado, sobravam gomas, banana, laranja e alguns biscoitos. Salve-se a simpatia dos voluntários, enchiam-se os reservatórios com água e voltámos ao trilho. Até ao segundo abastecimento, na belíssima Aldeia de Gondramaz, houve de tudo. Subidas, descidas, belas paisagens, florestas pintadas de cores e frutos de Outono, muita castanha espalhada pelo chão, enfim, trail do melhor. No abastecimento, mais do mesmo. Gomas e pouco mais, o resto tinha acabado, não havia rede de telemóvel e aguardavam por reforço do abastecimento. Daqui até ao Espinho, um trilho fantástico, que fiz sozinho, por ribeiros, pontes feitas de troncos de árvores, onde o sol chega por finas linhas douradas que embelezam a verdejante paisagem. Se há paraíso deve ser parecido com aquele percurso. No Espinho, ao passar no “Ti Patamar”, conhecido ponto de abastecimento de muitos dos que treinam por aquelas bandas, deu-me vontade de parar, mas sem companhia, segui caminho. Pouco mais à frente, na dura subida que antecedia a Lousã, encontro o “trio abutrico” que me acompanhou até ao fim, o João Lamas, José Carlos Fernandes e Tiago Santos. Ilustres “habitués” daqueles trilhos, organizadores da prova dos Abutres, tinham já “abastecido” no Ti Patamar. Por pouco perdera o melhor da festa. Lá seguimos juntos até ao Hotel Mélia, onde nos aguardava um abastecimento ultra: Canja, chá, café e todos os petiscos que lá faziam falta e que estavam em quantidade mais que suficiente. A acompanhar o aconchego do estômago, um saco previamente deixado à organização, com roupa seca e sapatilhas de reserva. Como estava confortável, nada mudei, limitando-me a meter na mochila uma camisola térmica de reserva.
Partimos de seguida em direcção à segunda parte da prova, com passagens por mais escadas infindáveis a cruzar as aldeias espalhadas pelas verdejantes encostas, fontes, castelo, uma levada belíssima onde correr era arriscado pelo perigo de cair ribanceira abaixo. Contemplação. Admirável Serra, esta bela Lousã. Espero que a conservem, há pouco em Portugal com tão assombrante beleza.
Tinham-nos avisado no briefing, que por motivos de segurança havia sido abolido o PAC 5, passando a prova directamente do 4 para o 6. Assim foi. Um pequeno abastecimento aos 54 km de prova e a subida, tão bela quanto dura ao Trevim, ponto mais alto da Lousã, aos 1200 mt. A subida havia começado perto dos 200, com a levada a meio para “descanso”. Ali chegados, contemplámos, já na companhia do Rodolfo Rapaz e do Pedro Rodrigues (fotógrafo de ocasião), que se tinham juntado a nós na subida, a maravilhosa vista. O cansaço era pequeno perante tamanha beleza. Seguiu-se uma descida acentuada e nova ascensão, desta vez à Sra das Neves, onde entrámos no trilho que nos levou até ao PAC 7, na Aldeia do Coentral. Novo abastecimento reforçado, com canja quente, sandes de chourição e nova incursão do “trio abutrico” ao tasco local para mais uma mini.
Com a noite a cair, lá fomos juntos até final, aproveitando os cerca de 14 km finais para fazer recuperação activa. O facto de o percurso ser ali menos exigente, permitiu-nos recuperar forças sem abusar nos andamentos. Acabámos juntos, animados e com vontade de voltar, com 14h58 de prova. Previra 20h. Mesmo com 76 km registados no relógio oficial do nosso pequeno pelotão, sentimos-nos todos com dever cumprido.
O UTAX é, como referi no início, uma excelente prova. Organização excelente, com um avançado controlo de passagens com actualização on-line, sem confusão nas entregas de dorsais e verificações técnicas, boas condições de solo duro e boa refeição final, abastecimentos excelentes a meio e ao km 75, e excelente percurso. Como em todas as famílias, quando vamos a um banquete festivo, podemos não gostar de tudo, mas não é o facto de as rabanadas estarem queimadas, ou a sopa insossa, que vamos dizer que o banquete foi um fracasso. O facto de as organizações, com esta conjuntura económica, lutarem com menos apoios, faz com que nem tudo seja perfeito. É compreensível. Talvez possam mudar o excesso de gomas para mais alguns pacotes de batatas fritas, o sal faz-nos muito mais falta. Quanto às marcações, obrigado por me fazerem dar mais umas voltas naquelas fantásticas paisagens. Não dei como perdido nem um metro do que fui fazendo a mais para encontrar o caminho. Deslumbrei-me com cada pedaço de trilho que percorri, com cada castanheiro que contemplei, com cada pássaro que chilreava nas densas florestas que cruzei. Fiquei cheio de vontade de regressar. Se não tiverem abastecimentos, por mim não há problema, levo sempre a mochila com comida, e um reservatório para água que por lá abunda. Temos que encarar os trails, cada vez mais como provas de auto-suficiência e cada vez menos como banquetes organizados. Os abastecimentos fazem parte do banquete, mas o prato principal é aquilo que nos vai fazer a todos voltar no próximo ano: A mais bela, equilibrada e brutal prova de trail que por cá se faz.
Parabéns a todos os que se aventuraram nesta epopeia, ao vencedor Armando Teixeira em masculinos e à Ester Sofia Alves no feminino, a toda a organização e voluntários, que foram inexcedíveis. No global, o saldo é amplamente positivo.
Portugal tem excelentes serras para correr. Haja mais “Go Outdoor” para as organizar. Se o circuito Ax Trail é assim, merecem apoios para o reactivarem. Fiquei “cliente”.