terça-feira, dezembro 29, 2015

Ainda a discutir o trail

Apesar de todos os cuidados e reflexões, parece que discutir seja o que for sobre trail fora da Assembleia Geral da ATRP enferma de legitimidade.
No último texto que escrevi neste cantinho, dizia ter falado com a ATRP sobre o dito encontro de organizadores, convidando-a a participar para discutir tudo o que engloba a competição, sua calendarização e organização. Foi-me comunicado verbalmente por um dos membros da direcção que a ATRP não participaria na dita reunião, por não achar oportuna, e por não achar que deva, a ATRP, discutir tais temas com os organizadores. Num "post scriptum" colocado no texto depois de alertado para o facto de o convite não ter sido dirigido formalmente, referi que o ia fazer. Recebi a resposta poucas horas depois. O Ex.Mo Presidente da Assembleia Geral (onde andará a Direcção?) declinou o convite, em nome de todos os órgãos sociais (?!?). Aparentemente a decisão terá sido "colegial", como refere. Curiosamente, 1 hora antes de me responder por email, respondeu a título pessoal, em forma de comentário ao referido texto, onde apela ao trabalho voluntário e colaboração com a ATRP - repto que aliás já me tinha sido lançado por um dos membros da Direcção e que eu e mais 3 pessoas aceitamos de imediato, mas que não teve consequência. A ATRP não se pode apenas impor por força de Assembleias Gerais nem por força de estatutos, como refere no extenso comentário o actual Presidente da AG da ATRP. Claro que a legalidade, estrutura e modo de funcionamento das organizações é legitimada por estatutos; claro que é na AG que se discutem pontos de interesse dos associados. Mas também me parece claro que há muito mais para ser falado entre as pessoas, principalmente entre organizadores, para que se possa defender um desporto tão recente e que carece claramente de regulação e de criação de pontes entre as várias entidades que o tutelam, promovem ou organizam. As organizações evoluem com debate de ideias. As próprias sociedades evoluem a partir da base e não dos órgãos administrativos que as regulam. Não é só na Assembleia da República que se discute o País. Discute-se todos os dias em iniciativas de grupos de cidadãos, não tendo de se por em causa a legitimidade democrática de quem os representa. A democracia faz-se falando abertamente sobre os problemas, e não creio ser descabido discutir-se o trail e as corridas de montanha num fórum que não seja o da Assembleia Geral da ATRP. Se assim fosse teria de ir também às Assembleias Gerais da Federação de Campismo que regula o Sky Running em Portugal e às da Federação de Montanha que regula outro campeonato. Até pela multiplicação de tutelas é pertinente este encontro de quem tem a força suficiente para liderar todo este processo. Parece que a ATRP prefere o caminho da integração na Federação de Atletismo e não quer de forma alguma discutir o trail enquanto se processa essa integração. Eu não sei se esse é o caminho ou não, mas quero discuti-lo abertamente.

Esta ideia surgiu depois de vários acontecimentos que não adianta voltar a trazer à baila, e que desencadearam reacções extemporâneas entre pessoas que se respeitam, ou respeitavam, e que podiam e deviam ter sido evitadas por quem supostamente tutela os campeonatos. Ao contrário da ATRP, há outras entidades com tutela federativa sobre competições semelhantes que se mostraram abertas a participar no dito encontro e que encaram como válidas todas as discussões que possam melhorar o futuro das corridas em Montanha em Portugal. Não percebo como pode a ATRP colocar-se fora disto.

É importante lançar definitivamente em 2016 um caminho para o trail. Não tenho qualquer interesse de poder, mas tenho interesse em que se discuta o que realmente importa. Tenho falado com muitos organizadores em paralelo, muitos deles com razões diversas sobre pontos de interesse comuns, mas que não discutem entre si o que realmente poderia melhorar as suas organizações. Deviam ter um interlocutor, que infelizmente não existe. Na maioria dos casos chegam uns aos outros pelo FB, ou num ou outro encontro informal quando participam nas provas de uns e outros. Está na hora de se encontrarem para discutirem o que há para discutir. Será então a 31 de Janeiro.


quarta-feira, dezembro 16, 2015

Reflectir o Trail

Agosto de 1997. Há 18 anos, ainda sem correr e sequer pensar fazê-lo, fui convidado por um amigo a ir a um almoço convívio no final de uma prova de corrida em montanha, onde todos se conheciam e partilhavam a paixão de correr na natureza. Uns anos mais tarde, já corredor, "cruzei-me" com fotos dessas provas e soube finalmente o nome da dita aventura: Transestrela, uma prova de duas etapas num fim de semana. À época os nomes que retive foram sendo revividos, agora juntando os nomes às caras. Alguns dos que por lá andaram, ou abandonaram a modalidade, ou então limitam-se a fazê-lo nos moldes que muitos de nós ainda conhecemos, em pequenos grupos, onde quase todos se conhecem, correm pelas montanhas, almoçam ou jantam juntos e regressam à vida do dia a dia de cada um.

O trail deixou de ser um convívio entre gente que corre e passou a fazer parte de um quotidiano empresarial, onde o interesse de organizadores e atletas é muito mais que correr livremente e almoçar entre gargalhadas e projectos futuros. E deve assim ser encarado, como um desporto em crescimento, com cada vez mais adeptos e praticantes, e cada vez mais interesses envolvidos.
Contudo, uma das características que traz tanta gente para o trail, é a de não haver distinções entre ricos e pobres, entre filhos e enteados, havendo um total respeito por todos os atletas por igual, sem separação como acontece na estrada - elite separada do "pelotão" - e onde a capacidade de entreajuda, superação, resiliência, destreza e sacrifício, são muitas vezes determinantes para o aparecimento de novos valores. Há no trail casos de sucesso já bem depois dos 50 anos, com vitórias em importantes provas, casos de vitórias de gente que "aparece" neste desporto com historial mediano noutras modalidades e que consegue sucessos por ter características determinantes para um desporto onde a capacidade atlética não basta para vencer. A atracção pelo trail é determinada igualmente pela oferta de percursos na natureza, onde a recompensa de poder correr livremente por espaços inacessíveis é mais que bastante para libertar do reboliço diário citadino que a maioria dos seus praticantes vive.
Como um desporto com bases amadoras, de convívio e de descoberta de novas formas de viver as montanhas e natureza em geral, o trail nasceu um pouco como a história das primeiras provas, com o intuito de reunir pessoas, correr, fazer uns repastos e pouco mais. Os prémios não são normalmente monetários, o reconhecimento é escasso se comparado com outros desportos, não havia até há pouco selecções que participassem em campeonatos do mundo, e o reconhecimento passava por um ou outro apoio de marcas ou lojas de equipamentos da especialidade. Tudo isto mudou em pouco mais de 3 anos.

Depois de em Setembro de 2012 tomarem parte numa reunião, que viria a ser embrionária da ITRA, foi criada em Portugal a ATRP. Esta associação nasceu por vontade e iniciativa de um grupo de amigos apaixonados por trail. Se está a fazer o trabalho para a qual foi criada ou não, é no mínimo discutível. A ATRP enveredou por um caminho de regulação, de organização de calendário e de organização de campeonatos. Na minha opinião nasceu manca, porque sem a devida colaboração dos organizadores. Eu explico porquê: A ITRA nasce pela necessidade de regular competições existentes. Nasce no sentido de preservar o espírito do trail, da não separação entre elite e pelotão, das mesmas condições para todos os participantes, da tentativa de regular as provas, de as uniformizar, de unir esforços entre todos os que participam no desenho, organização e corrida. A ATRP exclui da sua génese e da sua organização as organizações. Há hipótese de as organizações se candidatarem, algumas serão convidadas, mas não há organizadores - pelo menos assim, enquanto organizadores -, no seio da Associação que regula, ou tenta regular, o desporto que aqueles organizavam muito antes de haver ATRP.
 
O aumento de provas entre 2012 e 2013, após o reconhecimento trazido pelos excelentes resultados internacionais de alguns atletas, trouxe muitas coisas novas e diferentes para o trail nacional. Até 2010 eram poucas as provas no calendário nacional. Quem queria ir a uma prova de 100 km tinha que se aventurar em Ronda ou nos Peregrinos, provas ganhas várias vezes por atletas nacionais. Por cá havia um calendário modesto. A Ultra da Freita só em 2010 passou a ter 70 km. Os Abutres só na segunda edição (2011) passou a ter mais de 42 km. Apenas o MIUT e mais tarde o Oh Meu Deus se atreveram a desenhar e proporcionar provas acima de 100 km em Portugal. Hoje, poucos anos depois, são muitas as provas com 100 ou mais km em Portugal. As provas de trail multiplicam-se e há fins de semana com 3, 4 ou mais provas em diferentes pontos do País. Há, felizmente, muito por onde escolher.

Assim, e sem muito mais explicações ou debates, decidi, com o apoio e incentivo de várias pessoas interessadas pelo futuro deste desporto, organizar com o apoio de algumas entidades, um encontro nacional de organizadores de provas. Será em Miranda do Corvo, no próximo dia 31 de Janeiro. Muitos dos que organizam provas em Portugal são dos mais experientes atletas nacionais. Exclui-los de decisões que os afectam não é justo, normal, nem aconselhável.
O Trail não pode é continuar pouco regulado, sem homologação de provas e/ou percursos, sem fiscalização, sem obrigatoriedade de cumprir requisitos mínimos. Não acabarão más organizações, mas havendo regulação e homologação os atletas poderão escolher em consciência e exigir de quem os deve defender. Não sei quem o deve fazer, nem quero afirmar se deve ser no seio da Federação de Atletismo ou na de Campismo e Montanhismo de Portugal. O que acho é que não pode nem deve continuar assim, com campeonatos distintos e regras diferentes. Urge discutir e alinhar o futuro com a exigência que os atletas merecem.

Poderemos discutir muita coisa por telefone, facebook, jornais, ou mesmo em tertúlias em separado. Mas urge reunir quem se interessa pela efectiva regulação de um desporto que começa a estar demasiado exposto. Não o fazer será colocar em causa tudo aquilo que defendemos e queremos para o trail.
A ATRP foi convidada a participar mas declinou o convite. Acha a direcção actual que não deve participar em tal debate. Respeito. Não concordo, mas respeito.
Em breve divulgarei o programa e temas abordados durante este encontro. O número de participantes vai variar consoante o local onde se realizará, que ainda não está definido.

P.S. - A ATRP será formalmente convidada a participar no encontro. Chama-me a atenção o João Mota, e com razão, que não existiu um convite formal, não sendo por isso legitimo afirmar que a direcção declinou o convite. O convite original foi feito verbalmente a um dos elementos da direcção. Agora segue um formal, por email.


Saudações desportivas a todos.

quinta-feira, novembro 05, 2015

Perdido em Nova Iorque

O que será pior que fazer uma maratona depois de uma longa recuperação, de um longo caminho de luta contra a dependência, de luta contra a adversidade? 

Gianclaudio Marengo, italiano de 30 anos, voou até Nova Iorque para participar na Maratona daquela cidade, integrado num grupo de pessoas que, como ele, faziam parte de um centro de recuperação de toxicodependentes. 
4h44 foi o tempo final do esforçado italiano. Chegado à meta, como acontece com muitos dos que fazem maratonas, desorientado no meio de uma multidão, a sua timidez e olhar vazio passaram seguramente como normais num maratonista. Depois da linha de chegada, um maratonista é sempre mais parecido com um zombie, cambaleando, esticando as pernas e contraindo involuntariamente todos os músculos em espasmos de dor. O comportamento normal de um maratonista é realmente estranho, não sendo por isso de estranhar um desorientado atleta por Central Park.
Portador do dorsal 23781, de Gianclaudio sobrava a informação de chegada à meta e uma imagem a prová-lo, quando os serviços consulares italianos a pedido da instituição que o levou aos Estados Unidos, começaram a procurá-lo. Daí até ser encontrado, dois dias depois, sabe-se agora que o italiano tentou voltar ao Hotel, mas com medo de perder a referência do último lugar onde estava, voltara à zona de chegada da prova. Sem o mapa que o ajudaria a encontrar o caminho, sem documentos e sem saber falar inglês, manteve-se por ali, à espera que o fossem buscar. Os membros do grupo foram lá mas não o encontraram. Comeu pizza, dormiu ao relento na noite fria de Manhatan, sempre com o equipamento com que correra a maratona. Segunda Feira, sabendo que tinha voo de regresso, foi para o aeroporto, de onde o expulsaram, por parecer sem abrigo e não possuir qualquer documento. Voltou para a cidade e refugiou-se no metro, já na madrugada de Terça Feira. Um polícia reconheceu-o por haver já uma notícia do seu desaparecimento



A história é contada pelo New York Post, e parece tirada de um filme.
"Os passageiros habituais, às 6h45 da manhã, são trabalhadores das obras, portanto aquela figura pareceu-me fora do contexto", conta Man Yam. "Reparei no seu ar cansado, lábios secos de desidratação, e principalmente na sua evidente ansiedade, olhando para todos os lados e fitando o mapa, tentando decifrar algo". 
O agente identificou-se e ao aperceber-se de que não entendia inglês, perguntou a Giancarlo em espanhol se estava perdido, ao que este respondeu afirmativamente e com ar aliviado. À boa maneira americana, o bom polícia levou-o a beber um café e comer um donut. Terá sido seguramente o melhor pequeno almoço da sua vida.



O agora maratonista foi levado a um hospital para assegurarem que estava bem de saúde, e onde o médico da instituição que o acolhe o foi buscar para viajarem de volta para Itália.
E assim uma história de libertação de um heroínómano transforma-se numa história de um maratonista, que depois de cruzar a linha de meta, começava uma aventura ainda maior que aquela de 42,195 metros que deixara para trás. 

A maratona é um duro caminho, mas nunca tão duro como muitos caminhos tortuosos que a vida nos proporciona.



Fontes e fotos:
http://www.nytimes.com/2015/11/04/nyregion/missing-italian-marathoner-found-on-new-york-subway-still-in-his-running-gear.html

http://nypost.com/2015/11/03/runner-found-after-going-missing-at-finish-line-of-nyc-marathon/

terça-feira, outubro 27, 2015

O homem branco naquela foto



As fotografias às vezes enganam.



Esta, por exemplo, retrata o ato rebelde de Tommie Smith e John Carlos no dia da cerimónia de pódio dos 200 metros nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, e enganou-me um monte de vezes.
Sempre a vi retratando dois homens negros descalços, de cabeças inclinadas e punho com luvas pretas erguidas para o céu, enquanto tocava o hino americano. Um gesto simbólico muito forte, para reivindicar a protecção dos direitos da população afro-americana num ano de tragédias como a morte de Martin Luther King e Bobby Kennedy.
É uma imagem do gesto histórico de dois homens negros. Talvez por isso nunca reparara verdadeiramente naquele homem, também branco como eu, imóvel no segundo patamar do pódio.

Achei essa presença casual, uma espécie de intruso. Na verdade, acreditava que aquele tipo fosse um qualquer rival inglês, que numa postura glacial, representava a vontade de resistência à mudança que Smith e Carlos invocavam com aquele grito silencioso.
Como estava enganado. Graças a um antigo artigo de Gianni Mura, descobri a verdade: o homem branco na imagem é, talvez, o maior herói que surgiu naquela noite em 1968.


Chama-se Peter Norman, australiano, qualificara-se para a final dos 200 metros com um fantástico tempo de 20,22 nas semifinais. Apenas dois americanos Tommie "The Jet" Smith e John Carlos tinham feito melhor: 20,14 e 20,12, respectivamente.
Todos esperavam que a vitória se decidisse entre os dois, Norman era um estranho que tinha corrido a corrida da sua vida e ficar-se-ia por aí. John Carlos, anos mais tarde, confessou ter-se interrogado de onde saíra aquele branco que com 1,68 m era capaz de correr à mesma velocidade que dois calmeirões com perto de 1,90 m.
Chegado à final, Peter Norman fez mais uma corrida de sonho, uma performance de outro mundo, melhorando o que era já um tempo fenomenal. Correu em 20,06 recorde australiano ainda hoje, 47 anos depois.
Um registo fantástico, contudo insuficiente, porque Tommie Smith fez justiça à sua alcunha e foi "The Jet", batendo o recorde mundial à velocidade de jacto humano. Derrubou o muro de vinte segundos, tendo sido o primeiro homem na história a fazê-lo, cortando a meta em 19,82 e levando o merecido ouro.
John Carlos terminou em terceiro lugar, perdendo a prata por um fio de cabelo, por trás da surpresa Norman, único homem branco entre as estrelas de cor.
Foi uma corrida memorável, do mais espectacular na história das Olimpíadas.


Memorável, mas os momentos mais marcantes desta final prolongar-se-iam até à cerimónia protocolar.
Smith e Carlos tinham decidido mostrar ao mundo inteiro a sua luta pelos direitos humanos e a intenção deles ecoou entre os demais atletas.
Norman era branco e vinha da Austrália, que tinha leis de apartheid muito rigorosas, semelhantes às da África do Sul. A Austrália vivia tensões, com manifestações de rua, como resultado de restrições de imigração a não-brancos ​​e leis discriminatórias contra os aborígenes, incluindo as terríveis adoções forçadas de crianças nativas para benefício de famílias brancas. Mas o atleta australiano, surpreendentemente, queria fazer parte do protesto, mesmo afrontando o poder instituído no seu país.
Os dois americanos perguntaram a Norman se ele acreditava em direitos humanos.
Norman disse que sim.
Perguntaram-lhe se ele acreditava em Deus e ele, com um passado no exército de salvação, respondeu sim novamente.
"Sabíamos que íamos fazer algo muito além de qualquer feito competitivo, mas surpreendentemente ele disse: "Eu estarei convosco"- recorda John Carlos - Esperava ver medo nos olhos de Norman, em vez disso, vi amor." 
Smith e Carlos decidiram ir ao pódio ostentando no peito um brasão de armas do projeto olímpico para os Direitos Humanos, um movimento de atletas em solidariedade com as lutas de igualdade.

Iam receber as medalhas com os pés descalços, que representava a pobreza dos homens negros. E iam usar as famosas luvas de couro preto, símbolo da luta dos Panteras Negras.
Mas antes de irem ao pódio perceberam que tinham apenas um par de luvas negras.
"Usem uma cada um", sugeriu o corredor branco e eles aceitaram o conselho.
Em seguida, Norman fez outro pedido.
"Eu acredito no que vocês acreditam. Têm um desses para mim?", perguntou, apontando para o emblema do Projecto para os Direitos Humanos no peito dos outros dois. "Assim posso afirmar a minha solidariedade com a vossa causa."
Smith admitiu que, surpreendido, pensou: "Mas que quer este branco australiano? Ganhou a medalha de prata, que a receba e pronto!".
Respondeu-lhe que não, que só tinha aquele e não queria deixar de o usar. Mas com eles estava um remador americano, branco, Paul Hoffman, ativista do Projeto Olímpico para os Direitos Humanos. Ouvindo a conversa, pensou que, "se um branco australiano quer usar um destes emblemas, por Deus, deve ter!". Hoffman não hesitou: "Dei-lhe o único que tinha: O meu".
Os três avançaram pelo campo rumo ao pódio: o resto entrou para a história com o poder daquela imagem.
"Eu não vi o que estava a acontecer atrás de mim - disse Norman - Mas percebi que estava a correr como planeado quando uma voz na multidão começou a cantar o hino americano, mas depois parou. O estádio ficou em silêncio. "


O chefe da delegação americana jurou aos seus atletas que iriam pagar para a vida aquele gesto que não tinha nada a ver com o desporto. Smith e Carlos foram imediatamente excluídos da equipa americana e expulsos da Aldeia Olímpica, tendo o remador Hoffman sido acusado de conspiração.
De volta a casa os dois velocistas tiveram consequências pesadas nas suas vidas, ostracizados, discriminados, recebendo inclusive várias ameaças de morte. A América racista não lhes perdoava o atrevimento.
Mas o tempo viria a dar-lhes razão e tornaram-se campeões da luta pelos direitos humanos. Já com a imagem justamente restabelecida, trabalharam com a equipa americana de atletismo e foi-lhes erigida uma estátua na Universidade de San José.


Na estátua construída foi ignorado Peter Norman.
O lugar parece esvaziar o epitáfio de um herói que ninguém reconhece. Um atleta esquecido de facto, excluído, logo à partida no seu país natal, a Austrália.
Quatro anos depois do México 68, para os Jogos Olímpicos de Munique, Norman não foi chamado para a equipa de velocistas australianos, apesar de ter corrido mais de 13 vezes abaixo do tempo de qualificação para os 200 metros e cinco para os 100.
Desiludido, deixou o atletismo competitivo, continuando a correr como amador.
O seu País, a branca Austrália queria resistir à mudança, e tratou-o como um pária, com consequências para a sua família e para si próprio. Desacreditado, arranjar trabalho foi permanentemente difícil. Deu aulas de ginástica, trabalhou ocasionalmente como talhante, e continuou as suas lutas como activista sindical. Mais tarde uma lesão grave que gangrenou levou-o a abandonar qualquer prática desportiva, levando-o à depressão e ao alcoolismo
"Se nós dois levamos um chuto no rabo, Peter enfrentou um país inteiro e sofreu sozinho", disse John Carlos.
Durante toda a sua vida, Norman teve apenas à disposição uma chance de se salvar e retomar honras de campeão: Foi instado a condenar o acto dos seus colegas Tommie Smith e John Carlos, em troca de um perdão do sistema que o tinha condenado ao esquecimento. Um perdão que lhe permitiria encontrar um lugar permanente no Comité Olímpico Australiano e fazer parte da organização dos Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000.
Mas Peter Norman não se deixou ir pela ambição e nunca condenou a escolha dos dois americanos, ficando assim longe de qualquer lugar ou tarefa de honra nos Jogos organizados pelo seu País.
Foi o maior velocista australiano de todos os tempos, ainda detentor do recorde nacional nos 200 m, mas não teve sequer um convite para as Olimpíadas de Sydney. Foi o Comité Olímpico americano, uma vez divulgada a circunstância em que o colocaram os australianos, a convidá-lo a juntar-se ao seu grupo, tendo sido figura de destaque na festa de aniversário do campeão Michael Johnson que considerava Peter Norman um modelo e um herói.
Norman morreu repentinamente, de ataque cardíaco, em 2006, sem o reconhecimento do seu País.
No funeral, Tommie Smith e John Carlos, amigos de Norman desde 1968, levaram o caixão aos ombros, homenageando-o como um herói.



"Peter era um soldado solitário. Conscientemente escolheu sacrificar-se em nome dos direitos humanos. Não há ninguém mais do que ele que a Austrália deva honrar, reconhecer e apreciar", disse John Carlos.
"Ele pagou o preço da sua escolha - explicou Tommie Smith - Não foi apenas um gesto para nos ajudar, foi uma batalha que escolheu travar. Era um branco, um homem branco entre dois homens negros, de pé no momento da vitória, tudo em nome da mesma causa".
Só 6 anos depois, em 2012, o Parlamento australiano aprovou uma declaração para pedir desculpas a Peter Norman e reabilitar a história com estas palavras: 
"Este Parlamento reconhece a conquista extraordinária de Peter Norman, que ganhou a medalha de prata nos 200 metros nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, com um tempo de 20,06, ainda hoje o recorde australiano.
Reconhece a coragem de Peter Norman em usar o símbolo da Projecto Olímpico para os Direitos Humanos no pódio, em solidariedade com Tommie Smith e John Carlos, que fizeram a saudação do "black power".
O Parlamento pede ainda desculpa por, mais tarde, o Comité Olímpico ter cometido o erro de não o ter levado às Olimpíadas de 1972 em Munique, apesar de repetidamente se ter qualificado, e reconhece o papel preponderante de Peter Norman na luta pela igualdade racial." Reconhecimento justo, mas tardio, que o visado não pode testemunhar. 
Talvez as melhores de todas as palavras que lembram Peter Norman sejam as suas, no documentário "Salute" realizado pelo seu sobrinho Matt, em que explicou as razões para o seu gesto:
"Eu não entendia por que um homem negro não podia beber água da mesma fonte, apanhar o mesmo autocarro ou frequentar a mesma escola que um homem branco.
Era uma injustiça social para alguns contra a qual eu nada podia fazer, mas que odiava.
Tem sido dito que o facto de partilhar a minha prata com tudo o que aconteceu naquela noite na cerimónia de pódio tem ofuscado o meu desempenho.
Acho que foi precisamente o contrário.
Confesso que sinto um orgulho enorme em ter feito parte daquele momento".





Traduzido do original (com autorização do autor) "L'uomo bianco in quella foto" de Riccardo Gazzaniga, publicado aqui. 
Twitter - @ricgazza
Facebook - https://www.facebook.com/Riccardo-Gazzaniga-262419330510005/




quinta-feira, agosto 06, 2015

Zoom às Nike Pegasus 32

Um zoom, a pedido da Sportzone/TSF Runners, ao modelo Pegasus 32 da Nike.

Com reconhecido sucesso no mercado, a Nike Pegasus vai evoluindo em design, baixando o drop (inclinação entre o calcanhar e os dedos) e aumentando a resistência e conforto. Modelo idealizado para corredores que apreciem amortecimento sem correção, as Pegasus cumprem na perfeição a missão de deixar os pés guiar o calçado e não o contrário.

Para passada neutra, pensada para dar uma sensação de suavidade na transição entre o impacto e o impulso, é quase imperceptível a “ajuda” da ergonomia, que permite a pressão sobre a planta do pé, fazendo um efeito mola passo a passo. Leves, com tecido respirável e resistente, em dupla malha, e com aqueles cordões laterais, onde os atacadores encaixam, e que, depois de apertados, fazem com que pareça ter mãos a segurar-nos o pé pela lateral.

O amortecimento, confortável, não é contudo demasiado esponjoso, dando a sensação de resguardo do pé ao peso do corpo e retribuindo o impacto em impulso contrário. No fundo, não desilude na evolução que vai fazendo, tornando-se uma compra segura, em linha com os modelos anteriores, e posicionando-se como um excelente calçado para quem quer preparar com segurança as provas de fundo, ou simplesmente correr horas a fio, sem sentir nos pés o massacre dos quilómetros.



Com a possibilidade de personalizar as cores, o design passa a ser moldável ao gosto do cliente. Mas, justiça seja feita, os designers da marca têm melhorado na conjugação de cores. Desde os tradicionais pretos aos arrojados azuis e laranja, passando pelos rosa para as meninas, não será pelas cores que não se apaixonarão pela sapatilha. Quanto à corrida, essa, só pode correr bem, com produto tão leve e resistente nos pés.

segunda-feira, junho 15, 2015

Queres ganhar forma? Corre devagar!

Já comentei com muita gente com quem me vou cruzando nos treinos e provas, que este é o método (Maffetone) que sigo, sem saber, há alguns anos, quase desde que corro. Reconheço que para alguns é difícil treinar sem plano de treinos, mas para mim basta correr. O plano é conseguir fazê-lo por muitos anos, sem lesões, e essas felizmente têm andado longe. A última dor que tive surgiu depois de 2 horas a dormir num puf.
Se és atleta rápido, quase de velocidade de profissional, este texto não é para ti, deves contactar um treinador e pedir ajuda profissional. Se pelo contrário, és um corredor de pelotão que corre por prazer e quer melhorar a performance sem grandes sacrifícios e sem lesões, lê e aplica este método. Precisas apenas de um relógio e de uma banda cardíaca. Se ainda não tens um relógio que monitorize o ritmo cardíaco, podes comprar um barato numa Decathlon.
Com o método Maffetone vais evitar lesões (reduzes a velocidade, baixas o stress muscular e o impacto nas articulações), ganhar saúde, subir de forma e treinar o corpo a consumir de forma mais eficaz as reservas de gordura, essenciais para uma melhor performance na corrida de resistência. Queres melhor justificação para seguir este método?

Quem é Maffetone e como funciona o seu método?

Maffetone é um renomado treinador de corrida italiano, investigador, formador, médico, músico, ideólogo e autor de planos nutricionais. É um estudioso do desporto, da corrida em particular e também corredor amador. Podem consultar o seu site e habilitarem-se a serem “treinados” pela sua app, ainda em versão beta - www.philmaffetone.com
De uma forma geral, achamos que só o treino anaeróbico conduz a ganhos de velocidade, contudo, desenvolver uma boa condição aeróbica antes de trabalhar a intensidade, permite melhorar a velocidade sem o desgaste inerente à velocidade e diminui a possibilidade de lesões. Se tiverem curiosidade e quiserem saber a diferença, podem ler aqui um bom artigo.

Vejamos então como calcular a intensidade recomendada de treino aeróbico, aquela que devemos manter o maior tempo possível para melhorar.
A fórmula 180, tem duas grandes vantagens, a de “treinar” o corpo a queimar mais gordura acumulada para gerar energia (normalmente queimamos diferentes quantidades de açúcar e gordura, à vez) e faz com que após algum tempo possamos correr a maior velocidade, sem variar a frequência cardíaca, aumentando a resistência e alargando o período até ao ponto de fadiga. 

Como calcular? 

1. Subtrair a idade a 180 (180-idade).
2. Modificar este número segundo uma das seguintes situações:
• Para quem convalesce de uma doença grave /Coração, uma operação, um internamento hospitalar) ou está com uma medicação prolongada, subtrai 10;
• Para quem nunca treinou ou treinou mas ficou lesionado, retoma a corrida após um interregno, ou tem alergias ou está frequentemente medicado, subtrai 5;
• Para quem pratica desporto há dois anos sem problemas mantém o número;
• Para quem tem praticado por mais de dois anos sem qualquer problema e vai progredindo na competição sem problemas, soma  5.
Por exemplo, quem tem 30 anos e cai na segunda situação, acima: 180-30=150 e 150-5= 145. É este o seu ritmo cardíaco aeróbico máximo. Para uma construção de base aeróbica eficiente, deve treinar dentro ou abaixo desse valor durante todo o período de treino.
Há duas exceções a esta fórmula:
  • Para indivíduos maiores de 65 anos é possível que se tenha de somar 10 pulsações, sempre em função do nível de forma e saúde.Isto não significa que tenham de somar 10 de forma automática, é importante que façam uma auto avaliação honesta.
  • Para jovens atletas até 16 anos, esta fórmula não é válida. É melhor que usem uma FCM de 165.
Uma vez obtida a FCM aeróbica, podes treinar dentro do limite que vai desde o limite até 10 batimentos abaixo. Se a tua FCM é de 155, treina entre as 145 e as 155 pulsações.
No meu caso, 180 – 42 = 138. A verdade é que, nos treinos mais longos, quando começo num ritmo baixo, entre os 6’/km e os 6’30 (125, 130 BPM), aos 20 km ainda estou naquela euforia que todos temos num determinado momento do treino – “ficava aqui horas, a este ritmo”, ao contrário do que acontece nos treinos mais rápidos, onde o stress da velocidade me faz esgotar energias muito mais rapidamente. O que é certo é que, em prova, a velocidades de menos 1 minuto e meio deste ritmo, entre os 4’45 e os 5’/km, sinto-me bastante confortável. Mas mais importante que a velocidade ou performance, é que continuo a correr, com imenso gosto, sem lesões e sem grandes chatices. É importante mantermos uma “relação saudável” com a corrida, para não nos “enchermos” dela e nos divorciarmos de vez. E principalmente que não desgastemos o corpo desnecessariamente. A minha vida não é só corrida e a vossa também não seguramente.
Experimentem correr mais devagar. Aprendam a correr devagar. O vosso corpo agradece, e os resultados vão seguramente melhorar.
 
(Fonte: Sportlife e Maffetone.com)

quinta-feira, março 05, 2015

Numa ultra só és adulto quando te inscreves

 

(Publicado originalmente no JN Running)

Esta viagem ao interior dos mais de 100km de Sicó é a de Rui Pinho, atleta convidado pelo JN Running. É a viagem de cada um dos que se lança ao desafio. Seja para dez, 20, 40 ou 100km. É a viagem ao interior de cada um de nós. E é muito boa de se ler.

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Uma ultra é uma viagem ao interior de nós próprios. É uma viagem rumo ao desconhecido. Sabes por onde viajas, conheces o barco, o mar e até os ventos, mas nunca saberás a infinidade de conjugações com que te irás deparar. É uma viagem deambulante pelo limite do corpo, da mente, da vontade e da resiliência. Todos sabemos ao que vamos, sem saber o que vamos encontrar.

Na azáfama da arena de partida, somos todos gladiadores prontos a serem lançados às feras. O arrepio na espinha, o vazio no estômago, a sensação de levitar sobre todos aqueles que, como tu, sentem a adrenalina a subir no tiquetaque decrescente para o tiro de partida. Nada ouves. O silêncio apodera-se de ti. O ruído que também tu fazes é o de todos os fantasmas que acumulaste e que agora se libertam, rumo aos trilhos para onde vais e onde cumprirão a sua missão: tentar-te, desanimar-te, alertar-te para as tuas fraquezas, para as dores e para os arrependimentos.

Em todo esse ruído há uma paz angelical que te faz sentir capaz de domar todos os teus demónios. É o silêncio do teu treino. O silêncio dos que acreditam em ti, o silêncio das palavras que te disseram há minutos, quando fizeste aquela última chamada – “vou agora ao controlo zero, para a partida. Dorme, eu dou-te novidades”. “Nós acreditamos em ti…” E acreditam. E dormem pouco. E ali vais tu, nessa viagem de mais de 100 km, de mais que muitas horas, que te deixará à mercê dos elementos, da chuva, do chão de barro que te vai fazer lembrar argila nas mãos de crianças que as formam alegremente.

Essa criança, vulnerável, és tu, é o teu filho, é o filho de alguém, desamparado, como tu ali, a cair e levantar, a dar a mão ao colega de ocasião que caiu a teu lado. És tu no teu mundo. Vais de criança a velho. Só és adulto quando te inscreves. És uma criança nas mãos dos voluntários que te abastecem e mimam, és um velho sem forças nas pendentes montanhosas que parecem não ter fim. És marinheiro. És sim. És marinheiro com pele franzida pelo cansaço, olhos de noite em branco perdidos no nevoeiro. Afinal não. És só um pastor que chegou ao alto da sua Serra onde outrora havia moinhos.

Estás a sonhar. Sonhas acordado no meio daqueles pesadelos que os fantasmas te vão lançando. E sonhas com os teus anjos. “Tenho de acabar, só faltam 30 km”. E fazes contas: “30 km, a este ritmo são 7 ou 8 horas, meu Deus, como aguento?”. E vêm os teus anjos. Lembras-te do último telefonema. Voltas a ligar. Não atendem, deixas mensagem, como se deixasses uma âncora que te vai puxar até ao fim; quando o telemóvel volta a tocar já te parece o ruído do motor que puxa a âncora. E animas-te de novo com uma canja, um caldo verde, uma bifana, uma cara conhecida, um popular que te grita “CORAGEM!!!”, e voltas a sentir-te vivo. Meu Deus! Ressuscitei! Sou o maior!… Até à fraqueza seguinte.

É isto. Morres e ressuscitas vezes sem conta, amas e odeias o trail, queres voltar para casa, para os braços dos teus. Mas isto é tudo teu. A viagem é tua. Mesmo que vás ao lado de alguém, que juntes fraquezas com fracos e te mostres forte, ou fraco, perante fortes, não saberás nunca como eles estão, porque eles estão numa viagem só deles, como tu. Na tua. Aproveita. Faz-te forte. Encontra-te. Vais ver-te como nunca te viste. Chorarás como criança ao cruzar a meta. Aquele que correu a teu lado ficará amigo para a vida. Afinal, esteve numa viagem única contigo.

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“Foi um belo cenário”

A importância do planeamento numa viagem destas é fundamental. Nesta Ultra de Sicó, planeiam por nós. Nada foi deixado ao acaso. Fartos abastecimentos, alguns de surpresa, apoio dos voluntários – muitos deles também ultramaratonistas e atletas da Associação Mundo da Corrida, e duas “bases de vida”. O termo pode suscitar sustos, mas mais não é que dois pontos onde podemos ter um saco com muda de roupa ou calçado. Importante para quem vai correr muitas horas, já que um coincidia com o início do dia, depois de 7 ou 8h a correr mais de 50 km, e o outro aos 93, onde muitos chegariam com mais de 16h. Estavam portanto no final dos dois primeiros terços de corrida. E os abastecimentos eram excelentes, de 10 em 10 km, alguns com sopa (da pedra, até) ou hidratos à bolonhesa. Havia muito mais o que comer, entre queijo, requeijão, bifanas, batatas fritas, fruta, doces.

Sicó tem muito por onde correr, mas tem também muito para subir. Tem trilhos técnicos, alguns belíssimos, como o da Cascata e o de Vale de Poios – o da Cascata é digno de figurar nos lugares mais idílicos do trail e daria um excelente cartaz da prova. Valeu a pena ter passado por lá. Tal como por Conímbriga, animada por guerreiros que cuspiam fogo na noite, iluminando-a e secando a chuva miudinha que persistiu quase até ao fim das 24h de tempo limite.

Condeixa será seguramente um destino de maratonistas em busca da experiência dos 100 km. Sicó tem todas as condições para dar a Portugal a dimensão de outras provas de 100 km lá fora. A localização, a envolvente paisagística, o envolvimento das forças vivas dos concelhos que acolhem a prova, das suas populações e autoridades, fazem o sucesso desta organização. Estão de parabéns. Pensaram todos os pormenores, focaram-se nos atletas de pelotão (a grande maioria) e superaram as melhores expectativas.

A partida às zero horas de sábado foi uma boa decisão. Com o adiamento das restantes distâncias (65, 25 e 12 km) para a manhã de Domingo, puderam concentrar na prova rainha toda a atenção e apoio, fazendo com que esta seja, até ao momento, a única em Portugal dedicada à distância superior a 100 km, sem misturas, às vezes complicadas de gerir, de ritmos, disposição e diferentes necessidades. A segurança esteve sempre presente, as marcações eram suficientes e havia um responsável da organização em cada PAC. Parabéns ao Mundo da Corrida. Foi um belo cenário para uma viagem ao centro de nós próprios.

As ultras são viagens estranhas. Saímos do conforto, treinamos todo o labirinto de emoções, fraquezas e dificuldades que vamos encontrar. Fazemo-lo em prova para assegurarmos a segurança na loucura. É um salto no desconhecido, mas em bunjee jumping. A fantástica conclusão comum a (quase) todos os que partem é que vale a pena. Mesmo que interrompamos a viagem. Vale sempre a pena descobrirmo-nos. Andámos muitas vezes escondidos de nós próprios. Ali, na montanha, no carrossel de emoções e sensações encontramos facetas que desconhecíamos possuir. Estas guerras aos nossos fantasmas faz-nos sentir vivos como nunca. Sair da nossa zona de conforto é um passo para nos sentirmos ainda mais confortáveis. É um éden de sensações num inferno de emoções.

Fotos Ico Bossa e Pedro Sá