O que sobra do sonho ou da loucura, e o que vivemos nos 5 dias do Caminho?
Há um ano, quando me falaram em correr em 5 dias consecutivos 5 ultra maratonas, imaginei-me a arrastar-me algures entre Barcelos e Ponte de Lima, com o desespero de saber que ainda estaria em Portugal, a meio caminho de Santiago, e com 4 pessoas que corriam muito, à minha espera, arrependidos de me terem levado. Nada disto aconteceu. O que aconteceu foi a fantástica revelação no Caminho de que eu seria capaz.
Este Caminho, com este grupo, começou há poucos meses quando lançámos o desafio de repetir a façanha, agora enquanto guias e com apoio logístico, a quem quisesse desafiar os seus limites e testar a capacidade de superar medos, limites físicos e mentais que todos julgamos conhecer em nós próprios, mas cujo limite ignoramos até o testarmos. Foi isso que eu vi neste Caminho, superação. E introspecção, como mostra a foto abaixo.
Primeiro dia
O grupo formou-se aleatoriamente. Dos 8 que aceitaram o desafio, só a Paula e a Patrícia se conheciam, todos os outros eram perfeitos desconhecidos, excepto para nós, organização. E é aqui que começa o encanto do Caminho.
No primeiro dia, depois das despedidas na Sé e da imensa estrada, chegados a Barcelos, depois de 55 km a correr, todos tinham a sensação que eram capazes de dobrar o Mundo, depois de passarem pelo muro que julgavam conhecer. Dos 8, apenas o Mário Leal e o Renato tinham alguma vez feito tantos quilómetros, e só a Susana tinha feito mais que os 64 com que acabámos o dia. E foi fantástico percebermos que, os até aí 8 desconhecidos, em grupo, foram sem se deterem desafiar os medos e partir, quase no breu, rumo a Tamel, como se o corpo se fosse aperceber que já tinham mais que a conta e colapsasse. Não colapsou nenhum corpo, mas as mentes abanaram. Já mergulhados na noite, experimentámos pela primeira vez aquilo que viria a ser uma constante, a divisão do grupo, onde uns aceleravam, outros se atrasavam, e nós, os que devíamos e queríamos todos acompanhar, aprendíamos logo ali como gerir todos os sentimentos e vontades. Uma aprendizagem, este primeiro dia. Para todos. Para todos menos para a Naná, que se não é, parece incansável. E eu diria perfeita guardiã, como puderam todos constatar e testemunhar logo no primeiro dia.
Segundo Dia
O segundo dia roçou a perfeição. Todos acordaram com disposição de continuar, sem grandes maleitas, e com o Minho brindado com um excelente dia primaveril. A decisão da véspera reservou-nos para este segundo dia um belo carrossel por entre campos verdejantes, aldeias milenares, a mais antiga Vila de Portugal e a bela Serra da Labruja. Já adaptados aos diferentes ritmos, ninguém reclamou andamentos rápidos ou lentos, ninguém se inibiu de parar para um ou outro mergulho, houve pares que se adiantaram, outros que atrasaram, houve até a oportunidade do Mário se perder na Labruja, correr desalmadamente e fazer mais 5 quilómetros serra acima, serra abaixo. Foi dia de cada um sentir o seu Caminho. Uns celebravam 100 km em 2 dias, outros o desejo de encontrar um qualquer "Eu", exterior ou interior, enervando-se com a possibilidade de estar ali ao lado da seta amarela. Todos sentimos o Caminho em grupo, mas todos o sentimos de forma diferente. O Caminho tomado foi aparentemente o mesmo, mas só seguimos as mesmas setas. Cá dentro, de onde tirámos motivação para o fazer, seguimos caminhos mais ou menos tortuosos, mais ou menos floridos, carregados de gerberas ou de rosas com espinhos, mas todos seguimos em busca do altar espiritual. O do corpo já todos o tinham. O meu um ano antes, o dos 8 na véspera, o dos outros guias também já tinha sido descoberto, sentiam agora as dores do grupo como deles, e viam o altar em Santiago, mas o Calvário ia continuar.
Terceiro dia
Um dia de dúvidas, de incertezas quanto à capacidade de todos chegarem ao destino, o da dita revelação, onde todos se chatearam com o Caminho, naquele que foi o primeiro "arrufo" numa relação que até aí só tinha melhorado. Não que o Caminho tenha mudado muito, só porque havia mais lama, mais civilização e os seus agressores, os carros e o progresso, o empedrado que massacrava os pés, depois de um spa de mais de 40 km da véspera, onde os pisos em terra e os cursos de água imperaram e amenizaram as dores da carga física. Depois de entrarmos em Espanha, mais estrada, mais km, uma longa etapa matinal que nos fez recalibrar as restantes e adaptar os encontros com a Naná, que tão bem repousa os mais cansados e os menos crentes.
Mas não deixou de ser dia de surpresas agradáveis. Do bom senso de alguns, à entrada do Miguel no grupo e animação correspondente, do crescer da paixão com o Caminho, do encontro de todos com o muro dos 5 dias, físico e psicológico. Foi um dia que custou a passar, mas não tanto como os 5 ou 6 km da reta da zona industrial que antecede Porriño, e que tem agora uma agradável alternativa, abrigada por um arvoredo denso e a calma do campo.
À noite, já depois de instalados, o jantar, os brindes, as trocas de olhares aliviados, as brincadeiras, os sentidos já adaptados às queixas do corpo, mas a alma mais perto de encontrar o que todos buscaram no Caminho. Foi um dia parecido com aqueles bolos que demoramos muito tempo a fazer, queimamos a base, mas a cobertura sai excelente. Não foi a cereja no topo do bolo, mas foi seguramente uma massagem num ego que já estava em défice.
Quarto dia
Com tantos quilómetros já perCorridos, o cansaço acumulado, e em mais um dia de sol e calor, o Caminho nas zonas mais rurais estava despido de peregrinos. Não me recordo de nos cruzarmos com algum nos trilhos entre Redondela e Pontevedra, onde há quase um ano se multiplicavam os “bicigrinos”, desta vez reservaram-os só para nós. Os sons da natureza, um rio que corre, um corvejar de um corvo em busca de parceira. Os percursos por entre a natureza só foram interrompidos pela passagem em Pontevedra, onde o Mário nos obrigou a dar a volta para apanharmos uma Escola de Samba que, ao som de rufos de tambores, dançava e nos pôs a dançar animadamente. De novo mergulhados nos campos e acompanhados pela beleza daquelas bandas, voltávamos à habitual dança entre o trilho e as águas das imensas fontes, ribeiros, quedas de água, onde inevitavelmente a Susana mergulhava. A certa altura, temendo maiores atrasos, a Patrícia pedia-lhe que evitasse olhar para a água. Impossível foi evitar um magnífico cenário que rodeava um antigo Mosteiro com uma estátua de um clérigo na entrada, sentado num banco à imagem de Pessoa. Inevitável foto e seguir caminho. 100 mt à frente, o João Casal e a Patrícia comiam kiwis. O Caminho dá imenso. Claro está que fomos os últimos a chegar ao local de almoço onde nos esperava a Naná; mas como dizia num quadro de um café próximo do local onde almoçamos, “a tartaruga conhece melhor o caminho que a lebre”.
À tarde, comemorámos os 200 km de Caminho, já muito perto de Caldas de Reys, onde pernoitámos a sonhar com Santiago, ali tão perto.
Quinto e último dia
Finalmente Santiago. O último dia, mais uma vez cheio de serpenteados belíssimos entre campos verdejantes e aldeias que respiram Caminho e acarinham os peregrinos, foi de alegria e ansiedade. Fomos fazendo os quilómetros até Padron com espanto pela beleza do Caminho e do estado dos corpos dos corregrinos, ajudados por uma temperatura mais baixa e com uma leve cortina de nuvens, que não escondendo completamente o sol, atenuava a sua força. Um corregrino tinha dado baixa, (teremos de voltar a Caldas de Reys e fazer com ele o que resta até à Praça do Obradoiro), e um ou outro que já "rangia" com o excesso de carga, mas que no geral continuavam a responder às cabeças que os balanceavam na direcção de Santiago de Compostela.
A chegada à Catedral, em grupo, foi o culminar de sonhos, vontades e muita superação.
Ainda estou a ver a emoção de uns, o espanto de outros por terem conseguido, a certeza de outros que sabem que ali não era o final, mas o início de outro Caminho, e o sentimento geral de satisfação pelas conquistas de todos. Foi, enquanto grupo um Caminho de sucesso.
Quanto aos "Eus" interiores, não sei se alguém encontrou respostas para algumas questões que trazia. Venham os nossos caminhos, as nossas vidas, que apesar de parecerem inacabáveis, ou mesmo perfeitas, são como o Caminho de Santiago, sinuosas, às vezes penosas, mas seguramente transitáveis.
E agora? Agora sei que tenho setas para seguir. Como o Mário na Labruja, por muitas setas que perca, por muitas voltas que dê, pese o cansaço dos km acumulados, hei-de encontrar o Caminho que me leve. Assim tenha sabedoria e coragem para os seguir.
Agradecimentos
Carlos Natividade, Mestre inspirador, com a incansável Naná a seu par, são um exemplo de harmonia. Há pouco tempo alguém me dizia que acredita nos amores verdadeiros. Está aqui, à vista de todos. No Caminho, o Carlos sempre a liderar, e a Naná a apoiar-nos a todos, sempre com um mimo para dispensar.
João Meixedo e Miguel Santos, o primeiro a liderar ou a fechar o grupo, sempre atento às necessidades de todos. O Miguel, no terceiro e quarto dias, a apoiar e animar todos, quando a cabeça tinha de comandar o corpo.
Paula Quintela, enorme Senhora, de uma simpatia e cordialidade extrema, que nunca tinha corrido tantos km. Mostrou a todos do que é capaz e deu-nos o privilégio de testemunharmos o prazer que retira da corrida. É uma excelente atleta, mas é mais uma feliz corredora.
Rui Martins, que tenazmente transformou todas as probabilidades em pó e se levou a Santiago. Apesar de nunca ter corrido mais que 1/2 maratona, com a ajuda de todos conseguiu o inimaginável.
Ângela Lopez, psicóloga do grupo, sempre a incentivar, que logo deu mostras que nenhuma contrariedade a demoveria de fazer todo o Caminho. Com bolhas arreliadoras nos pés desde o primeiro dia, poucos a viram a queixar-se. Dobrou o Caminho como quem dobra ferro com os braços, com garra e resiliência. Também uma estreante em distâncias superiores a 21 km.
Renato Cardoso, companheiro de muitos km, paciente e com um espírito fantástico de partilha. Experimentado explorador de outras montanhas, tri-atleta e ultra-maratonista, abraçou o grupo desde o primeiro dia e pacientemente usufruiu do Caminho.
Patrícia Pereira, a nossa incansável enfermeira, que cuidou de si e de todos, não deixando ninguém sem apoio médico, fosse tratamento de bolhas ou torcicolos. Inexperiente na corrida, confiou na amiga Paula e depois no grupo, e foi cilindrando etapas e batendo recordes de distância. Uma maratona para esta "dura" será como comer regueifa.
Mário Leal, a quem prometi voltar a Caldas de Reys para a última etapa, maratonista, corredor de trail, açoriano que nos trouxe a calma de quem vive a um ritmo mais lento. Não o sendo na corrida, nunca demonstrou vontade de chegar muito rápido ao destino, usufruindo sim de tudo o que o Caminho proporciona, como os mergulhos nos tanques e ribeiros e os km a mais na Labruja.
João Casal, altruísta maratonista, que se prepara para dar a volta a Portugal com objectivos meramente solidários, e que no Caminho encontrou seguramente um ritmo adequado às 53 etapas de 50 km do próximo verão. Para baixar o ritmo de corrida e poder acompanhar e motivar os mais lentos, fez o Caminho em direcção a Santiago, e seguramente 1/3 mais do Caminho de regresso, tantos foram os vai-vem.
E por fim, Susana Brás Santos. Não é bonito deixar para o fim uma menina, mas ficou para personificar o agradecimento pela confiança que depositou em nós, equipa Desafios. A Susana aceitou o desafio sem se preparar para tal. Apesar de ser uma ultra-maratonista com provas dadas, nunca tinha corrido tantos dias seguidos. Pôs-se ao Caminho e deu-nos o prazer da sua excelente companhia. Os dias não seriam os mesmos sem as suas vibrantes gargalhadas e resplandecente sorriso, que todos cativa. Ora desata a correr por "onduladinhos", como chama aos trilhos em sobe e desce (eu chamo parte-pernas, ela diverte-se), ora mergulha em tudo o que é reservatório ou curso de água. Bem disposta, animada e cheia de bom humor, uma agradável companhia.
Obrigado a todos por estes fantásticos 5 dias, onde tive de tudo, menos cansaço.
Os Caminhos de Santiago são assim, únicos, mesmo quando revisitados.